Dias sem fim
21/01/2020 | 12h36
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O menino caminhava pela avenida quando percebeu a movimentação intensa em uma das esquinas. Magro e com os pés no chão, queimados pelo excesso de sol que tocava o asfalto, ele desviou o percurso e se aproximou do grupo. No meio, uma mulher gritava e apontava na direção da qual vinha o garoto.
— Ele! Foi aquele ali! — e sinalizou aos demais o pequeno, que se espantou ao perceber todos os olhares se voltando para ele. Olhou para trás, buscando ver para onde apontava a mulher, mas não tinha mais ninguém ao seu redor. Assustado, com uma sacola na mão, o menino começou a recuar vagarosamente, como se andasse sobre um campo minado, até que suas costas colidiram em algo. Ao se virar, deparou-se com um homem. Grande, forte e de cabelos claros, ele observava a criança e tentava ver o que ela carregava.
Enquanto os dois se encaravam, o menino percebeu o movimento inverso. Agora, todos os que estavam na roda, pouco antes de sua chegada, caminhavam em sua direção. Ele sentia o corpo tremer. As primeiras gotas de suor escorreram pela testa e atingiram o olho esquerdo. O garoto secou-o, também lentamente, com medo de se mexer diante dos olhares que perscrutavam atentamente todos os seus gestos.
— O que tem aí nessa sacola, moleque? — perguntou o homem contra o qual o menino batera. O tom de voz parecia grosseiro para quem acabara de conhecê-lo, pensou Miguel. Mas não podia ser diferente. Em todos esses anos vivendo nas ruas, acostumara-se à rudeza no trato. Poucas vezes, recebera palavras afetuosas ou um sorriso gratuito. Mesmo quando alguém lhe oferecia ajuda, sentia o asco no olhar.
— São coisas que eu como e outras que eu vendo, moço. Tenho uns bombons, umas balas e uns chicletes. Os biscoitos são meus. Comprei com o dinheiro das vendas, moço. O senhor que comprar algo? — questionou o menino, cujo corpo tremia ainda mais.
— Compra e vende? Ou rouba, moleque? — gritou o homem, puxando a sacola da mão do menino — A senhora quer conferir se a sua bolsa está aqui? — o homem, agora, falava de modo sereno e simpático, olhando a mulher com delicadeza. Por que ele não era tratado assim?
Miguel abriu a boca para explicar que nunca vira a senhora nem a bolsa que lhe pertencia, mas foi cortado antes que pudesse iniciar a fala.
— Não deve estar. Esse bandidinho já deve ter jogado fora e escondido o dinheiro. Não suporto mais esse país sem regras, sem respeito, sem lei — disse a mulher, encarando-o com o raiva.
— Mas eu não sou bandido, senhora. Eu nunca te vi. E nunca roubei ninguém. Trabalho com os doces que estão na minha sacola. Moro na rua, mas não sou ladrão — e esticou a mão para pegar o embrulho, mas o homem deu um tapa nos dedos da criança. Todos riram. Outro homem, que vestia um terno meio amassado, empertigou-se. “Eles são sempre inocentes, sempre sem culpa de nada. Coitados!”, e gargalhou. Apesar das risadas, os olhos que observavam a criança transmitiam outros sentimentos: ódio, repugnância, ironia, descaso, nojo.
Miguel analisava, sem entender, os que formaram uma roda em torno dele. Como poderiam pensar que ele tinha cometido o crime? Havia acabado de chegar ao local, pela primeira vez naquele dia, quando encontrou a multidão reunida. Perto dali, havia a mercearia da dona Araci, com quem sempre comprava os materiais para revender durante a manhã e a tarde. Ela o recebia com um pão quentinho, cheio de manteiga, e um café com bastante açúcar. “É para dar energia, Miguelzinho, para mais um dia”, falava ao menino, em tom maternal.
Araci conhecia a história de Miguel e era uma das poucas pessoas que não duvidavam dele. Já havia expulsado de seu estabelecimento um sem-número de homens e mulheres que desdenharam da criança. “Some daqui! Se você acha que ele não serve para ficar por perto de você, é você que não serve para ficar perto da gente!”, esbravejou a idosa, em uma manhã ensolarada, quando uma cliente da mercearia tentou insinuar coisas sobre o menino.
— Onde está o meu dinheiro, moleque? — A mulher se abaixou e encarou Miguel nos olhos. O menino se sentia ameaçado como nunca antes. Eram pessoas grandes, bonitas, com caras que poderia ser simpáticas ao mundo, menos a ele. O garoto não desviou o olhar, mas sentia que estava prestes a perder o controle e correr até a mercearia de dona Araci para pedir socorro, mas temia o que poderiam fazer se ele saísse dali.
— Eu não sei, senhora. Eu já disse: não roubei a senhora nem ninguém. Sou trabalhador — a frase foi seguida por mais risadas dos demais — Sou, sim! Eu vendo doces para sobreviver e estava indo comprar mais agora e tomar meu café da manhã. Sempre passo por esse caminho. Eu não roubei a senhora! — gritou Miguel, tentando ser ouvido. O desabafo foi seguido por outro tapa. Agora, na cabeça. As lágrimas pareciam querer sair à revelia do garoto.
Ele se sentia engolido por aqueles homens e mulheres que fechavam todos os caminhos pelos quais poderia passar. Miguel olhava para os lados, buscando um ponto de escape, mas o cerco ficava cada vez mais apertado. Os que passavam na rua e não participavam da cena apenas analisavam o que acontecia, cada um com sua opinião, alheios ao medo da criança. “Mas está uma bagunça essa cidade. Não se pode nem andar pela calçada”, reclamou uma senhora, de cabelos brancos, que virava o pescoço para entender quem estava no meio da roda.
O garoto estava sentindo um pouco de dificuldade para respirar. O abafamento tornava-se cada vez pior. Ele tentara dizer que não havia feito nada, que nunca cometera nenhum crime em sua curta vida, mas parecia se comunicar em outro idioma. O calor aumentava à medida que o tempo passava. O espaço estava cada vez apertado. Seu corpo, agora tomado pelo suor, encolhia-se aos julgamentos dos outros. Os outros vociferavam e o humilhavam, mas as vozes foram cessando a tempo de o trêmulo menino ouvir a sirene anunciando a chegada da polícia.
Sem conseguir se controlar, Miguel se sentou no chão, colocou as mãos sobre a cabeça e chorou baixinho. Se pudesse, rezaria, mas não conhecia orações. Abriu os olhos e viu que, à multidão, juntavam-se homens de farda. Um deles foi até o menino, tocou seu ombro e mandou que se levantasse. Ele acompanhou sem questionar. Não sabia o que fazer.
Entrou na viatura, ainda com lágrimas nos olhos. Percebeu que a sua sacola, antes na mão do homem, havia sido jogada no chão. Os doces se espalharam pela rua. Alguns foram chutados para o asfalto e outros, pisoteados. O grupo se desfizera. Homens e mulheres saíram conversando e rindo e se recordando do menino. “Um absurdo”, dissera um senhor que acabara de ouvir a história sobre um garoto que roubou a bolsa de uma mulher. “Falaram até que estava armado”, comentou com a esposa enquanto os dois olhavam para dentro da viatura.
Seria só mais um dia de café e de trabalho. O motor sinalizou que o veículo se preparava para sair. O menino pôs as mãos no bolso e percebeu que havia um bilhete que dona Araci lera e dera para ele, em um desses dias de visita à mercearia. Miguel não sabia ler, mas se lembrava da voz da mulher: “Venha sempre comer o seu pão com manteiga, tomar o seu café e comprar os seus doces, menino querido”.
Do outro lado do vidro, à medida que o carro seguia, ele percebeu que não tivera tempo para se despedir de Araci e agradecer. Talvez ela se lembrasse de ir visitá-lo onde ele estivesse. A sirene foi novamente acionada e o carro partiu. Ou talvez ela acreditasse nas besteiras ditas por outros. A velocidade era tanta que ele não conseguia acreditar. Nunca havia andado de carro e temia.
Talvez ela esteja o esperando lá, onde quer que seja, para um abraço, com um café e um pão. Cabeças se viravam para a viatura que parecia alternar entre curvas arriscadas e risadas dos homens alheios ao garoto. Talvez dona Araci não saiba ainda, mas poderá chegar em breve. Uma freada brusca seguida por um vozerio e olhares atentos e esnobes sobre Miguel, que era levado, em silêncio, para uma sala escura e fechada. Sentou-se e olhou o vazio ao redor. Talvez ele vire somente estatística no fim de um mês.
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Primavera
04/11/2019 | 08h02
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O cheiro de flores invadiu o quarto. Eram as rosas ou as papoulas ou os lírios? Tantos odores mesclados a tantas memórias que ele se desencontrava em meio aos tantos. Bromélias? Orientava-se por ela, sempre alegre entre o colorido da natureza, quando buscava o frescor dos jardins. Mas, assim como não aprendera sobre o caminho, falhara em absorver seus ensinamentos. Seria de jasmim? Ou era o dela? Ficava perdido nessas horas em que o sol incidia sobre o quintal e emanava luzes e cores e lembranças. Pensamentos ecoavam ao som do silêncio do ambiente. Orquídeas, quem sabe?
Abriu as janelas. O céu, rajado de branco e azul e amarelo, o cegou momentaneamente. E, entre as flores, ele a viu. Tão bela e viva! Como? Repetia os tons de branco e azul e amarelo do céu. Piscava ininterruptamente e continuava a vê-la ao lado de rosas. Ou papoulas? Lírios, quem sabe? Ele não sabia. Por que não aprendera na hora certa? Sobre ela, sobre as flores, as cores e os cheiros. A mulher tocava uma pétala e ria. Ria um sorriso tão bonito, daqueles capazes de se encaixar apenas entre as pétalas de uma orquídea. Isso! Provavelmente, era uma orquídea.
Permanecia piscando, e ela sorrindo e observando a expressão incrédula com que ele a encarava. Que ridículo, pensou o homem, um velho fazendo essa cara de besta. Mas ele também esboçava um sorriso. Tímido, quase inexistente, mas um sorriso. Há quanto tempo não posicionava os lábios em curvas? Ela estava colorida como todos os outros dias em que compartilharam os cinzas da vida. Talvez ele não tivesse reparado esse brilho nos anos que dividiram. Havia uma juventude, outrora perdida, gritando nos olhos da mulher. Os tons do céu ainda o deixavam cego, mas ele a enxergava tão nitidamente que desejou ter, até o fim de seus dias, a incapacidade de ver as demais cores do mundo.
Ela abandonou as orquídeas e foi para as rosas. Ou eram papoulas? Não importava. O cheiro das flores desapareceu. Havia apenas ela, envolta em pétalas e memórias, e nada mais. À medida que os olhos se adaptavam à claridade do sol, perdia-a. Vagarosamente, o branco-azul-amarelo tornava-se transparente. Ele já não a distinguia do verde das plantas ao redor. Tentou pedir que ficasse mais um pouco. Era tão linda quando se confundia com o jardim. Por que não reparou antes? Esticou as mãos para tentar tocá-la no momento em que os últimos traços coloridos da mulher se desfizeram entre orquídeas, jasmins, papoulas, rosas, bromélias e lírios, cujas pétalas murchavam sob tons de cinza de mais um dia nublado.
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Transmutação
10/09/2019 | 12h32
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Acordou e olhou o relógio pendurado na parede: 5h50. Estava cedo ou tarde? Não se lembrava da última vez em que tinha observado aqueles ponteiros. A noite se transmutava em manhã nos primeiros feixes de luzes que surgiam no céu. Haveria nuvens ou sol durante este dia? Era tudo tão incerto. Ele não sabia. Nunca sabia.
Respirou fundo. Cinco horas e cinquenta e dois minutos. Levantou e caminhou pelo quarto de tons claros e escuros. Parecia perdido. Desconhecia a data, a casa, a cama, seu rosto. Passou a mão e sentiu a barba por fazer. Mas ainda era cedo. Ou já estava tarde? Os pelos endurecidos faziam pinicar os dedos. A sensação parecia percorrer todo o corpo do homem, mas ele não sabia o porquê. Nunca sabia.
Bocejou em frente ao guarda-roupa. Eram, agora, 5h53. Quais as roupas ainda permaneciam escondidas por trás daquelas portas? Entre cabides, blusas, calças, shorts, frio, meias, cuecas e, talvez, calcinhas. Será que ainda havia alguma perdida? Tentava puxar pela memória as cores dela, que se espalhavam sobre as suas, mas não conseguia. Era como se falhasse a cabeça. Pareciam lembranças distantes, de outras vidas, mescladas a um adeus, talvez, quem sabe? Ele não sabia. Nunca sabia.
Agora, o relógio marcava 5h55. Detestava números repetidos e horas repetidas e dias repetidos e vidas repetidas. Não. Não era isso a que ele fora destinado, se é que havia sido destinado a algo. Santa ilusão cristã. Novamente, passou os dedos nos pelos duros da barba e sentiu a sensação percorrer o seu corpo. Mas qual era a sensação? Agonia misturada à tensão e misturada a certo asco pela barba por fazer. Houve, em tempos remotos, certas vaidades a que ele cedia. Mas isso está em um passado que o homem, hoje, desconhecia. “Por quê?”, perguntou a si mesmo. Não sabia.
Às 5h58, as memórias pareceram saltar de sua cabeça em uma corrida desordenada. Ela vinha para se deitar em sua cama, abraçando-o carinhosamente. Entregava-se a uma dança única dos corpos unidos em calores e suores. Em seguida, emitia um riso alto, seguido por um sorriso manhoso, como gostava de fazer quando se sentia amada e protegia. E ele? Quando se sentiria amado e protegido para rir e sorrir? Ele nunca sabia.
Sabia, sim, uma única coisa. E esta lembrança, vinda às 5h59 de uma manhã perdida, amanheceu o homem. Ela partira, sem despedidas ou avisos. Voou, como ele costumava dizer a quem o perguntava. Acordou, um dia, e não a viu na cama. As roupas pareceram nunca ter composto o armário. As cores dela não estavam mais sobre as suas. Quaisquer rastros tinham sido apagados. Assim como ela havia chegado até ele, em uma noite escura, deixou-o inundado por estes mesmos tons.
Os raios de sol invadiram o quarto de modo repentino, fazendo doer os olhos dele. Não esperava a súbita luz que, agora, consumia o espaço. O homem, em pé, observando o mundo que pulsava à sombra da janela, transmutou-se em luz.
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O Encontro - O silêncio no caos
03/09/2019 | 19h30
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Em conversas sobre cinema, é comum ouvir que, entre os filmes americanos e europeus, geralmente, há grande diferença de ritmo de narrativa. Os primeiros costumam ter mais diálogos e momentos de ação se comparados aos segundos, conhecidos pelo desenrolar mais vagaroso de seus enredos. Para confirmar que toda regra tem exceção, no entanto, o longa-metragem “O Encontro” (“Time out of mind”, 2014), marcado por uma fotografia acinzentada e ambientado em uma Nova York vista e compreendida pela ótica dos marginalizados, pode ser considerado um dos pontos de divergência da teoria colocada em prática. 
Protagonizado por Richard Gere e dirigido por Oren Moverman, o filme mostra a história de George, um homem que perdeu a família e os bens e se tornou um morador de rua que tem dificuldades para aceitar a nova condição. Em um quadro de depressão, ele vive em busca de um lugar para se abrigar e de uma possibilidade de um novo encontro com a filha Maggie, interpretada por Jena Malone. Após ser humilhado em diversas situações, ele é orientado a ir para um abrigo público.
Quando é aceito em uma unidade, George conhece Dixon, personagem de Ben Vereen, um homem que afirma ser músico e conta ter recusado uma oportunidade de emprego em outro país por não poder abandonar o seu cão de estimação. Apesar dos conflitos entre os dois, o companheiro de abrigo o encoraja a encarar a realidade e buscar seus direitos. Oposto a George, Dixon tem como principal característica a verborragia. Em um atrito causado por uma de suas tentativas de diálogo com o protagonista, ele é obrigado a deixar o lugar.
Não somente no abrigo, mas também durante o período em que vaga pelas ruas de Nova York, poucos são os momentos em que George dialoga com outros personagens. O espectador acompanha o protagonista em suas caminhadas e é envolvido por gritos, barulhos de carro, risadas, brigas e todos os outros sons possíveis de serem encontrados em uma cidade grande, tal como acontece com o leitor do escritor brasileiro Luiz Ruffato que, no livro “Eles eram muitos cavalos”, é levado a mergulhar na narrativa sobre um dia em São Paulo a partir das vozes da cidade. Somado ao silêncio do homem, que demonstra nos traços toda a sua aflição, inclusive a que é sentida quando ele percebe a partida de Dixon, o cenário de tons escuros de inverno ambienta ainda mais o público na realidade que cabe ao personagem.
Apesar da quietude de George, no entanto, o protagonista parece verbalizar todos os conflitos e sentimentos por meio da bela interpretação de Richard Gere. Não apenas a expressão facial, mas todo o corpo do ator dialoga com quem assiste e faz compreender o complexo universo que envolve o homem, tornando dispensável a comunicação verbal, que, na maior parte do tempo, é utilizada para o entendimento de momentos-chave da história. Esta característica, peculiar para uma produção norte-americana, pode fazer com que o filme seja considerado lento, conforme apontado por parte da crítica à época do lançamento, mas é necessário compreender que, tanto na arte quanto na vida, o silêncio pode falar mais sobre o ser humano do que palavras, verbos e ação.
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Angelina
25/06/2019 | 17h47
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A porta da pequena capela estava entreaberta, como ela encontrava todos os dias pela manhã. Nunca soube quem a deixava assim. Às cinco horas, Angelina se levantava da cama, preparava uma xícara de café e, com o pão da tarde anterior, fazia torradas. Passava manteiga enquanto seus pensamentos vagavam pelas horas à frente. Após comer, vestia o tradicional xale acinzentado pelo tempo e saía pelas ruas. Atravessava duas, virava à esquerda na terceira e caminhava até o final daquela via. Era sem saída. O ponto final era a igrejinha.
Perto da entrada da capela, ela fazia o primeiro sinal da cruz da manhã. Orava ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Também agradecia pela bênção de respirar por mais um dia. Aprendera com sua avó que deveria ser grata por tudo, até pelos maus momentos. “É deles que você vai tirar os ensinamentos”, dizia repetidamente à neta. Mesmo obediente ao que falava a mulher, a então menina sentia dúvidas. Era necessário aprender assim? Os anos a mostraram que, sim, era necessário.
À porta da igreja, o segundo sinal da cruz entre lembranças da avó. Era engraçado. Com o passar do tempo, Angelina se via mais parecida com ela. Em seus hábitos, crenças e gestos. Entrou na capela pela fresta. Não precisava mais do que isso para caber naquele espaço. Sentou-se. Observou o altar, já destruído pelos anos de abandono. Ainda era capaz de recordar as missas diárias ali celebradas. Na infância, corria entre os muitos fiéis que depositavam sua fé e seus problemas aos pés de Cristo. Em diversas ocasiões, acompanhou suas orações, mesmo sem saber o que era pedido.
Jesus continuava ali, mas corroído. Seus pés pareciam mais frágeis do que outrora. Os olhos transpareciam uma tristeza além da que ela percebia na meninice. Os santos que estavam próximos à imagem de Cristo entrelaçavam as mãos à solidão. Anjos vagavam perdidos nas pinturas. Tudo estava fora do lugar. No púlpito, o vazio. Onde antes ecoavam vozes de homens, velhos e novos, entre português e latim, havia apenas sombras criadas pelos parcos raios de sol que invadiam o espaço. Apesar do peso que sentia no ar, o cenário continuava a atraí-la.
Ajoelhou-se. Cruzou as mãos em oração. De olhos fechados, estava novamente correndo pela igrejinha. Tinha oito ou nove anos. Usava um vestido florido, de manga curta, e brincava com amigos. Ainda não havia começado a missa. Sua avó estava lendo a Bíblia, como sempre fazia antes das orações. “Menina, sossegue! Eu não tenho mais idade para correr atrás de você. E nem paciência”, brigou a idosa no momento em que conseguiu alcançar a garota, que se desvencilhou e voltou para a brincadeira.
Os dias foram passando pela sua mente à medida que ela avançava no Pai Nosso. Estava brincando mais uma vez com os colegas, mas, agora, era inverno. Vestia calça jeans, blusa azul e uma jaqueta. Nos pés, os tênis comprados pelos pais. “Venha a nós o Vosso Reino”. Já era adolescente e estava sentada a poucos metros do altar, com a cabeça baixa e pensamentos distantes. Tinha discutido com a avó naquela manhã por um motivo do qual não se lembrava mais e foi para a capela, antes da missa do início da tarde. Estava cansada e queria ficar sozinha por um tempo.
“Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no céu”. Um barulho a tirou de seus pensamentos. Parecia uma queda seguida de burburinho. Levantou a cabeça e viu que as pessoas estavam amontoadas ao redor de alguma coisa que ela não conseguia decifrar. Afastou crianças que estavam à sua frente e se aproximou. Uma pessoa estava caída. Não sabia quem era. Enfrentava braços, cabelos e ombros até que reconheceu o pequeno sapatinho, já desbotado, de cor preta. “Não respira!”, gritou o padre.
Angelina nunca conseguiu se recordar do que aconteceu após o grito do homem. Todas as memórias se confundem, e a cabeça dói de modo lancinante. “O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”, disse e suspirou, secando os olhos e afastando as lembranças.
Finalizou a oração. Observou ao redor, ainda a tempo de ver a menina de vestido florido correndo em direção à imagem de Jesus, que, de repente, parecia sorrir. O ar era mais claro. O dia havia amanhecido de fato. Fez o último sinal da cruz, ergueu seu corpo e caminhou em direção à saída. Antes de se despedir da capelinha, olhou para trás. Padres, cantos, credos, crianças, mães, pais. Sua avó olhava-a do canto, batendo no chão os sapatinhos pretos, e vigiava seus passos, como sempre fazia naqueles tempos. Mas, desta vez, ela desviou os olhos e encarou a neta de cabelos brancos, com um sorriso cúmplice. Angelina compreendeu as palavras nunca ditas e também sorriu. Sim, estava tudo bem. Fechou a porta e seguiu para novos dias.
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Meio dia
04/08/2017 | 14h09
Paula Vigneron
Mãos e pernas balançam pelas ruas horas após o amanhecer. Os olhos acompanham ritmos distintos. Pessoas mergulhadas em pensamentos. Uma mulher passa na calçada, calada e séria. Caminha enquanto coça o rosto. Não se perturba com os carros correndo. Mais à frente, policiais em uma viatura se alternam entre distrações e patrulhamentos.
Minutos antes, na esquina, um homem, em sua cadeira de rodas, observava os transeuntes. Ao avistar outro, alto e forte, brinca: “você é grande, mas não é dois”. A seriedade é quebrada momentaneamente pela sagaz ousadia do rapaz. Risadas provêm dele e de quem ouve a brincadeira. A normalidade volta à cena em seguida.
Os assuntos são permeados pelas pautas jornalísticas. Política tem sido alvo de debates vãos. Ninguém se entende. Ninguém entende. Todos respiram apatia. Servidores públicos reunidos na sede de uma universidade estadual lamentam os descasos do governo. “O Estado, hoje, instituiu a escravidão”, afirmou uma trabalhadora. Há tempos, passa por dificuldade junto aos seus parceiros de profissão. Lutam para serem ouvidos enquanto se organizam para a distribuição de cestas básicas que auxiliam colegas desamparados pelo poder público.
A despeito deles, à beira de uma rodovia que corta o município, outros trabalhadores prosseguem em seus papéis. Varrem, cuidam de jardins e plantas e, vez ou outra, param para analisar veículos e rostos em movimento e enxugam as primeiras gotas de suor e traços de desânimo. Todos parecem cansados.
O trânsito conturbado. O rádio saudando os ouvintes. Pedestres atravessando as ruas, com seus cigarros, celulares e sono. Conversas paralelas. Um idoso, seguro com sua bengala, conta causos a um rapaz uniformizado. Um cachorro preto caminha, calmamente, entre pequenos e grandes veículos na descida de uma ponte. Velocidades reduzidas para aguardar o passante.
Entre cobranças e desgastes cotidianos, pouca ou nenhuma compreensão; entre casas, carros, motos, homens, mulheres e crianças, os semblantes perdidos; entre medos e dúvidas; nós. E nós? Pelos alto-falantes, ecoam as vozes de Milton e Elis, respostas e lembretes à consciência: “nem vá dormir como pedra e esquecer o que foi feito de nós”.
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Branco e preto
31/07/2017 | 13h32
Mas mantinha-o no mesmo lugar, com o mesmo retrato em branco e preto
Mas mantinha-o no mesmo lugar, com o mesmo retrato em branco e preto / pixabay
— Pai Nosso que estais no céu...
— Não adianta — respondeu a voz que o perseguia há noites. Guia de seus dias.
— Santificado seja o Vosso nome — as mãos cruzadas em frente ao peito; os joelhos marcados pelos cortes do piso.
— Estou dizendo: não adianta. Não insista — falou, em tom mais grosseiro, o homem sem rosto.
— Venha a nós o Vosso reino.
— Não será feita a Sua vontade. Você sabe, rapaz. Eu te disse. Não tem por que insistir.
— Seja feita a Vossa vontade — pequenas gotas de suor escorriam pela testa enrugada de tensão.
— Sente-se aqui, na sua cama, ao meu lado.
Cortou a oração. Olhou para trás, onde estava localizado o móvel. Vazio. “Estou enlouquecendo. Esse é o preço?”
Mãos à frente do corpo. Concentrou-se. Agora, estava perdida a oração. Precisava recomeçar.
— Pai Nosso que estais no céu...
Aguardou a interferência. Dez segundos de silêncio.
— Santificado seja o Vosso nome...
— Venha a nós o Vosso reino.
Parou novamente. Respirou fundo. Será que é isso que chamam de consciência? Aquela coisa independente que está dentro de você e julga todos os seus atos-erros-acertos-desistências-bingo! Deve ser. Ou o princípio da loucura inevitável.
— Seja feita a...
— ...Vossa vontade. Assim na Terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos dai hoje...
— Pelo amor de Deus, cale essa boca — soltou as mãos. Ergueu-se. Os joelhos latejavam. Estava incomodado. Nunca fora dado a orações. Na hora em que sente a necessidade de buscar respostas, ou sopros divinos transformados em calmaria, se depara com algo. Alguém. Uma voz sem fisionomia dizendo-o que não vai adiantar. O discurso vinha sendo repetido há dias. Olhou ao redor. Não havia ninguém no ambiente.
O quarto estava vazio, exceto pela sua presença. A casa também. Há tempos, não sabia o que era receber visitas; pessoas interessadas em vê-lo, ouvi-lo e rir de suas tentativas de piadas. Passava as noites dialogando com televisão e redes sociais. Rindo de idiotices extremas que não faziam o menor sentido, mas preenchiam sua vida de sentido. Qual seria o sentido disso tudo?
Em pé, com as mãos soltas ao lado do corpo, encarou as paredes. Precisava tentar novamente.
— Pai Nosso que estais no céu...
— Quer que eu continue? Ou você prossegue e se decepciona com o resultado?
Rodou ao redor de seu corpo. Continuava procurando a origem daquela voz. Ouvia-a claramente, mas não conseguia saber de onde vinha o som. Soava abafado. De repente, parecia vir de dentro das paredes. Quem poderia estar escondido ali? Dirigiu-se para trás da cama. Tateou os quadros pendurados. Uma risada incômoda tomou todo o quarto. Estava nitidamente sendo ridículo.
— Isso mesmo. Ridículo.
— Mas como sabe? Eu não falei a palavra “ridículo” em momento nenhum.
— Certas coisas não precisam ser faladas.
— Pai Nosso que estais no céu...
— Santificado seja o Vosso nome — complementou.
— Você vai continuar finalizando a minha oração?
— Acho que sim. Você sabe finalizá-la sem depender de mim?
— Mas não sei nem quem é você.
— Vamos continuar, então: Venha a nós o Vosso reino. Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos dai hoje. Prossiga.
— Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.
Parou por uns minutos, encarando o chão. Estava manchado. Sentiu afinidade e desligou-se da oração. Olhou em direção à mesa de cabeceira. Ali, continuava o porta-retrato. O vidro conservava as rachaduras do dia em que ele foi lançado contra a parede. Mas mantinha-o no lugar de origem, com o mesmo retrato em branco e preto.
— É sintomático você esquecer o “Pai Nosso” justamente no momento em que pediria para que Ele não te deixe cair em tentação. Será que conseguirá? — uma gargalhada ecoou pelo ambiente. Sem perceber, ele se dirigiu até a mesa em uma súbita mudança de intenções. Segurou o porta-retrato e, mais uma vez, repetiu a cena: lançou-o contra a parede. Desta vez, o objeto ficou completamente destruído.
Abismado com a ação, correu, entre risadas alheias, em direção ao quadro. Resgatou o retrato. O mesmo sorriso, não destruído pelo tempo e suas reviravoltas. O olhar penetrante. Intrigante. Em branco e preto. Chutou os cacos. Caminhou e colocou a fotografia sob os travesseiros. O silêncio novamente dominou o quarto. “Não nos deixeis cair em tentação. Mas livrai-nos de todo o mal. Amém.”
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Julho, 19
12/07/2017 | 08h49
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Sempre fui considerado o mau elemento. Todas as mães de todos os colegas de todas as origens rechaçavam a minha presença em suas casas. Doía. Junto a mim, crescia a revolta. Mesmo nos meus bons momentos, havia o olhar de desconfiança.
Aos 11 anos, gritei. Pela primeira vez, reuni todo o fôlego possível e pus para fora, sem dó nem piedade. E olhei nos olhos dos três homens que estavam parados na minha direção. “Vocês são uns merdas”. Onze anos. Em troca, recebi um tapa na cara. Meu pai desferiu o golpe. Doeu menos do que a rejeição. Meus irmãos riram. Mais velhos. Mais sarcásticos. Mais duros.
Aos 14, eu os mandei para as putas que os haviam parido. Outro tapa. Mais forte. A dor foi equivalente ao desejo de me vingar. Minha mãe, acuada, me olhava com lágrimas nos olhos. O que me restava de bom, eu devia a ela. Mas era pouco. Desgastava-se dia a dia, em uma velocidade diretamente proporcional à sensação de perda que carregava comigo.
Dezessete. Cheguei à minha casa e flagrei meu pai batendo em minha mãe. Seus outros dois filhos não moravam mais conosco. A mulher que, com seu jeito reservado e medroso, deu os dias por mim. Sentia o gosto do sangue em minha boca. A saliva estava impregnada de rancor. Nunca mais permitiria isso. Quem ele pensava que era? Um homem que em nada auxiliou os filhos. Fui à rua. Quis experimentar drogas e bebidas como se fosse o último dia.
E era. Mudanças começaram dentro de mim. Não tinha mais condições de ser menino. Precisava ser homem.
Com 19 anos, andava pelas ruas do meu bairro. Sentia-me perdido. Reconhecer isso era ruim. Perigoso. Como se mais nada me restasse nesse mundo. Após passar em frente a um bar, ouvi um grupo cantando “parabéns para você, nesta data querida”, enquanto olhava em minha direção. Dezenove de julho. Agora, 20 anos. Não conseguia receber carinho. Não me reconhecia. Não sentia o dia como meu. Agradeci e corri.
Corri feito uma criança que se perde dos pais em um supermercado lotado. Eu me perdi. Em ruas vazias. À espera do que não podia nomear. Vinte amargos anos. Será que minha mãe se lembraria da data? Uma ponta de alegria sorriu em meu peito. Novamente, corri para casa. Quem sabe nascia a possibilidade de momentos de paz?
Vinte anos. Poucos sorrisos. Experiências equivalentes a 40. E um menino pronto a receber um abraço. De aniversário. De amor. Ou só de consolo.
Abri a porta. Minha mãe chorava sobre o bolo. Tinha marcas no rosto. “Fazer festinha para vagabundo? Sabe por que você fez? Porque também é uma vagabunda!” Todo o peso da mão de meu pai caia no rosto dela. Não reagia. Sem ação. Morta por dentro.
Não me lembro dos detalhes. Bati a porta. Me lancei sobre ele. Ficou desacordado. O sangue inundou a sala. Os gritos dela. Em choque. Homens fardados entraram. Olharam a cena. Aos pés dele, o filho atormentado. Mãos marcadas. Não havia dúvidas.
“Não precisava ter terminado assim. Uma tragédia. Dor sem fim, meu filho. Meu menino.” Ela repetia as mesmas frases em todas as visitas, desde então. Perturbava-me. Não entendia. Nunca entendi. Vinte anos. Mais dois confinado entre homens, ratos, mijos e o mantra de minha mãe. Todas as noites, no embalo do meu sono, rolam as lágrimas dela.
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Cenas de um crime
05/06/2017 | 15h56
Meninos observam a cena do crime
Meninos observam a cena do crime / Paulo Pinheiro
Início de segunda-feira. Dia 5 de junho de 2017. Na comunidade Sapo I, em Campos, os moradores se agrupavam na porta de uma casa onde uma adolescente foi morta a tiros na madrugada. Três disparos: dois no rosto — um com entrada e saída e outro alojado na face — e um na mão, no momento em que a menina, de 15 anos, tentou se defender.
Na rua, poucas pessoas falavam sobre a história. Uns comentavam possíveis fatos relacionados à vida da família. Outros olhavam a imprensa, com expressão de medo e desafio. Crianças se espalhavam pelas calçadas. Brincando, rindo, correndo. Um celular tocava funk, contrapondo-se ao clima pós-assassinato. Meninos conversavam. Um deles portava um grande pedaço de madeira, que se tornou um cajado durante as brincadeiras.
Foram contabilizadas 30 crianças. Adultos andavam ao redor delas. Dentro da casa, permanecia o corpo. Na sala. No chão. O crime aconteceu na madrugada. Os familiares não falaram sobre o caso. Apenas um irmão transitava pelas calçadas, ora conversando com policiais, ora em silêncio. Horas depois do fato, a mãe da adolescente apareceu no local. Ela passava pelas pessoas enquanto repetia, entre lágrimas, “minha filha, minha filha. Cadê a minha filha? Eu quero a minha filha”.
Desde as 7h, policiais se revezavam na cena do crime. As equipes de reportagem chegaram aproximadamente uma hora depois. Todos esperavam o desfecho da primeira parte do caso. No final da manhã, peritos fizeram uma análise prévia. No momento da retirada do corpo da adolescente, um rapaz, também menor de idade, fumava, encostado a um muro em frente à casa da garota.
Com cabelo parcialmente raspado, reflexos louros e uma tatuagem no pescoço, ele observava a movimentação. Os militares que atuavam na ocorrência foram em direção ao adolescente. Detiveram-no. Questionaram o menino. Havia suspeita de sua participação no crime. Ao redor, os moradores gritavam contra a ação. Era absurda. Não tinha por que levá-lo. Ameaçaram. Houve discussão e irritação dos dois lados.
O menino, que assistia a tudo calado, mantinha o olhar duro. Rígido. Sua expressão não mudou. Não demonstrou reações. Não contestou o ato dos policiais. Não falou. Nem tentou se defender. Continuava em sua observação silenciosa, analisando os detalhes da cena de um crime possivelmente conhecido enquanto se livrava dos últimos tragos de um cigarro.
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Descuidos
02/06/2017 | 08h58
Por mais um milésimo de segundo descuidado, percebi um toque.
Por mais um milésimo de segundo descuidado, percebi um toque. / pixabay
Você estava aqui. Agora. Ao meu lado. Por um milésimo de segundo descuidado, senti sua respiração. E vi seus olhos, que olhavam os meus, fechados. Diferente. Seu brilho parecia intenso. Ora frio. Ora próximo. Ora distante. Ora, as horas se passavam sem que eu soubesse a exatidão do tempo. Da vida. De nós.
Por mais um milésimo de segundo descuidado, percebi um toque. O vento. Um sopro. Quente. Uma sensação que me envolvia de forma inesperada. Ora, quem poderia esperar? Uma aparição breve. Ali. Ao meu lado. Por descuidos, a gente tropeça na vida. E ela esbarra na gente.
Os olhos pousados sobre mim. Eu queria abrir e ver o que seria capaz de encontrar, mas os mantive cerrados. Outros milésimos de segundos descuidados poderiam esbarrar na minha vida de tropeços. O sonho. Um momento para procurar, em terreno seguro, os segundos de descuido e transformá-los em horas de paz.
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Sobre o autor

Paula Vigneron

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