Arthur Soffiati - Filmes centenários (III)
Arthur Soffiati - Atualizado em 13/06/2022 20:39
Os três mais conhecidos filmes lançados em 1922 são comentados hoje. “Nosferatu” é a primeira adaptação de “Drácula”. O filme marcou época e influenciou o gênero terror. O que vem a ser esse gênero? Ao contrário da classificação corrente, não é apenas o filme que cria suspense, mas o filme que recorre ao sobrenatural. Drácula é uma figura sobrenatural. O segundo é o documentário “Nanook, o esquimó do norte”, que também criou o estereótipo do esquimó nos filmes que o sucederam. O terceiro é o célebre “Häxan”, documentário sobre feitiçaria no ocidente, mais especificamente na chamada Idade Média. Há alguns filmes mais a serem abordados na próxima quinzena. Esses comentários já se estendem muito. É preciso parar.

Nosferatu
Em 1922, Friedrich Wilhelm Murnau produziu quatro filmes: “A contrabandista”, “Terra em chamas”, “Fantasma” e “Nosferatu, uma sinfonia de horrores”. Sem dúvida, “Nosferatu” superou todos os outros três e se tornou um clássico do cinema. Trata-se da primeira adaptação bem-sucedida para o cinema de “Drácula”, romance gótico escrito pelo irlandês Bram Stoker em 1897. A história do Conde Drácula é bastante conhecida por ter sido levada às telas diversas vezes.
O que não se conhece devidamente é o contexto em que as histórias de terror foram concebidas no século XIX. A partir do Congresso de Viena, em 1815, começou a se definir a diferença entre o oeste e o leste europeus. O oeste era representado por países democráticos ou com tendências democráticas. O leste era representado por países conservadores. Todos eram percebidos como capitalistas. A princípio, não se tornou clara uma forte diferença ideológica, como, mais tarde, entre capitalismo e comunismo. Do leste, veio a Peste Negra, na Idade Média. De lá, virá sempre o aterrorizante, o mal e o irracional.
No final da Primeira Guerra Mundial (1914-18), a diferença entre leste e oeste foi sistematizada até para dar razão ao ocidente. Este era constituído pelos Estados Unidos, que se formaram depois de uma revolução liberal em 1776, dando ao país uma Constituição republicana e democrática. A França era o berço do espírito revolucionário. A política do país oscilou entre democracia e autoritarismo, entre república e monarquia, triunfando a república. Na Inglaterra, uma revolução corroeu a monarquia, introduzindo nela o parlamentarismo.
Enquanto isso, a Alemanha teve uma história autoritária até o fim do conflito, quando foi obrigada a adotar uma república instável. A Áustria criou com a Hungria uma diarquia, e a Rússia era então considerada um país ainda feudal. O império turco era um corpo estranho, o “homem doente da Europa”, como era então conhecido. No entanto, Alemanha e Áustria eram países desenvolvidos culturalmente. A Rússia conheceu uma explosão de excelentes literatos e compositores. Por interesses regionais, a Rússia foi aceita numa união com a Inglaterra e a França até a eclosão da revolução comunista de 1917.
Observemos que as histórias cercadas de obscurantismo são ambientadas na Europa Oriental, ainda que escritas na Europa Ocidental. O monstro de Frankenstein nasce na Suíça, país então colocado no espírito oriental. Drácula migra da Transilvânia para a Inglaterra, trazendo peste, terror e morte. Os filmes de Ernst Lubitsch retratam bem o dualismo oriente-ocidente. Mas, ele é um cineasta apaixonado pelo conservadorismo da Europa Oriental, embora aceite trabalhar nos Estados Unidos. O expressionismo alemão vinha do renascimento. Cores escuras, sombras, trevas.
Os três grandes expressionistas alemães — Murnau, Fritz Lang e Pabst — utilizaram estes recursos com sucesso. Eles criaram uma linguagem cinematográfica que fala em lugar das palavras. O cinema mudo exigia, mais que o cinema falado, a linguagem da imagem. Os cineastas alemães foram trabalhar nos Estados Unidos e fizeram sucesso. No princípio, eles mantiveram a gramática expressionista, mas aos poucos tiveram de abandoná-la em nome da indústria cinematográfica dos Estados Unidos. Esta gramática perdurou parcialmente nos filmes noir.
“Nosferatu” é uma joia do cinema. É o primeiro filme de terror que assusta. “A mansão do diabo”, de George Meliès (1896), “Os olhos da múmia”, de Ernst Lubitsch (1918), “O gabinete do Dr. Caligari” (1920), de Robert Wiene, e “Carruagem fantasma” (1921) de Victor Sjöström, não causaram o mesmo impacto que “Nosferatu”. Assim, Murnau merece o título de fundador do gênero terror, sabendo muito bem lidar com o sobrenatural. A estada do corretor de imóveis no castelo do conde Orlock (Nosferatu) é apavorante ainda hoje. Assim também a viagem de Nosferatu da Transilvânia à Europa Ocidental (no filme, seu destino é Bremen e não a Inglaterra). Nosferatu seduz. A mulher do corretor lhe oferece o pescoço, como bem mais tarde a linda Isabelle Adjani fará em “Nosferatu” de Werner Herzog. Sua aproximação é precedida de ratos, peste e mortes. Sua sombra é percebida à longa distância.
E a fotografia? Há tomadas magníficas de paisagens. O enfoque das velas do navio de cima para baixo de forma oblíqua é marca de gênio. “Nosferatu” pode ser considerado o grande lançamento de 1922.

Nanook, o esquimó
“Nanook, o esquimó” (“Nanook of the north”), filme dirigido por Robert Flaherty e lançado em 1922, é um marco no gênero documentário. Os filmes posteriores com esquimós tomaram Nanook como modelo. Nos bastidores, sua história não é das mais recomendadas. A empresa Revillon Frees, comerciante de peles, investiu 50 mil dólares na sua produção. Duas economias distintas vivendo de peles. A economia dos esquimós já deixava de ser de subsistência para ser de troca. O mercado já está presente, e o filme mostra esta presença no seu início. A economia da empresa que parcialmente financiou o filme valia-se das peles para artigos mercantis.
Os críticos acusam Flaherty de mostrar uma realidade postiça em seu documentário. Parece que a crítica não é mais cabível. Não seria possível focalizar a vida de qualquer povo estranho à cultura ocidental, ainda que de forma parcial, sem algum rudimento da cultura daquele que tem a câmara em sua mão. Como disse Marshall McLuhan, basta ver uma televisão transmitindo rabiscos para começar a ter uma nova atitude. Não seria possível filmar o cotidiano dos esquimós sem que houvesse uma combinação prévia. Sem, de certa forma, preparar o povo focalizado para realizar o documentário.
Não importa se Flaherty estereotipou os esquimós para torná-los mais palatáveis ao ocidente. Não importa se Nanook chamava-se Allakariallak na vida real. Não importa se a esposa de Nanook não era realmente sua esposa. Não importa se os esquimós de Flaherty já estavam ocidentalizados, caçando com armas de fogo em vez de usarem armas tradicionais. O que ele faz é tentar resgatar o modo de vida tradicional dos inuítes (esquimós) como um registro histórico. O que ele faz é reconstituir aspectos da vida tradicional dos esquimós, assim como fez com outros filmes de forma mais criticável. Vide, por exemplo, “Os pescadores de Aran”, em que o diretor forja cenas irreais e perigosas que o povo não costumava viver na sua realidade cotidiana.
Flaherty também foi acusado de representar os esquimós como criaturas sub-humanas. Esse aspecto não parece muito claro. O que aparece é a vida difícil do povo do gelo, com destaque de Nanook como um líder. Cenas de caça com armas tradicionais, trenós puxados por cães, a relação entre humanos e cães, as técnicas de construção de iglus, as vestimentas, tudo parece original. Mas os inuítes já levam outro tipo de vida. A influência ocidental já havia penetrado em sua cultura. De certa forma, Flaherty mostra essa influência quando aborda as relações do povo do ártico com comerciantes e a admiração que um gramofone causa aos esquimós.
Flaherty se tornou prisioneiro da sua própria cultura na fase de trazer o exótico para o seio da “civilização”. Ele tinha dois caminhos: focalizar o cotidiano dos esquimós ocidentalizados, usando armas de fogo e morando em casas de alvenaria, ou mostrar seus hábitos tradicionais. O que interessaria mais na década de 1920? Sem dúvida, fazer dos esquimós artistas que representassem a si mesmos num contexto não mais existente ou esgarçado. Foi o que fez Murnau em “Tabu”. Jean Rouch foi mais feliz em encontrar uma demanda por filmes focalizando a realidade como ela se apresentava.

Häxan
Em 1920, o diretor Benjamin Christensen concluiu o filme “Häxan - a feitiçaria através dos tempos”, mas só o lançou em 1922. Costumam classificá-lo como terror, mas se trata de um documentário dramatizado, assim como “Nanook”. A diferença entre ambos é que Häxan exigiu uma reconstituição das civilizações antigas e da chamada idade média por meio de imagens originais de época e de algumas recriadas, assim como de artistas profissionais. Não era possível, de fato, realizar um documentário dramatizado sobre tempos já soterrados. Por sua vez, “Nanook” também é uma reconstituição de uma realidade social, só que com as mesmas pessoas que viveram as tradições esquimós. Nanook não usava mais as armas tradicionais para caçar no gelo, mas se lembrava muito bem das técnicas de uso.
Existem duas edições de Häxan: uma sueca, com 104 minutos, e uma norte-americana, com 76 minutos. A original está dividida em sete partes, como era comum na época. Influência do teatro. Falando na primeira pessoa, Christensen se comporta como um professor ou conferencista. Parece uma aula atual, em que o professor se vale de imagens e de personagens para demonstrar as crenças antigas a respeito do sobrenatural. Sua exposição pode ser lida como uma apresentação professoral de superstições a respeito do demônio na Idade Média, acentuando o estigma de era das trevas que paira sobre ela, ou como uma condenação de tais visões. De fato, era difícil ser mulher naquele tempo. O autor mostra que as velhas feias eram as principais vítimas. Muito frequentemente, elas eram acusadas de bruxas íntimas do demônio, atacando crianças e adultos. Mas as jovens e belas também não escapavam do estigma. Um dos testes para saber se a mulher era bruxa ou não consistia em amarrar suas mãos e pés juntos e jogá-la no fosso do castelo. Se afundassem, eram humanas, mas morriam afogadas. Se flutuassem, eram bruxas. Então morriam na fogueira. Em qualquer situação, elas morriam. Mas havia torturas que prolongavam o sofrimento.
Na última parte, ele explica que a bruxaria, pelos estudos recentes da medicina, não passava de histeria feminina e de massas. Era o que se podia explicar na década de 1920. A bruxaria medieval passava disso. Era uma crença coletiva. Mesmo algumas mulheres acusadas de feitiçaria acreditavam realmente serem bruxas. Com as torturas praticadas, qualquer uma confessaria ser feiticeira. Para escapar da dor e da morte, elas reconheciam a acusação que lhes era imputada e acabavam mortas na fogueira.
Nos tempos do diretor, a histeria era um caso a ser tratado pela medicina, não mais pela religião. Mas ele reconhece que o tratamento ainda era discriminatório. Emmanuel Le Roy Ladurie, historiador francês, estudou casos de anovulação durante a Primeira Guerra Mundial. Mulheres sadias não menstruavam, não ovulavam nem engravidavam. Medo do futuro. Passado o conflito, tudo voltou ao normal. Seria um caso de histeria? Sabemos que até pouco tempo atrás, os tratamentos psiquiátricos eram verdadeiras torturas.
O filme foi censurado nos Estados Unidos por conter cenas de nudez e de tortura, mas uma edição rara do filme foi produzida no país. De fato, mulheres são despidas por inquisidores em busca de provas. Geralmente, ficam nuas da cintura para cima e de costas. Em poucos casos, aparecem seios. Numa cena do demônio socando algo com o pilão, sugere-se masturbação. Em vários momentos, o diabo aparece com a língua de fora em movimento, como se desejasse sexo oral. Mas o filme é sóbrio. Se deseja explicar, não deseja escandalizar. O diretor se vale de pinturas de Bosch e Bruegel, tendo influenciado “A paixão de Joana D’Arc”, de Dreyer, outra obra prima dos países nórdicos.

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