Sobraram as lembranças
candida 15/12/2016 14:42
13903436_10209383474531210_7369343992075753560_nSobraram as lembranças Cândida Albernaz A caminho de casa parou num bar e no balcão pediu uma cachaça. O copo pequeno encheu-se do líquido amarelo que tomou de um só gole, fazendo careta. Já era o terceiro em que entrava desde que saíra do serviço. Deixou o carro no estacionamento do prédio onde trabalhava. Pegaria no dia seguinte. Precisava caminhar e pensar. Entre uma coisa e outra tomava uma cachacinha para relaxar. Estava tenso há alguns dias e sentia dor na altura do pescoço. Tinha a sensação de um torcicolo a qualquer instante. Quando entrava em casa, Rita já não falava nada. Beijava-o e observava. Nas últimas semanas, ela tentava conversar e saber o que estava acontecendo, mas ele não queria diálogo, então desistiu. Os filhos o cumprimentavam e depois corriam para o quarto onde brincavam e viam algum programa na televisão até a hora de dormir. Acreditava que Rita os orientou a agir assim, já que mesmo com eles não tinha paciência alguma. Quase bateu no mais velho dia desses. Teria sido a primeira vez. Sempre teve orgulho de ser bom pai, estar com eles nas horas de folga e conversar quando preciso. Isto era antes. Agora notava em seus olhos decepção e até medo. Ficava triste, mas não via chance de mudança. Não no momento. Resolveu parar de novo para tomar mais uma. Pelo menos chegaria a casa e apagaria. Não precisaria ver a interrogação no rosto de Rita. Porque boba ela não era e sabia que algo sério devia estar acontecendo. Apenas parou de perguntar. Esse silêncio dela acabava com ele, ao mesmo tempo em que dava alívio por não precisar explicar nada. Rita e ele se conheceram na faculdade. Não era alta e tinha um cabelo preto e cacheado que chamou sua atenção. De lá para cá, sempre estiveram juntos. Quando engravidou do primeiro filho, estavam casados há cinco anos, com a vida estável e querendo muito aquela criança. O caçula também foi programado. Ele recebera um aumento considerável e passara para o setor financeiro da firma de material de construção onde trabalhava. Sempre foi eficiente, organizado. Os pagamentos e as contas da firma estavam na sua mão e de outros dois funcionários. Os problemas começaram a um mês, desde que chegou uma empresa de auditoria. O patrão achava que havia algo errado. Parece que os auditores chegaram a uma conclusão e amanhã seria a reunião em que falariam sobre isso. Marcaram para o início da manhã com os dois colegas e em seguida conversariam com ele. Não precisava que dissessem o que estava acontecendo. Há três dias o olhavam enviesados e discutiam em voz baixa com o patrão. Amanhã teria que enfrentá-los, quando mostrassem a duplicidade de algumas duplicatas que forjou. Muitas duplicatas. Uma quantia de dinheiro considerável. O fechamento do livro caixa era raramente conferido pelo patrão. Ele era de sua confiança. Isso facilitava em muito sua ação. Os dois patetas que trabalhavam com ele não percebiam nada. Fora fácil enganá-los. Não teria como fugir. Se fosse mandado embora com a responsabilidade da devolução do dinheiro, já ia ser complicado, porque não tinha de onde tirar. O pior é que talvez saísse de lá preso. Teria que encarar a mulher e os filhos. Isso doeria mais do que tudo. Que vergonha! Se pudesse enterrava a cabeça e o corpo também em algum buraco de onde não precisasse sair mais. Os pés estavam perdendo o comando que deveria ter sobre eles. Pareciam dançar de um lado para o outro na rua, em um samba que só ele escutava. Perdeu a conta do tanto que bebeu. Começou a rir lembrando-se do dia em que Rita dançou para ele, enquanto tirava peça por peça da roupa que vestia. Viu num filme e quis fazer igual. Lembrou-se de quando ele e os filhos jogavam futebol e o mais velho fez seu primeiro gol. O sorriso que dominou seu rosto foi uma das coisas que mais trouxe felicidade. Nem sabia ser possível uma sensação tão plena. Pensou em fingir que não estava acontecendo nada, puxaria os três para conversar e os abraçaria com força. Imaginava as caras de surpresa. Olhariam entre si e pensariam que voltara a ser o mesmo de antes. O carro que vinha não percebeu que ele ia atravessar com o sinal fechado para pedestres. Acertou-o em cheio, fazendo com que seu corpo rolasse por cima dele e batesse com a cabeça no asfalto ao cair. De qualquer forma, ainda sorria com as lembranças quando curiosos chegaram perto e o olharam.  

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".

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