Meu mal-estar na globalização
16/04/2017 10:10
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 16 de abril de 2017
Meu mal-estar na globalização
Arthur Soffiati
 
Nasci em 1947, no quinto século da globalização. É preciso explicar o que entendo por esta palavra. A globalização não é um projeto nascido de um acordo entre as culturas existentes no mundo no século XV. Se houvesse um acordo dessa natureza, talvez o chinês ou japonês, uma língua indiana, o árabe ou o iraniano, o russo, o mexicano e o quéchua tivessem a mesma importância que o inglês.
A globalização não foi promovida pelo Japão, China, Índia, mundo árabe, Rússia, Peru ou México, mas pela Europa ocidental. Daí, o conteúdo da globalização ser europeu ocidental. Também não nasceu por aceitação das demais culturas, mas por imposição de uma cultura sobre as outras. E essa cultura que se impôs ao mundo era e continua sendo impulsionada pelo lucro. No seu alvorecer, ela contou com o forte apelo da conversão de outros povos ao catolicismo romano. Mas não era esse o seu caráter mais profundo. Tanto assim, que a religião não é mais usada como motivação para conquistas e guerras. Portanto, a globalização equivale à ocidentalização do mundo e esta tem como elemento propulsor a economia de mercado.
Nasci num ano não muito feliz. Em 1947, o Fundo Monetário Internacional iniciou suas operações. Também Truman, presidente dos Estados Unidos, anunciou a doutrina que leva seu nome, dando início à guerra fria. Registrou-se também a independência da Índia em relação ao Reino Unido, tendo como líder Mahatma Gandhi, que percebeu como poucos o sentido da ocidentalização do mundo. Ele sonhava em libertar a Índia não apenas do jugo político britânico, mas também da cultura ocidental. Ele queria o retorno da Índia às suas tradições. Seu sonho era a contra aculturação. Não deu certo. Hoje, a Índia profunda ainda é hinduísta, mas as elites são ocidentalizadas.
Nasci no Brasil, periferia do ocidente. Nasci, cresci e me aproximo da morte numa Europa mestiça. Sinto um desconforto muito grande no meu lugar e tempo. Creio que gostaria do lugar onde nasci se fosse antes do século XV. Eu viveria num grupo indígena e talvez praticasse o canibalismo ritual. Acreditaria que humanos e animais têm alma e que todas as almas sobrevivem à morte. Talvez eu fosse abatido em guerra e tivesse minha carne devorada pelos inimigos. Talvez eu morresse jovem ainda para os padrões ocidentais, que prolongam cada vez mais a expectativa de vida das pessoas. Eu não me importaria, pois desconheceria outros modos de viver.
Mas eu seria íntegro de corpo e alma. O ocidente invocou muito o cristianismo para justificar suas conquistas, mas dessacralizou o mundo. Hoje, a ocidentalização continua, mas não se invocam mais motivos religiosos para justificá-la. Nem mesmo o marxismo, uma forma laica de cristianismo, tem mais apelo. Agora, o que está valendo é o liberalismo na sua forma líquida quase gasosa. Não gosto desse mundo. Nasci nele por acidente. Eu queria nascer numa época pré-ocidentalização. Mas não posso negar que sou fruto da ocidentalização. Eu gostaria de ter uma crença religiosa e de viver religiosamente. De ter certezas, mas só tenho dúvidas. Nem ateu eu consigo ser, pois o ateu tem certeza da inexistência de Deus.
Eu gostaria de crer numa outra vida e de morrer com essa crença. Mas eu não gostaria de nascer em qualquer lugar antes da ocidentalização do mundo. Acho que, por motivos muito íntimos, sou tolerante. Por isso, eu não gostaria de ser judaísta, cristão ou muçulmano num tempo em que as civilizações eram íntegras. Eu abominaria matar ou aplaudir a morte de alguém por ter convicções diferentes das minhas. Eu queria crer e deixar que os outros tivessem suas crenças. Quando externo minhas inquietações a alguém, recebo como resposta que devo crer em Deus com fé, como se bastasse o meu desejo para uma conversão na reta final da minha vida. Ou então os entusiastas da modernidade me dizem que eu devia ficar contente com meu tempo, já que não existem mais preconceitos e perseguição religiosa. Será? Que eu devia me alegrar com as conquistas da ciência. Não sinto a mínima falta de saber que o Universo tem um começo e uma história, assim como a vida é fruto da evolução. Esses conhecimentos em nada me ajudam a viver, mas, se vivo, atualmente, num mundo laicizado, não posso prescindir de tais conhecimentos.
Creio que eu gostaria de viver na China antes da globalização, sendo um taoísta convicto. Eu acreditaria que o ser humano é o terceiro elemento, o responsável pelo equilíbrio da natureza. Eu teria uma vida recolhida, uma vida de sábio. Mas ainda assim não teria certezas absolutas que afastassem minhas dúvidas sobre o metafísico. Mas seria melhor viver nesse mundo do que no nosso, que não é o melhor dos mundos, como diria Dr. Pangloss, o célebre personagem de Voltaire, otimista incorrigível. Nosso mundo está povoado de Pangloss, o que muito me atemoriza. Tenho um sonho impossível: voltar ao passado como Woody Allen em “Meia-noite em Paris”, mas não a qualquer passado, e não ser fragmentado como sou. Ansioso como sou.

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    Aristides Soffiati

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