PARA QUEM VIVE CHORANDO DE BARRIGA CHEIA...
Nino Bellieny 10/06/2015 17:47
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------   unnamed (4) Marcelo Alves, o fuzileiro naval itaperunense, em ronda pelas vielas  destruídas do Haiti. --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- A Revista Estilo Off, editada por Marcelo Nascimento, é uma publicação local, porém, cosmopolita, sem perder as origens. Impecável em sua linha gráfica, soberana nos editoriais de moda e comportamento, rica em articulistas, papel de primeira, modelos famosas, personalidades, celebridades da cidade e do mundo moram nas suas páginas, à cada edição, mais forte do que a anterior. No último número, uma reportagem feita com um fuzileiro naval brasileiro, nascido em Itaperuna, deu  um toque a mais na densidade da revista. E muita repercussão. Em sua página no Facebook, Marcelo Nascimento escreveu sobre a impressão causada em uma leitora. E o Blog NB, reproduz ambos os textos:
Mesmo diante de todo feedback gostoso que recebemos por conta de cada edição da ESTILO OFF que lançamos, hoje uma ligação inusitada me tocou o coração e mostrou o quanto nosso trabalho pode fazer a diferença. Uma pessoa relativamente bem conhecida na cidade me ligou e disse que ao ler a matéria "SOB OS ESCOMBROS DO HAITI - O RELATO DE UM FUZILEIRO NAVAL ITAPERUNENSE DIANTE DO CAOS" - se sentiu profundamente tocado e me perguntou se eu sabia quais os procedimentos para adotarlegalmente uma criança haitiana. De fato eu não sei os procedimentos e se há possibilidade. Mas falei pra entrar em contato com a Pastoral da Criança em SP, que faz um belo trabalho por lá e quem sabe eles poderiam gerar os esclarecimentos necessários da viabilidade ou não. Mas o fato é que é bom saber que algo que você faz leva uma mensagem positiva às pessoas. Não ganhei só o dia... ganhei o ano. [caption id="attachment_2555" align="alignnone" width="210"]Fac-símile da página da Estilo OFF Fac-símile da página da Estilo OFF[/caption]
A MATÉRIA NA ÍNTEGRA

Sob os escombros do Haiti.

O relato de um fuzileiro naval itaperunense diante do caos

Por Marcelo Nascimento
O Brasil tem visto ultimamente uma invasão de haitianos que entram pelo Acre fugindo das mazelas que o pequeno país da América Central tem sofrido em mais de uma década. A pobreza extrema com todas as suas facetas mais cruéis que esteve à beira de uma guerra civil em 2004 e ganhou as manchetes mundiais com o intenso furacão que arrasou aquela terra em 2010 deixando mais de 200 mil mortos, ganha contornos de filme de terror quando ainda em seguida se somam ao roteiro uma epidemia de cólera que matou cerca de 8 mil pessoas e logo depois a visita inóspita do furacão Sandy que dizimou 50 pessoas e deixou mais alguns milhares de desabrigados. Aliás, outros mais, já que o terremoto de 2010 ainda mantém muitos deles sem casa, sem eira nem beira. O Haiti teve de tudo nesses últimos anos, menos sossego. 
O que pode parecer uma realidade distante para muitos de nós brasileiros, toma contornos humanistas quando o país abre as portas para refugiados desse pequeno país que fogem da desgraça que tomou de assalto suas vidas. Mas, e quando tudo isso é visto através de um olhar de um itaperunense que acaba de chegar de lá? Marcelo Alves, nascido e criado na Cehab, tem 38 anos e é Fuzileiro Naval. É 2º Sargento e faz parte do grupo de elite da Marinha Brasileira. Ficou seis meses operando na Missão de Paz da ONU, que desde 2004 ocupa as ruas do devastado Haiti. Aliás, os militares brasileiros são maioria entre todos da missão (atualmente em torno de 1500 homens) e se dividem em várias funções. O grupo de Marcelo tinha a missão mais tensa, ou seja, controlar guetos violentos que se esfacelam entre guerras de gangues com múltiplos interesses. Chamados pelos locais de “bon bagay” – expressão em crioulo haitiano para “gente boa”, os brasileiros são bem vistos por lá. 
Mas a devastação vista de um ângulo geral não traz à mente a realidade nua e crua daquele povo. Afinal, a distância acaba por esfacelar qualquer tipo de intimidade. Não é o que testemunhou Marcelo Alves. Convidado pela ESTILO OFF a se despir da pesada farda de militar e nos contar suas impressões de ser humano e pai, ele aceita, lógico, dentro dos protocolos que o militarismo permite, e abre um baú de memórias tristes que muitas vezes lhe traz lágrimas aos olhos no decorrer dos relatos que nos deu. Sentado na sala da redação da revista, com a filha de dois anos brincando entre bonecas, ele desabafa. “Sinceramente achei que iria encontrar um cenário muito pior, mas a ONU já está por lá desde 2004 e já houve alguns avanços significativos. Há vários grupos trabalhando em várias áreas, mas mesmo assim a situação ainda é de entristecer. Não há emprego e as pessoas vagam pelas ruas sem saber o que fazer”. Começa seu relato. “Muitas e muitas ruas tem esgoto a céu aberto e as casas, em sua grandiosa maioria, não tem banheiros. Os banheiros são coletivos e as pessoas fazem as necessidades fisiológicas em condições deprimentes”. Conta. E continua. “Há falta de tudo. Eles comem gato como a gente aqui come um frango, com extrema naturalidade. Amigos meus que estiveram por lá anteriormente dizem que antes nem cachorros eram vistos pelas ruas. 
Conversei com um médico brasileiro que atende lá e ele disse que há estudos que apontam que os haitianos tem um sistema imune impressionante”. Para um pai que deixou em Itaperuna suas duas filhas, uma adolescente e outra de dois anos, a pior impressão foi ver a situação das crianças. “Não há como não se emocionar. As crianças  vagam sem saber o que acontece e toda aquela simplicidade e inocência são perdidas em meio ao caos. Tem grupos que fazem algum tipo de trabalho recreativo para entretê-las, mas o que elas querem mesmo é comida. Elas brincam nas ruas sujas, andam seminuas e muitas vezes são usadas para trabalhos forçados. Uma em especial chamou muito a atenção de nosso grupo. Ela tem uns 4 anos e perdeu os pais no terremoto. Foi adotada por outra família. Mas, esse tipo de adoção não é aquela adoção por amor. A gente via que aquela menina acordava muito cedo, por volta das 4 da manhã, carregava quilos de carvão e trabalhava demais. Na verdade ela era usada pela família que a acolheu. Infelizmente isso acontece muito por lá. Quem não se entristece com isso? O que me dava certo conforto era que ao menos ela estava estudando.” Diz, emocionado, olhando para a própria filha à sua frente. Se por um lado as crianças não conseguem enxergar muitos horizontes, as mulheres haitianas são a força que move o país. Chamadas de “poto mitan” (pilar central), elas são cabeça de família, responsáveis por manter a economia familiar, quando os homens estão desempregados ou devem emigrar à procura de trabalho. “É incrível, mas você vê aquelas mulheres sofridas acordando cedo, carregando seus filhos, trabalhando incansavelmente em tudo que podem, enquanto os homens, sem emprego, ficam à toa pelas vielas jogando dominó. São elas que fazem de tudo por lá. São verdadeiras máquinas de trabalho”. Diz o fuzileiro. 
A força que nasce do caos
Uma das coisas que também chamou muita atenção de Marcelo foi a determinação em progredir de vários haitianos. “Mesmo em condições hiper precárias, eles ainda mantém a esperança de melhoras. Muitos lugares – e são muitos mesmo - não tem energia elétrica e mesmo assim eles procuram avançar. Muitos deles estão investindo nos estudos. Mas, o pior é que as escolas são pagas. Num país em que a devastação destruiu quase tudo, mesmo as escolas públicas cobram taxas de seus cidadãos”. Relata com um tom de desapontamento. “Perto da nossa base tinha um hospital e nos primeiros dias em que cheguei via uma movimentação intensa durante a noite naquele prédio. Achava que eram doentes chegando, mas, na verdade esse hospital, por ser um dos poucos lugares com energia elétrica, era usado pela comunidade também como sala de aula. Era ali que quem queria estudar conseguia um espaço com luz”. As forças de paz vão além da segurança, segundo relata o 2º Sargento. “Há muitos grupos trabalhando lá. Tem o pessoal do exército que dá um suporte bem legal em termos de engenharia e também de segurança. Tem o pessoal das pastorais que fazem um trabalho social muito bom. Tem médicos, enfermeiros. Enfim, é uma missão ampla que busca dar um norte para aquela gente”. Enfatiza.
Futuro
Os próximos dias do Haiti começam a ser desenhados. E os traços ainda não possuem contornos visíveis em meio a tantos escombros. As forças de paz devem começar a deixar o país em 2016 a pedido do governo local, que quer mais liberdade de ação. E o futuro daquele povo que hoje sofre as mazelas da destruição e do descaso de grande parte do mundo, perderá um dos maiores aliados, que são os brasileiros, por sinal adorado por eles, que costumam idolatrar nosso futebol e nomes como Neymar e Ronaldo.
Para Marcelo, que já voltou à segurança de sua Itaperuna e para a companhia de suas filhas, ficou a sensação de um dever cumprido e um aprendizado que jamais irá esquecer. “Sou pai e mais do que ninguém consigo entender a situação daquela gente e principalmente daquelas crianças. Vi muita coisa, mas o protocolo impedia algumas ações. O que podíamos e fazíamos, era manter o ambiente seguro e estável, conforme a regra da missão de nosso grupo. Mas, se você quer saber se como ser humano aprendi algo mais, posso dizer que sim. Vi na cara o que é a miséria de verdade e aprendi que a gente aqui vive reclamando e tentando agradar aos outros e aos nossos filhos com tantas coisas materiais e aquele povo lá querendo tão pouco para recomeçar. Para eles todo pouco já era motivo de vitória. Para as crianças então, um pouco de comida e um sorriso eram motivos de comemorar mais um dia vencido. Isso jamais sairá da minha cabeça”! Encerra, sem conter a emoção. 
E enquanto seguimos nossas vidas aqui, o Haiti está lá, tentando viver um dia após o outro. O que o futuro lhes reserva? Só a história dirá.

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Foto-ArquivoPessoal

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