Tanto tempo perdido
candida 08/02/2010 20:09
Tanto tempo perdido...       Cândida Albernaz       Sentado embaixo da árvore, mexia em sua nova gaiola. Olhava o trabalho feito com capricho. Não sabia quantas gaiolas já fizera. Os passarinhos que depois colocaria dentro de cada uma delas, eram sua paixão.  A mulher já reclamara com ele. Fica sujando o quintal com esse alpiste e quem tem que limpar sou eu.  Era seu maior prazer, não entendia. Aposentara-se e quando viu ser desnecessário para o trabalho que fizera a vida toda, sentiu-se um inútil.  No início, ficava em casa durante todo o dia, esforçando-se para acreditar que merecia aquele descanso. Afinal, já era hora. Sempre fora um bom funcionário, cumpridor severo de suas obrigações, deixando de lado por muitas vezes acompanhar o crescimento dos filhos ou a companhia da mulher. Esta vivera reclamando do seu cansaço ao chegar, sem disposição para outra coisa que não fosse dormir cedo para acordar bem disposto no dia seguinte para o trabalho.  Nos finais de semana, gostava de se sentar no botequim da esquina, onde encontrava com os colegas da firma. Ao voltar, almoçava e dormia. Algumas vezes a mulher o chamava para um cinema ou passeio. Eram raras as ocasiões em que aceitava o convite.  Podia-se dizer que vivera para o trabalho, inclusive, o que habituara a afirmar era que se esforçava tanto pela mulher e filhos. Para que pudessem ter o mínimo de conforto de que uma família precisava.  Com o tempo, foi vendo a mulher envelhecer, perder o viço da pele e o brilho nos olhos.  Nunca perguntou a ela se o mesmo acontecera com ele. A única coisa que realmente chamara sua atenção, foi quando num dia qualquer, pelo menos para ele, chegara a casa e encontrara a mulher pronta para sair. Colocara um vestido estampado, com um decote mais ousado do que o habitual e pediu que ele fosse até o quarto e tomasse um banho. Em cima da cama encontrou uma camisa bem passada e uma calça estendida ao lado. Apesar de estranhar, lavou-se e colocou a roupa separada por ela. Foi até a sala e encontrou-a parada em pé, próxima à porta. Perguntou o que estava acontecendo, ela segurou seu braço e disse que hoje sairemos um pouco, porque preciso me sentir jovem outra vez. Riu dela, mas aceitou o braço estendido. Caminharam ao longo da rua e num pequeno restaurante de onde podia se ouvir música, ela pediu que entrassem.  Tomaram algumas cervejas e resolveu tirá-la para dançar. Estranharam-se um pouco no início, a falta de costume de se tocarem em público ou mais demoradamente. Não contava as noites em que a procurava e muitas vezes sem nem mesmo se beijarem, satisfazia-se, não se importando com o que ela sentia. A bebida e a música fizeram com que relaxassem.  Talvez esta tenha sido a última noite em que poderiam ter dado uma oportunidade para eles mesmos.  No dia seguinte a rotina voltou a se instalar. Pensando bem agora, recordava de que ela o procurara com os olhos e sorria disfarçadamente quando encontrava os seus. Não soube aproveitar. Não conseguira tempo para isso. O momento passou e com ele a vida que poderiam ter vivido.  Pegou a nova gaiola e saiu. Sabia qual o passarinho que colocaria ali dentro.  Mais tarde, ao chegar, foi até a varanda e pendurou a gaiola no prego colocado na parede. Sorriu orgulhoso.  Notou que a mulher o olhava. Hoje em dia ela andava com dificuldade, mas continuava cuidando de tudo dentro de casa.  Aproximou-se dela e apontou para sua mais nova aquisição. Não viu nenhuma reação em seu rosto, só cansaço.  Puxou-a pelo braço e passou os seus em volta do ombro dela. Percebeu que ela tentava sair. Não se intimidou e apertou-a com a mão trazendo-a para mais perto dele.  Ficaram os dois assim, parados olhando sem ver. Ela então passou a mão em sua cintura e encostou a cabeça em seu ombro.  Tanto tempo perdido...

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".

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