Epitáfio
13/05/2017 02:36 - Atualizado em 13/05/2017 02:53
No dia em que eu partir, não chore. Sorria! Permitirei apenas lágrimas vertidas entre risadas pelas lembranças inventadas de um dia de sol que não vivemos. Aquelas histórias, contadas por outros, sobre os momentos em que dividimos cervejas e memórias, vãs memórias, das horas passadas em lugares distantes. Perdidos entre árvores, músicas e beijos.
Não chore! Recorde-se das horas que não passei falando sobre nós. Os abraços nunca dados. Que permaneceram em sonhos contados às três da manhã, em uma noite fria de um domingo de maio. Se vier a angústia, apague-a com as palavras imaginadas. E, também, com as ditas. Creia-me. Não menti em nenhuma ocasião. Exceto quando neguei um sentimento. Ou uma verdade. Duas ou três mentiras entre tantas frases claras.
O som da voz. Por ora, ligue-se a ela. Em breve, meus tons sumirão no meio de outros que surgirão em seu caminho. Mas não deixe que eu parta com eles por toda a estranha eternidade. Não agora. Não já. Mantenha meu jeito de falar, o mexer dos lábios, em sua mente enquanto ainda me despeço dia a dia. É nossa fonte de união.
Quando vier a dor da ausência, sinta meu cheiro ao seu lado. Na cama. No travesseiro. Nas roupas jogadas no chão. Naquela toalha de banho velha que deixei sobre a cama. Toque meus livros e sinta os meus toques nos seus. Os dedos cansados que folhearam tantas páginas da vida. Há traços de minha fisionomia perdidos em seu rosto sombrio.
Não deixe que o tic-tac dos relógios te torne exausto. Ele será o barulho do meu silêncio. Você se lembra do quanto eu gostava de acompanhar os ponteiros? Olhe-os. Ali, estarei. Siga os meus passos em todos os cômodos. Em cada canto de nossos cantos, encontrará meu sorriso. Se procurar pela casa, restam os bilhetes que deixei naquela noite. E os que não deixei. Nem tudo precisa ser claramente dito. Você também me achará na escuridão.
Na solidão.
No apagar das luzes da cidade.
Das nossas luzes.
Das suas luzes.
E, quando elas sumirem vagarosamente, estarei ali, do outro lado, para te contar sobre um dia de sol que não vivemos. Para lembrar aquelas histórias, inventadas por outros, sobre os momentos em que dividimos cervejas e memórias das horas passadas em lugares distantes. Detalhar as horas que não passei falando sobre nós. Os abraços nunca dados. Os beijos perdidos entre árvores e músicas. E revertê-los em vidas quase vividas.

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    Sobre o autor

    Paula Vigneron

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