Branco e preto
- Atualizado em 31/07/2017 13:32
Mas mantinha-o no mesmo lugar, com o mesmo retrato em branco e preto
Mas mantinha-o no mesmo lugar, com o mesmo retrato em branco e preto / pixabay
— Pai Nosso que estais no céu...
— Não adianta — respondeu a voz que o perseguia há noites. Guia de seus dias.
— Santificado seja o Vosso nome — as mãos cruzadas em frente ao peito; os joelhos marcados pelos cortes do piso.
— Estou dizendo: não adianta. Não insista — falou, em tom mais grosseiro, o homem sem rosto.
— Venha a nós o Vosso reino.
— Não será feita a Sua vontade. Você sabe, rapaz. Eu te disse. Não tem por que insistir.
— Seja feita a Vossa vontade — pequenas gotas de suor escorriam pela testa enrugada de tensão.
— Sente-se aqui, na sua cama, ao meu lado.
Cortou a oração. Olhou para trás, onde estava localizado o móvel. Vazio. “Estou enlouquecendo. Esse é o preço?”
Mãos à frente do corpo. Concentrou-se. Agora, estava perdida a oração. Precisava recomeçar.
— Pai Nosso que estais no céu...
Aguardou a interferência. Dez segundos de silêncio.
— Santificado seja o Vosso nome...
— Venha a nós o Vosso reino.
Parou novamente. Respirou fundo. Será que é isso que chamam de consciência? Aquela coisa independente que está dentro de você e julga todos os seus atos-erros-acertos-desistências-bingo! Deve ser. Ou o princípio da loucura inevitável.
— Seja feita a...
— ...Vossa vontade. Assim na Terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos dai hoje...
— Pelo amor de Deus, cale essa boca — soltou as mãos. Ergueu-se. Os joelhos latejavam. Estava incomodado. Nunca fora dado a orações. Na hora em que sente a necessidade de buscar respostas, ou sopros divinos transformados em calmaria, se depara com algo. Alguém. Uma voz sem fisionomia dizendo-o que não vai adiantar. O discurso vinha sendo repetido há dias. Olhou ao redor. Não havia ninguém no ambiente.
O quarto estava vazio, exceto pela sua presença. A casa também. Há tempos, não sabia o que era receber visitas; pessoas interessadas em vê-lo, ouvi-lo e rir de suas tentativas de piadas. Passava as noites dialogando com televisão e redes sociais. Rindo de idiotices extremas que não faziam o menor sentido, mas preenchiam sua vida de sentido. Qual seria o sentido disso tudo?
Em pé, com as mãos soltas ao lado do corpo, encarou as paredes. Precisava tentar novamente.
— Pai Nosso que estais no céu...
— Quer que eu continue? Ou você prossegue e se decepciona com o resultado?
Rodou ao redor de seu corpo. Continuava procurando a origem daquela voz. Ouvia-a claramente, mas não conseguia saber de onde vinha o som. Soava abafado. De repente, parecia vir de dentro das paredes. Quem poderia estar escondido ali? Dirigiu-se para trás da cama. Tateou os quadros pendurados. Uma risada incômoda tomou todo o quarto. Estava nitidamente sendo ridículo.
— Isso mesmo. Ridículo.
— Mas como sabe? Eu não falei a palavra “ridículo” em momento nenhum.
— Certas coisas não precisam ser faladas.
— Pai Nosso que estais no céu...
— Santificado seja o Vosso nome — complementou.
— Você vai continuar finalizando a minha oração?
— Acho que sim. Você sabe finalizá-la sem depender de mim?
— Mas não sei nem quem é você.
— Vamos continuar, então: Venha a nós o Vosso reino. Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos dai hoje. Prossiga.
— Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.
Parou por uns minutos, encarando o chão. Estava manchado. Sentiu afinidade e desligou-se da oração. Olhou em direção à mesa de cabeceira. Ali, continuava o porta-retrato. O vidro conservava as rachaduras do dia em que ele foi lançado contra a parede. Mas mantinha-o no lugar de origem, com o mesmo retrato em branco e preto.
— É sintomático você esquecer o “Pai Nosso” justamente no momento em que pediria para que Ele não te deixe cair em tentação. Será que conseguirá? — uma gargalhada ecoou pelo ambiente. Sem perceber, ele se dirigiu até a mesa em uma súbita mudança de intenções. Segurou o porta-retrato e, mais uma vez, repetiu a cena: lançou-o contra a parede. Desta vez, o objeto ficou completamente destruído.
Abismado com a ação, correu, entre risadas alheias, em direção ao quadro. Resgatou o retrato. O mesmo sorriso, não destruído pelo tempo e suas reviravoltas. O olhar penetrante. Intrigante. Em branco e preto. Chutou os cacos. Caminhou e colocou a fotografia sob os travesseiros. O silêncio novamente dominou o quarto. “Não nos deixeis cair em tentação. Mas livrai-nos de todo o mal. Amém.”

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    Paula Vigneron

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