Entrevista com um Maratonista medalhista Olímpico
Marcos Almeida 26/08/2014 05:43

Esta entrevista saiu na Folha de São Paulo sábado, (23/08) e merece ser replicada por aqui tamanha a importância que este cara tem para o esporte nacional, além da sua grande humildade. O que ocorreu com ele na Olímpiada de Atenas-2004 foi incrível. Tive a oportunidade de encontra-lo numa prova internacional em 2010 onde pude receber boas palavras de incentivo. Vale a leitura.

A cena está gravada na memória do atletismo brasileiro: o ex-boia-fria Vanderlei Cordeiro de Lima, com 35 anos, liderava a maratona dos Jogos de Atenas-2004 quando se deu a confusão.

A câmera, que vinha fixa no brasileiro, perde o rumo. Logo o encontra num bololô, caído na beira da calçada, enquanto um grandalhão sai em seu socorro. Vanderlei emerge da confusão e volta para o trajeto, mostrando surpresa e desencanto.

Imagens recuperadas pela TV mostram o inesperado: Vanderlei fora agarrado, empurrado, derrubado ao chão por um sujeito que vestia uma fantasia estranha, com barrete e meiões verdes, e que levava um cartaz em que estava escrito: "O padre do Grand Prix. A Bíblia diz que Israel cumprirá a profecia. A segunda vinda está próxima".

Tratava-se de Cornelius Horan, um ex-padre irlandês conhecido por ter invadido, no ano anterior, a pista do GP da Inglaterra de F-1, em Silverstone, também levando uma mensagem religiosa.

Para Vanderlei, não importava. O ataque, na altura do km 36 da prova de 42,195 km, poderia provocar até o abandono. Continuou, mas perdeu terreno para seus perseguidores e chegou em terceiro.

Era 29 de agosto. Dias atrás, quase dez anos após o evento, Vanderlei disse: "Teria todas as possibilidades de chegar à medalha de ouro".

Não chegou, mas ganhou honraria ainda mais rara: seu espírito esportivo acabou lhe valendo a comenda Barão Pierre de Coubertin, até então outorgada pelo Comitê Olímpico Internacional a apenas quatro esportistas.

Nesta entrevista, realizada por telefone desde sua casa em Maringá, o corredor, aposentado de competições oficiais em 2008, lembra a maratona e um pouco de sua vida.

*

Folha - Dez anos após a maratona de Atenas, qual a primeira coisa vem à sua memória? Vanderlei Cordeiro de Lima - O que vem na memória é a corrida, a conquista. Nem parece que passou tanto tempo. A velocidade do tempo é cruel. Mas são só boas lembranças.

E a agressão? Foi um incidente, um episódio externo. Mesmo diante daquela situação, conseguimos um grande objetivo. Minha medalha de bronze é muito mais significativa do que a lamentação por não ter ganhado a medalha de ouro.

O senhor tinha uma grande vantagem naquele momento, mas os rivais estavam chegando. Acredita que conseguiria mantê-la e conquistar o ouro? Veja bem, você disse que eles estavam chegando. Mas daí aconteceu o incidente. Acabei voltando para a prova. É claro que você não se recupera instantaneamente. Na verdade, eu me superei. Mas jamais iria voltar a correr no ritmo em que estava. Mesmo diante de todos os problemas que eu enfrentei, os caras ainda demoraram dez minutos para me ultrapassar, me ultrapassaram no km 39.

Em condições normais, com a diferença que eu tinha, é difícil falar que a vitória era minha. Não vou ser tão imprudente quanto foi o [italiano Stefano] Baldini [campeão da maratona nos Jogos de Atenas-2004], em uma entrevista. O repórter perguntou se ele tinha plena certeza de que seria o campeão, e a resposta dele foi que, independentemente de qualquer coisa, ele seria o campeão. Eu jamais, numa resposta à sua pergunta, vou subestimar os meus adversários, entendeu.

Apesar das dificuldades, o senhor chegou fazendo aviãozinho e mandando beijinhos... Para você se preparar para uma Olimpíada, não importa apenas estar bem fisicamente. A força mental é importantíssima. Não só para romper as barreiras que vai encontrar numa corrida, mas para lidar com fatos que possam surgir ao longo da prova. Ninguém vai ser campeão, recordista mundial, só fisicamente.

Nossa preparação teve um planejamento, não só da prova e do clima, mas dos adversários. Isso me deu uma condição diferenciada para vivenciar a volta para a prova após o episódio e para conduzir o fato pós-corrida, que foi a maior grandeza e maior exemplo de força, não só física, mas também dos valores do esporte.

O senhor encerrou sua carreira em 2008. Ficou rico? Quem não tinha um gato para puxar pelo rabo, vai reclamar do quê? Consegui dar uma condição diferenciada para a minha família. Realizei um grande sonho, sonho de um ex-boia-fria, ter uma propriedade rural. Tenho um sítio na minha cidade natal, Cruzeiro do Oeste, a 150 km de Maringá. Estou muito perto do rio Paraná. Quando não estou nos meus afazeres, vou pescar no rio. É uma grande terapia que me ajudou nas maratonas. Precisa de muita paciência para conduzir uma prova... E pescaria é paciência. Esquece os seus problemas, suas dificuldades.

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    Sobre o autor

    Marcos Almeida

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    Marcos Almeida é assessor esportivo, especialista em Ciência da Musculação e mestre em Ciência da Motricidade Humana.

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