Entre ela e eu
candida 19/03/2015 13:44
Entre ela e eu Cândida Albernaz Ele tornou a olhar para ela. Ainda se lembrava dos cabelos pretos à altura do ombro que usava quando se conheceram. Não eram mais pretos e nem tão cheios, mas graças aos olhos de amor que usava, continuava achando-os lindos. Estendeu os dedos e tocou sua boca. Recebeu algo como um sorriso de volta. O soro caía lentamente. Acompanhou-o até a mão, onde a agulha mergulhava sua ponta. Possuía pequenas manchas escuras como as suas. Coisas do tempo. Virara rotina o ir e vir ao hospital. Essa angústia no peito, também ela se tornara habitual. Ainda tinha desejos. Planejaram tantas vezes morar na praia quando envelhecessem, numa pequena casa com o verde em volta, onde os netos passariam fins de semana com eles. Ela aprenderia a fazer bolos e os encheria de lanches gostosos. A cozinha nunca fora o seu forte. Ouviu mais um gemido e com esforço levantou-se da cadeira onde sentara. Passou a mão no rosto muito claro e de pele macia provocada pela flacidez que a idade trazia. Achou que ela sonhava, pois sua expressão mudava entre o enrugar a testa e a suavidade de volta. Que fossem sonhos bons. A filha mais velha entrou no quarto. - Pai, você não foi dormir até agora? Quem vai acabar doente é você. - Estou bem filha. Não tenho sono. - Você não tem mais idade para passar a noite em claro e permanecer acordado por toda a manhã. O que sabe sobre minha idade? - Não gosto de deixá-la sozinha. - Mas papai, por poucas horas. Avisei que assim que pudesse viria para cá. Não queria discutir. Pensavam diferente. Não entendia que desde que se conheceram não ficaram uma noite sequer separados. E agora queriam decidir por ele ir ou não para casa dormir. Casa para ser chamada de nossa, precisa ter alma. E a sua estava deitada naquela cama presa a fios. Um dia antes de se conhecerem ele chorava mágoas por uma mulher que o deixara. Um ano depois estavam casados. Há cinquenta e dois anos. Não adiantaria tentar dormir em outro lugar que não fosse aquele cheirando a éter e outros odores fortes. Durante a noite empurrara a mulher, que se tornara tão magrinha, para um canto da cama ajeitando-se para que pudesse dormir a seu lado. Quando a enfermeira entrou durante a madrugada, levantou-se o mais rápido que conseguiu. Ela não falou nada, mas imaginou ter visto cumplicidade na forma que o olhou. Em casa tomaria um banho e tentaria comer. A cozinheira que os acompanhava desde muito, deve ter preparado o almoço. Ontem pediu que ela sentasse à mesa com ele. Sem falar concordou, e em silêncio comeu o que estava à sua frente. Então caminhou para a varanda agradecendo a companhia. Sempre que acabavam de almoçar, ele e a mulher se dirigiam para lá, acomodavam-se nas cadeiras uma ao lado da outra e esperavam o café que seria servido. Mais tarde quando voltasse ao hospital, entregaria a ela o cartão que escrevera no dia anterior em que foi internada às pressas. Leria bem perto de seu ouvido e tinha a certeza de que veria seu sorriso novamente. Ele não gostava de escrever, mas o tanto que ela insistiu começou de forma tímida e com o tempo, os dois trocavam declarações do que sentiam em pequenos papéis deixados aqui e ali. Nem tudo foi perfeito ao longo de todos aqueles anos. Mas há tempos decidiram que apenas a parte boa permaneceria entre eles. E que somente sobre elas falariam. Talvez quando retornasse mais tarde, ouviria uma boa notícia. Poderiam logo, logo, voltar para casa juntos. Seria desta vez. Tinha certeza.

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".

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