Arthur Soffiati - Ilha de Marajó
* Arthur Soffiati - Atualizado em 02/11/2022 09:04
Visitei a ilha de Marajó duas vezes. A primeira foi uma visita presencial. Saímos de Belém e navegamos o rio Amazonas por 4:30 horas até Salvaterra. De ônibus, chegamos a Soure, cidade considerada capital do arquipélago. Tanto Salvaterra quanto Soure nomeiam vilas portuguesas. Aliás, Portugal está muito presente no norte do Brasil. Passamos alguns dias em Soure, montamos búfalos e estivemos em contato com lindas paisagens. Não encontramos nenhuma forma de violência, como se tem propalado recentemente. Até os búfalos são gentis e dóceis.
A segunda viagem foi virtual. Dessa vez sozinho, parti de Belém, subi o rio Arari, na ilha de Marajó, até o lago do mesmo nome. Passei por Santana e cheguei a Cachoeira do Arari. Hospedei-me nessa pequena cidade e visitei o Museu do Marajó. Confirmei a impressão que tive em Soure: a cultura dominante no arquipélago de Marajó é ocidental, mas já adaptada a um ambiente diferente do português e europeu de um modo geral. Um ambiente líquido com muita floresta e povos nativos (ainda). É a cultura ocidental adaptada ao maior bioma brasileiro, onde a língua portuguesa é falada de maneira bastante parecida com o português de Portugal. Mas o sotaque é diferente. É sibilado como o carioca. Existe um traço forte nessa cultura euopeia-portuguesa-adaptada a um novo ambiente: a força simbólica da cultura indígena marajoara. Os motivos visuais dessa cultura, embora não mais vivida, continuam sendo explorados localmente e para fins comerciais. O Museu do Marajó evidencia minha impressão, o que confirmei em “A ilha de Marajó: estudo econômico-social”, de Nunes Pereira (Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/Divisão de Caça e Pesca, 1956).
Em 1927, Mário de Andrade subiu o rio Amazonas até Iquitos, no Peru. De volta a Belém, ele fez a mesma viagem que estou empreendendo virtualmente. Ele também incursionou brevemente no lago de Arari e deixou o seguinte registro no dia 29/6/1927: “Vamos a Marajó. Às cinco e muito tomamos a lancha Ernestina pra atravessar a baía. Pelas oito, tomamos a Tucunaré menorzinha, e entramos pela boca do rio Arari. Marchas e paradinhas. Santana. Cachoeira. Paraíso com seus búfalos. S. Joaquim, com seus búfalos. Só brasileiro mesmo, além de zebu, se lembrava de criar búfalo africano; cruzamento de caneiro e porco... Enfim estamos noutra espécie de paisagem amazônica. O Arari principiou com um matinho ralo dos lados e uns igarapezóides de uma simpatia incomparável. As ingazeiras cobrem inteiramente as margens, folhudas, rechonchudas, lavando os galhos n’água do rio. Uns macaquinhos voam de galho em galho. As aningas floridas. De vez em quando o voo baixo das ciganas, parecem pesar toneladas. E uma abundância de trepadeirinha lilás, de que ninguém sabe o nome, cobrindo as margens folhudas. E a vista se abre em novos horizontes. São campos imensos, de um verde claro, intenso, com ilhas de mato ao longe, nítidas, de um verde escuro que recorta o céu e campo.” Balança lembra a Escócia. Concordo com erudição, meio irritado. É Marajó, gente! A Escócia tem jaçanãs também? Tem garças? E tem este rio Arari, que não acaba e vai se estreitando cada vez mais, deixando imagens voluptuosas na sensação completamente descontrolada? E a Escócia tem este inferno de gado orelhudo, estes zebus e estes búfalos, rebaixando estes campos de beleza sublime!... Garças, garças, garças, uma colhereira dum rosa vivo no ar! E enfim passamos num primeiro pouso de pássaros que me destrói de comoção. Não se descreve, não se pode imaginar. São milhares de guarás encarnados, de colhereiras-cor-de-rosa, de garças brancas, de tuiuiús, de mauaris, branco, negro, cinza, nas árvores altas, no chão de relva verde claro. E quando a gente faz um barulho de propósito, um tiro no ar, tudo voa em revoadas doidas, de fuga, voa, baila no ar, vermelhos, rosas, brancos mesclados, batidos de sol nítido. Caí no chão da lanchinha. Foram ver, era simplesmente isso, caí no chão! O estado emotivo foi tão forte que me faltaram as pernas, caí no chão. Para contrabalançar a poesia deste tombo: me lembro, em rapazinho, quando torcia por futebol, num jogo entre meu adorado Paulistano e o São Paulo Athletic, quando este fez gol que me roubou a taça de campeonato, caí no chão. Mas agora, sempre sou homem, desbastado pelas experiências e prazeres. E a beleza de Marajó com sua passarada me derrubou no chão. Os outros riem. Dona Olívia acha uma graça enorme no meu tombo. Mas imagino que ela está rindo um pouco forçada. Também ela queria cair no chão, nesta felicidade que ela nunca viu. Os olhos bonitos dela são lindíssimos. Arapapás, mauaris, pavõezinhos. Guará misturado com frango d’água. Um jacaré envernizado, foge, se deixa cair n’água. Uma colhereira no meio de um, dois, três tuiuiús. O mergulhão, nadando corpo inteirinho dentro d’água. Só o pescocinho fino e a cabecita de fora, vira pra aqui, vira pr’acolá, fugindo de nós. Porém, a lancha é mais rápida, ele abriu num voo molhado, foi se esconder longe. Malhada é o lugar em que, de costume, os rebanhos se reúnem diariamente, olhe a malhada! Campos de uma chateza esportiva, drenados de seu natural... Iritauá amarelo vivo e preto, outro de costa encarnada, asa e cabeça preta. A tracajazinha em cima do pau, cai n’água. E lá no longe, o fundo das queimadas.
Parada em Tuiuiú, onde passaremos a noite. É um desespero. Bilhões, bilhões de carapanãs. Pela primeira vez, não resisto e me emporcalho da tal pomada inglesa, feita com citronela de Java, bom cheirinho aliás. Tenho pelotes de pomada na cara. Mas os carapanãs vêm feitos sobre a cara, atravessam a graxa, mordem, e morrem grudados na pomadaria. É pavoroso. Janta: ovos de pato seco. Tem um pixezinho desagradável quando não sabem tratá-lo bem, como agora. E cantamos! Cantamos assim mesmo, engolindo mosquito (“O turista aprendiz”. São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976).
Mário estava acompanhado de Olívia Guedes Penteado, senhora rica da sociedade paulistana e conhecida mecenas das artes, e de Margarida Guedes Nogueira, sobrinha dela. Mário a apelidou de Trombeta, chegando a esboçar um romance intitulado “Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma”, que não foi concluído (São Paulo: Instituto Moreira Salles/Instituto de Estudos Brasileiros, 1994). Muitos e muitos outros projetos Mário não concluiu. Foi grande a arte em seu espírito, mas curta a sua vida. Mário ficou fascinado com o lago Arari, com sua vegetação e com sua fauna, sobretudo com as aves. Ele não gostava dos búfalos e do zebu, ambos indianos e não africanos, como escreve. Seria por razões nacionalistas? Ele lança as bases de um paisagismo brasileiro, embora incluísse mangueiras. Talvez pensasse que elas eram nativas do Brasil. Como as duas raças de animais, ela — a mangueira — também tem origem indiana. Mário não gosta da comparação que Margarida faz entre os lagos da Escócia e o lago de Arari, percebendo claramente a diferença entre as paisagens europeia e amazônica. Realça também a singularidade do arquipélago de Marajá no âmbito da paisagem amazônica.
Continuei a viagem rumo ao lago Arari. Passei São Joaquim e por Tuiuiú, lugarejo em que Mário pernoitou em seu retorno a Belém. Onde ele terá conseguido pousada num lugar tão pequeno? Devia ser menor ainda em 1927. Tudo aqui é muito amplo. No encontro do rio com o lago, cruzamos a vila aquática de Jenipapo, integrante de Cachoeira de Arari. Circulamos apenas pelas margens sul e oeste do lago, até Santa Cruz do Arari. O lago não tem mais o encanto e a integridade apresentados na década de 1920. Em grande parte, a vegetação e a fauna de aves mudaram. Ficaram mais pobres. Mas ainda há razões para se encantar com o lugar. É um mundo de água. Embora existam búfalos por toda a parte, a flora e a fauna nativas ainda são exuberantes.
Não era possível ficar mais tempo. Precisávamos voltar para Cachoeira do Arari. Não queríamos ser picados por carapanãs, esse inseto que suga nosso sangue como uma seringa. Mário não se livrou deles, mesmo prevenido. Na pousada de Cachoeira, havia refúgio que me protegesse. Mas fiz questão de pedir ovos de pato cozidos no jantar, como Mário. Dormi bem. No dia seguinte, fiz um passeio pela cidade. Creio que a cruzei de ponta a ponta, em X. De novo no museu da cidade e da ilha. Arte marajoara. Compra de livros. Encontrei um autor nascido em Cachoeira. Trata-se de Dalcidio Jurandir. Ele ganhou renome nacional com seu romance “Chove nos campos de Cachoeira”, lançado em 1941 pela Editora Vecchi. Consegui a primeira edição. Comprei também “Marajó” (1947) e “Três casas e um rio” (1958). Ele foi premiado pela Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra. Foram, ao todo, dez romances. Como não descobri esse escritor antes? Ele integra o grupo de escritores do primeiro regionalismo ao lado de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Bernardo Elis, Jorge Amado, José Cândido de Carvalho, Roque Callage e outros.
Comecei a ler “Chove nos campos de Cachoeiro”, ambientado na cidade por onde passei. O estilo do autor é bem típico desse primeiro regionalismo. Sua linguagem é sonora, com o uso de expressões do norte do Brasil, do Pará, de Belém e de Marajó. Creio que nenhum outro autor enfocou tão bem a realidade da ilha. As palavras que usa foram colhidas da boca do povo e até mereceram uma pesquisa de Rosa de Assis que resultou numa espécie de dicionário: “O vocabulário popular em Dalcídio Jurandir” (Belém: UFPA, 1992).
Era relativamente comum escritores do primeiro regionalismo serem socialistas. Afinal, eles lidavam com uma realidade social bastante cruel, que ainda hoje presenciamos. É que o mundo mudou. As peculiaridades regionais estão se esgarçando ou já esgarçadas. Uma das linhas da literatura brasileira é o realismo nacional e internacional. Fala-se no retorno ao regionalismo, mas o regional está muito descaracterizado, como mostram Ronaldo Correia de Brito, com relação ao Nordeste, e Edyr Augusto, com relação ao Pará. Este segundo autor tem como tema dos seus livros a violência que domina do norte do Brasil. Ele chega mesmo a exagerar tal violência, que estaria nos porões ou mesmo no cotidiano da região. É interessante o confronto de Dalcídio Juradir e Edyr Augusto. Sugiro a leitura de ambos para que se possa comparar, pela literatura, o passado com o presente.

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