Transmutação
- Atualizado em 10/09/2019 12:32
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Acordou e olhou o relógio pendurado na parede: 5h50. Estava cedo ou tarde? Não se lembrava da última vez em que tinha observado aqueles ponteiros. A noite se transmutava em manhã nos primeiros feixes de luzes que surgiam no céu. Haveria nuvens ou sol durante este dia? Era tudo tão incerto. Ele não sabia. Nunca sabia.
Respirou fundo. Cinco horas e cinquenta e dois minutos. Levantou e caminhou pelo quarto de tons claros e escuros. Parecia perdido. Desconhecia a data, a casa, a cama, seu rosto. Passou a mão e sentiu a barba por fazer. Mas ainda era cedo. Ou já estava tarde? Os pelos endurecidos faziam pinicar os dedos. A sensação parecia percorrer todo o corpo do homem, mas ele não sabia o porquê. Nunca sabia.
Bocejou em frente ao guarda-roupa. Eram, agora, 5h53. Quais as roupas ainda permaneciam escondidas por trás daquelas portas? Entre cabides, blusas, calças, shorts, frio, meias, cuecas e, talvez, calcinhas. Será que ainda havia alguma perdida? Tentava puxar pela memória as cores dela, que se espalhavam sobre as suas, mas não conseguia. Era como se falhasse a cabeça. Pareciam lembranças distantes, de outras vidas, mescladas a um adeus, talvez, quem sabe? Ele não sabia. Nunca sabia.
Agora, o relógio marcava 5h55. Detestava números repetidos e horas repetidas e dias repetidos e vidas repetidas. Não. Não era isso a que ele fora destinado, se é que havia sido destinado a algo. Santa ilusão cristã. Novamente, passou os dedos nos pelos duros da barba e sentiu a sensação percorrer o seu corpo. Mas qual era a sensação? Agonia misturada à tensão e misturada a certo asco pela barba por fazer. Houve, em tempos remotos, certas vaidades a que ele cedia. Mas isso está em um passado que o homem, hoje, desconhecia. “Por quê?”, perguntou a si mesmo. Não sabia.
Às 5h58, as memórias pareceram saltar de sua cabeça em uma corrida desordenada. Ela vinha para se deitar em sua cama, abraçando-o carinhosamente. Entregava-se a uma dança única dos corpos unidos em calores e suores. Em seguida, emitia um riso alto, seguido por um sorriso manhoso, como gostava de fazer quando se sentia amada e protegia. E ele? Quando se sentiria amado e protegido para rir e sorrir? Ele nunca sabia.
Sabia, sim, uma única coisa. E esta lembrança, vinda às 5h59 de uma manhã perdida, amanheceu o homem. Ela partira, sem despedidas ou avisos. Voou, como ele costumava dizer a quem o perguntava. Acordou, um dia, e não a viu na cama. As roupas pareceram nunca ter composto o armário. As cores dela não estavam mais sobre as suas. Quaisquer rastros tinham sido apagados. Assim como ela havia chegado até ele, em uma noite escura, deixou-o inundado por estes mesmos tons.
Os raios de sol invadiram o quarto de modo repentino, fazendo doer os olhos dele. Não esperava a súbita luz que, agora, consumia o espaço. O homem, em pé, observando o mundo que pulsava à sombra da janela, transmutou-se em luz.

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    Paula Vigneron

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