Arthur Soffiati - Filmes centenários (II)
Matheus Berriel - Atualizado em 30/05/2022 18:35
Continuando os comentários sobre os filmes lançados em 1922, há 100 anos passados, portanto, destacamos um drama, um filme de aventura e duas comédias. Por limitações de espaço, o drama “Esposas ingênuas”, de Erich von Stroheim, e as comédias de Buster Keaton deverão merecer comentários no próximo artigo.

Sangue e areia
“Sangue e areia”, filme de 1922 dirigido por Fred Niblo, tangencia a tragédia de “Carmen”, livro de Prosper Mérimée, escrito e publicado em 1845. A história se prestou bastante a adaptações. Georges Bizet compôs uma ópera com o mesmo nome, que o imortalizou. É o trabalho mais conhecido do compositor francês. No cinema, o romance trágico ganhou várias versões. As primeiras foram dirigidas por Cecil B. DeMille, em 1915, e por Ernst Lubitsch, em 1918. O sucesso da história talvez se explique pelo famoso triângulo amoroso. No caso de Carmen, uma mulher virtuosa, recatada, talhada para ser esposa fiel e mãe e apaixonada pelo homem que será seu marido. Do outro lado, uma mulher sensual, mundana, interesseira, incapaz de ser fiel, e cigana. No meio, um militar íntegro que se apaixona pela cigana e comete crimes por sua causa. A paixão é tão doentia que ele acaba matando Carmen e se matando em seguida, por excesso de ciúme.
“Sangue e areia” também centra-se num triângulo amoroso: um toureiro que se torna famoso, casado com uma mulher dedicada e fiel, que se apaixona por uma mulher da alta sociedade com fama de devoradora de homens. Por mais que o toureiro, representado por Rodolph Valentino, o ídolo da época, tente se livrar da mulher mundana, representada pela fatal e vamp Nita Naldi, seus esforços são vãos. Ele não se mata nem mata a mulher, mas acaba sendo morto por um touro. O roteiro de June Mathis é baseado em livro de Vicente Blasco Ibañez, que parece inspirado em Mérimée.
No caso de “Sangue e areia”, há o acréscimo de um sábio que se posiciona contra a violência, a carnificina e o papel da mulher na sociedade. Sua postura parece bíblica: a mulher foi criada para dar alegria ao homem, e não para trazer sua infelicidade. Condenando a sanguinolência, ele é francamente contra a touradas.
O filme se presta a uma análise antropológica da sociedade da época. A mulher pode ser santa, como no caso da esposa do toureiro, ou demoníaca, como no caso da devassa representada por Nita Naldi. O homem costuma ser vítima das mulheres. O toureiro se justifica à esposa em dado momento, explicando-lhe que, na vida de um homem, existe um amor bom e um amor mau. O bom é o da esposa. O mau é o da rica aventureira. O sábio é estereotipado: cabelos longos e brancos, gravata borboleta grande, uso de pena de ave para escrever. Sempre recluso e pensativo, ele registra suas reflexões. Há ainda um perigoso bandido também estereotipado. Ele é tosco e grosseiro, usando sempre uma espingarda. Já perdeu a conta de quantas pessoas matou. A morte, aliás, é redentora. Ao chifrar o toureiro, o touro resolve um problema humano que parecia insolúvel: um homem dividido entre duas mulheres. A aventureira não se importa com a morte dele, pois não passava de mais uma conquista. Logo em seguida, aparece outro homem, que ela passa a cortejar. A esposa sofre a morte do marido. Cuidará do filho.
Embora não haja predição do fim violento, o clima é de tragédia. Não há predição, como em “Carmen”, mas há previsão e pressuposição. O toureiro foi alertado por um amigo quanto aos perigos que ele corria.
Como mostrou Lubitsch em seu filme “Eu não quero ser um homem”, de 1918, os costumes haviam mudado muito, sobretudo quanto à mulher. Ela já usa roupas mais leves e sensuais, fuma, bebe, dança sozinha. As advertências moralistas do sábio de “Sangue e areia” parecem conservadoras. O filme todo, aliás, parece condenar os novos costumes. Contudo, ele pode alegar que pretendeu apenas levar para as telas uma história narrada em livro.
A produção é norte-americana. Niblo contou com orçamento polpudo para recriar um ambiente espanhol e contratar incontáveis figurantes. O filme se tornou um clássico, embora poucos o conheçam atualmente.

As aventuras de Robin Hood
A história de Robin Hood é excelente para o cinema. Já em 1912, ela ganhava as telas. Um rei corajoso e justo (Ricardo Coração de Leão), um rei mau e injusto (João sem Terra) e um nobre leal com preocupações sociais. Um rebelde primitivo, como diria Hobsbawn, um bandido simpático. Na versão de 1922, Douglas Fairbanks é roteirista, produtor e ator. Ele desempenha um nobre que acompanha o rei Ricardo numa cruzada e volta à Inglaterra ao saber que João sem Terra, o rei substituto, estava maltratando a população com a cobrança de impostos.
O filme foi um dos mais caros da história do cinema até então: 1,9 milhão de dólares. A Warner lançou uma superprodução, com elenco caro, muitos figurantes, figurinos de época (se bem que cada época é interpretada pela época em que é recriada), cavalos e cenários fantásticos.
Fairbanks exibe todo seu vigor e agilidade circense. Ele é um atleta, mas tem aparência cardíaca. Ele morrerá com 56 anos. Ao voltar para a Inglaterra, ele se junta a rebeldes da floresta de Sherwood e se torna Robin Wood, o bandido-mocinho venerado pelo povo. Rouba dos ricos para dar aos pobres. Ele é abusado. Entra no castelo inimigo e luta com guardas. É um brincalhão. Vence o inimigo com alegria, mas não o mata. Ama Lady Marian Fizwalter (Enid Bennet), prisioneira de João sem Terra. Sobe paredes, pendura-se em galhos de árvores, debocha do inimigo. Seus papéis prediletos eram aqueles em que ele podia exibir suas qualidades atléticas. Robin Hood, Zorro, Ladrão de Bagdá. É o típico herói de capa-e-espada, que os Estados Unidos vão consolidando em seus filmes de aventura.
Robin Wood é drama ou comédia? Um pouco dos dois. Drama com graça até certo ponto. Comédia com romance e enfoque social. É um filme de aventura, gênero em que também os Estados Unidos se afirmarão. Merece ser abordado por uma sociologia do cinema.
Há marcas presentes em “As aventuras de Robin Wood” que devem ser levadas em conta para distinguir o cinema norte-americano dos demais. Afirma-se o realismo romântico, distinto do realismo social da União Soviética. O herói é um indivíduo e não o povo, como no “Encouraçado Pontenkin”, de Eisenstein. A fotografia é clara e nítida e não sombria e enfumaçada, como nos filmes expressionistas alemães. Os roteiros são acessíveis ao espectador mediano e não intimistas, como no cinema dos países nórdicos, por exemplo. Nem tão dramáticos como no cinema japonês. Não se trata mais de fazer arte com a fotografia em movimento, mas produtos culturais que propiciem retorno financeiro.

Dia de pagamento
“Dia de pagamento”, lançado em 1922, foi o último filme de curta metragem de Charles Chaplin. Como de hábito, ele redige o roteiro, dirige o filme e é o principal personagem. Edna Purviance, a atriz que mais trabalhou ao lado de Chaplin, faz apenas uma ponta em “Dia de pagamento”, como filha do chefe de uma obra.
Chaplin faz o papel de Carlitos, que ele próprio criou em 1914, tornado-se o maior personagem de comédia de todos os tempos. A segunda, a terceira e a quarta décadas do século XX assistiram ao nascimento de comediantes insuperáveis: Carlitos, Abbot e Costello, Buster Keaton, o Gordo e o Magro, Harold Lloyd, Irmãos Marx, Três Patetas, Ben Turpin, Billy Bevan e W. C. Fields. Poucos nomes são conhecidos. Dentre eles, o grande imortal é Charles Chaplin, que reuniu comédia e drama de forma genial.
“Dia de pagamento” não é um dos grande filmes do inigualável Carlitos. Ele parece representar mesmo o ponto final de uma fase do mestre, que não abandonaria a comédia (vide “O vagabundo” (1915) e “O garoto” (1919). Daí em diante, ele continuará com a comédia, realizando obras inesquecíveis.
Em linhas gerais, Carlitos é operário da construção civil. Como era comum em seus curtas metragens, ele cria muitas gags impagáveis. Edna Purviance entra em cena e logo sai. A mulher de Carlitos é a típica esposa das comédias: mais gorda que o marido, ciumenta, violenta e atenta. Ela não hesita em agredir o marido. Dois estereótipos são criados: o do marido festeiro, beberrão e mulherengo (pelo menos, apreciador da beleza feminina), e o da esposa vigilante e déspota.
Chaplin filma muito bem. Sua fotografia é nítida. Nesse ponto, parece que de melhor qualidade que a fotografia da época. Talvez em decorrência das diferenças de orçamento. Os estúdios norte-americanos podiam produzir filmes em série, porém gastavam mais. A fotografia norte-americana ainda hoje é nítida.
Exemplares também são seus movimentos de câmara: os planos fixos e amplos; os travellings; os planos-sequência e o zoom. Era comum a aproximação da câmara se fixar num alvo que terminava enquadrado num círculo.

O menino da vovó
Sempre com cara jovial, rosto maquiado, batom nos lábios, os infalíveis óculos e o corpo atlético. Esse é o perfil de Harold Lloyd em suas comédias. Ele fazia sempre o papel de fracote, mas era capaz de ginásticas incríveis. “Safety last”, de 1923, é o melhor exemplo do artista acrobata. Se não fosse essa performance, Lloyd não pareceria um humorista. Fred Niwmeyer era o diretor mais frequente de seus filmes. Contudo, Lloyd os codirigia.
Neste “O menino da vovó” (“Grandema’s boy”, 1922 ), Lloyd usa óculos desde bebê. Criança, ele continua usando óculos. Fracote, ela apanha na rua e na escola. Depois de adulto também. Os humoristas daquele tempo de ouro costumavam usar seus nomes e tornavam-se eles próprios seus personagens. Harold Lloyd é apaixonado por Mildred Davis, mas há sempre um rival entre eles, seja assediando, seja cortejando.
Em “O menino da vovó”, Harold é muito ligado a sua avó, que o criou. Ele se fortalece com suas palavras. E há cenas impagáveis, como a dos gatos lambendo a botina de Lloyd porque sua avó a engraxou com gordura de ganso. O automóvel anda sozinho. E os valentões acabam sendo vencidos com a esperteza e os truques dos fracos.
Em“O menino da vovó”, um longo flashback insere um filme dentro de outro, quando a avó de Lloyd conta como seu avô venceu vários militares do sul na Guerra de Secessão graças a um amuleto que sua esposa lhe dera. Esse amuleto será dado a Lloyd agora para que ele ajude a capturar um bandido, sempre caracterizado como vagabundo desocupado.
O emprego do flashback não era novidade no cinema. Ele foi usado várias vezes. Em “A carruagem fantasma”, de 1921, Victor Sjöström, seu diretor e protagonista, conta uma história dentro da história principal. Em seguida, conta uma história dentro da segunda história. Assim, três histórias ou três momentos da mesma história se superpõem. E não é o único caso na história do cinema antes de 1922.
Acreditando que o amuleto fazia mesmo efeito, Lloyd vence sozinho o bandido, quando todos os homens da cidade se protegiam dele. Em seguida, vence o valentão que lhe bateu e passou a cortejar Mildred. As mulheres eram retratadas como volúveis, sempre se impressionando com a masculinidade dos homens. No final, a avó revela que o amuleto era apenas o cabo do seu guarda-chuvas e que ela lhe contara uma lorota para impressionar o neto e lhe encorajar.

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