Arthur Soffiati - Filmes centenários (final)
* Arthur Soffiati - Atualizado em 27/06/2022 22:54
Já é hora de encerrar estes comentários. Os principais filmes de 1922 mereceram atenção nos artigos anteriores. No gênero drama, destacamos “Esposas ingênuas”, “Dr. Mabuse”, “A esposa do faraó” e “A sorridente madame Beudet”. Concluímos hoje com o filme russo “Polikushka”. Na comédia, enfocamos “O dia do pagamento” e “O menino da vovó”. No gênero aventura, mereceu destaque “As aventuras de Robin Hood”. O terror foi representado por “Nosferatu”, um dos mais famosos filmes de todos os tempos. Como documentários, abordamos “Nanook” e “Haxan”, dois renomados filmes. Concluímos com “Pasteur” e “No país das Amazonas”. Existem alguns mais que talvez mereçam comentários ainda em 2022. Hoje encerramos com a inclusão de desenhos animados.

“Polikushka”
Trata-se de um conto de Tolstoi levado às telas mais de uma vez. Tolstoi foi mais simpático ao realismo social russo e soviético do que Dostoievski, com seus personagens atormentados. Tolstoi tinha preocupações sociais. O camponês Polikushka é um homem simples, insignificante e meio imaginoso. Bem-humorado, sua personalidade não é das mais fortes. Gosta de bebida. Para conseguir vodka, comete pequenos furtos. Um dia ele é incumbido por um família nobre a trazer uma grande importância monetária da cidade. Agradecido a uma senhora rica, ele beija suas mãos e pés. Ele pretende desempenhar-se bem da tarefa. Mas dará tudo errado num mundo ainda feudal, com profundas diferenças entre pobres e ricos. O enfoque do drama feito pelo diretor Aleksandr Sanin se enquadra perfeitamente numa estética consolidada pela Revolução de 1917 e que ficou conhecida como realismo social soviético: o herói romântico individual norte-americano é substituído pelo herói trágico ou o herói social.
Na cidade, a tarefa de Polikushka torna-se um tormento. Ele é tomado de um grande medo de fracassar. Volta para a aldeia com o dinheiro escondido no chapéu. No caminho, ele perde o dinheiro ao dormir e sonhar com o sucesso da missão. Ao dar falta do dinheiro, ele procura o envelope e não o encontra. Diante do fracasso, acaba se enforcando.

“O enrascado”
Em 1922, os três principais comediantes então em ação estrearam filmes. Charles Chaplin lançou “Dia de pagamento”, seu último curta, já comentado aqui. Harold Lloyd lançou dois. Comentamos “O menino da vovó”. Buster Keaton estreou a fabulosa cifra de seis. Não cabendo mais comentar todos, escolhi “O enrascado” (Cops). Como sempre, o comediante mantém sua fisionomia impassível, aumentando mais ainda o humor, pois o público espera que o ator participe de alguma forma com suas expressões e feições. Na primeira cena, Keaton conversa com uma jovem mulher separado dela por uma grade. Tem-se a impressão de que ele está na cadeia. Mas trata-se apenas do portão de uma mansão. A segunda cena se refere ao encontro de Keaton com um homem rico, que acaba perdendo o dinheiro para o comediante. No terceiro momento, Keaton perde parte do dinheiro que conseguiu para um espertalhão, que lhe vende móveis de uma mudança como se fossem seus. Keaton, então, conduz a carroça com os móveis, criando cenas impagáveis. A carroça acaba entrando numa parada de policiais diante de autoridades. As cenas mostram todo o vigor físico de Keaton, que pratica os mais engraçados malabarismos. A fotografia revela-se excelente depois de cem anos.

“No país das Amazonas”
Foi o filme mais caro produzido no Brasil até 1922 e por muito tempo mais. “No país das Amazonas” é um documentário mudo dirigido por Silvino Santos e produzido por Joaquim Gonçalves Araújo. Seu caráter é promocional. Araújo contratou Silvino Santos para filmar aspectos do desenvolvimento da Amazônia com destaque para seus empreendimentos. Silvino era português. Imigrou para o Brasil com 13 anos em 1899. Juntamente com o major Luiz Thomaz Reis, foi um dos primeiros a filmar a Amazônia. Ele conheceu Joaquim Gonçalves de Araújo em 1920. O empresário da borracha contratou Silvino para produzir o documentário. Seu objetivo era exibi-lo na Exposição Internacional do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro. O documentário se concentra nos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, entrando em Roraima.
O filme foi bem planejado e bem filmado, mas não tão bem editado. O tempo de duração dele é de duas horas e sete minutos. Ao todo, é composto por dez blocos temáticos sobre extrativismo vegetal e animal, além da criação de gado. A floresta e a fauna nativa não são tão exploradas. O enfoque recai mais nos rios e lagos, nas áreas não florestadas ou desmatadas, nas cidades, nos povos nativos, nos trabalhadores e nas cidades. O extrativismo era a base da economia amazônida. O látex extraído da seringueira e da balateira, o guaraná, o fumo, a castanha do Pará, os peixes, as tartarugas e jacarés e o peixe-boi são os mais destacados. A madeira aparece nos rios para ser embarcada. As toras boiam até serem embarcadas. Mário de Andrade registrou o embarque de madeira para os Estados Unidos, onde seriam transformadas em vitrolas, em sua viagem etnográfica de 1927.
Destacam-se também as cachoeiras nos limites da planície aluvial, os animais caçados, as curiosidades da fauna e dos índios. Há pitadas de informação científica. A profusão de borboletas, que também encantaram Mário de Andrade e por ele foram registradas em foto. Um toque de curiosidade foi focalizar um pequeno macaco tentando quebrar castanha do Pará com uma pedra, como deviam fazer os ancestrais dos humanos. O registro acaba por adquirir importância científica.
Mas o que chama a atenção é a visão da natureza então reinante. Por mais que ela merecesse admiração, entendia-se que ela deveria ser dominada e explorada. E não havia nenhuma necessidade de ocultar a enorme matança de peixes, tartarugas, peixes-boi, ovos e corte de madeira. Era a civilização que estava em marcha. Não há preconceito em relação a índios e trabalhadores. No caso dos primeiros, suas danças e rituais entram como exotismo a ser registrado e divulgado. No caso dos segundos, homens e mulheres aparecem quase sempre trajando branco e apresentando uma dignidade perdida. Notei esse detalhe visitando a fazenda da Abadia em Campos. Numa casa integrante de uma vila de trabalhadores, deparei-me com uma foto do casamento católico do casal: ele de terno e ela de noiva. Tal cerimônia tornou-se um luxo entre os pobres. Mas a exploração dos trabalhadores é apresentada com naturalidade, como parte necessária ao desenvolvimento da região e do país.
Chamam a atenção também as cidades. Elas eram mais belas que atualmente. Sobretudo Manaus, que degradou-se ao longo dos anos. O filme foi eleito pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, em 2017, como um dos cem melhores documentários brasileiros de todos os tempos.

“Pasteur”
Pouco mais de três meses depois da Proclamação da Independência oficial do Brasil, nasceu na França Louis Pasteur, que seria o fundador da microbiologia. No centenário de seu nascimento, em 1922, o governo francês convidou Jean Epstein a dirigir um documentário sobre o cientista. O diretor de “A queda da casa de Usher” (1929) começava sua carreira de cineasta. O documentário é parcialmente dramatizado. Ao lado de mostrar factualmente as experiências e as descobertas do cientista, sua vida é contada por atores, como era hábito na época. A fotografia é de ótima qualidade, assim como o roteiro e a montagem do filme. Em pouco mais de 50 minutos, Epstein construiu um documentário que ainda hoje seria ilustrativo se ganhasse som.

“Gato Félix”
Antes de Félix (“Felix the cat”), já existia desenho animado. Era comum um desenho de quadrinho pular para o cinema. No caso de Felix, aconteceu o contrário: ele começou no cinema e pulou para as tiras publicadas em jornal. Existe uma discussão sobre o seu criador. O desenhista australiano Pat Sullivan reivindicou a sua paternidade. Otto Messmer, principal animador de Sullivan, fez o mesmo. Não importa a briga judicial porque Félix ganhou autonomia nas telas, transformando-se no primeiro grande sucesso da animação cinematográfica. Esse primeiro gato, silencioso e em preto e branco, foi a melhor versão do personagem. Cedo, os cineastas descobriram que cinema é magia. O desenho animado permitia mais. Félix vivia num mundo surreal, podendo se deslocar de um ambiente europeu para o passado. A metalinguagem, recurso muito usado nos quadrinhos, alcança ponto alto em Félix. Quando necessita de algum recurso para sair de situações delicadas, Félix apela para os efeitos especiais. Num filme mudo com pessoas, dúvida pode ser representada com a mão segurando o queixo. Nos quadrinhos, a dúvida, a pergunta é representada por um ponto de interrogação que, na verdade, não existe. Pois Félix materializava a interrogação como gancho que amarrava numa corda para escalar um muro. Ou tinha várias dúvidas para contar com vários ganchos e os transformar numa escada. Outros elementos usados nos quadrinhos são materializados por Félix.
Algumas animações curtas do gato Félix foram lançadas em 1922, mostrando sempre a liberdade com que o gato criava situações para resolver seus problemas. Ele tentou se adaptar ao cinema sonoro, mas não conseguiu competir com a Disney. Mais tarde, Félix voltou às telas em cores, portando uma valise onde ficavam acondicionados os seus truques. Os recursos especiais foram guardados e se tornaram materiais. Félix nunca mais voltou a ser o mesmo.
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