Incorporação da região norte fluminense à modernidade (III)
09/04/2017 10:33
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 09 de abril de 2017
Incorporação da região norte fluminense à modernidade (III)
Arthur Soffiati
 
Quando os primeiros europeus chegaram ao futuro norte fluminense, nos séculos XVI e XVII, a ecofisionomia da região era muito diferente. Havia então um mundo caótico de água doce em torno de dois eixos. O rio Paraíba do Sul era o mais importante. Ele ainda é. Por sua margem direita, as águas de transbordamento das cheias vertiam em direção à lagoa Feia, a maior de um universo infinito de lagoas, alimentando distributários e lagoas. O outro era representado por um conjunto misto de rios e lagoas. Podemos situar esse eixo como tendo início no rio Imbé, coletor dos pequenos rios que ainda descem da Serra do Mar por sua vertente atlântica, formador da lagoa de Cima com o rio Urubu. Essa lagoa escoa suas águas pelo rio Ururaí que, por sua vez, dilata-se na lagoa Feia, também alimentada pelo rio Macabu. Por uma infinidade de canais naturais, a grande lagoa vertia suas águas até a lagoa do Lagamar. A partir de então, saía do Lagamar um canal denominado rio Iguaçu, que recebia vários distributários do rio Paraíba do Sul, alargava-se no banhado da Boa Vista e chegava ao mar.
Pero e Gil de Gois não deixaram nenhum relato desse aranhol de ecossistemas hídricos. A umidade era tanta que a vegetação não adquiria porte arbóreo, com raras exceções, como a tabebuia, por exemplo. Apenas nos pontos mais altos e nas restingas, formavam-se matas. Nos estuários, os manguezais formavam bosques expressivos, como no caso de todos os rios da área baixa: Itapemirim, Itabapoana, Guaxindiba, Paraíba do Sul, Iguaçu e Macaé, entre eles, pequenos córregos também formavam estuários favoráveis ao desenvolvimento de manguezais.
Não contamos com documentação robusta para demonstrar que pescadores de Cabo Frio chegaram em 1622, instalando-se na atual praia de Atafona e fundando posteriormente a vila de São João da Praia, depois São João da Barra. Eles teriam iniciado a colonização contínua da região dez anos antes dos sete capitães, que empreenderam expedições em 1632, 33 e 34 para tomar posse efetiva de terras requeridas à Coroa Portuguesa como sesmarias, a fim de criar gado para atender à cidade do Rio de Janeiro. A colonização pelo gado e logo a seguir pela agricultura foi rápida. Em 50 anos, Campos já se destacava como polo significativo da colonização e da globalização europeias.
O século XVII coloca uma opção de desenvolvimento econômico para os colonos estrangeiros. Os grupos indígenas que viviam no futuro norte fluminense sustentavam-se com uma economia de subsistência baseada na coleta, na pesca e na caça, com uma agricultura rudimentar e complementar. O mais completo estudo sobre o modo de vida dos povos nativos da região foi redigido pelas arqueólogas Tania Andrade Lima e Regina Coeli Pinheiro da Silva sobre o arquipélago de Santana, defronte a foz do rio Macaé (Zoo-arqueologia: alguns resultados para a pré-história da ilha de Santana. Revista de Arqueologia 2(2). Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1984).
A pesca seria um caminho a seguir? Hoje, existem países com forte economia pesqueira. Podemos mencionar Dinamarca, Japão e Taiwan. Inseridos num contexto capitalista, a pesca, nesses países, visa o mercado. Trata-se de uma atividade industrial sobre organismos aquáticos. Tendo a extração um caráter de progressão geométrica sobre animais que se reproduzem em progressão aritmética, o resultado é a extinção de espécies. Além do mais, nesses países, a pesca é praticada no mar, não em águas interiores.
Como seria a baixada dos Goytacazes se, em vez da agropecuária, a colonização fosse promovida pela pesca? É de se esperar que não fosse praticada nos moldes da economia de subsistência dos povos nativos, mas em moldes de uma economia de mercado. Isso significa que a atividade pesqueira exigiria transformações no sistema hídrico original, a introdução de espécies exóticas e o extrativismo acima de seus limites. De certa forma, a pesca interior e marítima praticada no norte fluminense ainda não pode ser considerada industrial. Mesmo assim, produz danos aos ecossistemas e à fauna extraída, com desrespeito aos períodos defesos e tantas irregularidades mais. A pesca que se pratica nas lagoas, rios e mares, aqui, não é exemplo de uma atividade ecologicamente sustentável.
Além do mais, no século XVII, este dilema não se colocava aos colonizadores. Certamente, os sete capitães, seus descendentes, jesuítas, beneditinos e Assecas não estavam imbuídos de motivações ambientais. O interesse de todos era o ganho fácil e rápido. Não era de peixes que careciam o Rio de Janeiro e a Europa. A planície do Rio de Janeiro não tem área grande e foi ocupada pela agroindústria açucareira, com campos plantados e engenhos. Aconteceu no Rio de Janeiro o que aconteceu com o Brasil litorâneo: o gado foi empurrado para o interior para que a cana fosse cultivada na zona costeira. No Rio de Janeiro, o gado foi expulso para o norte fluminense.
Para a criação de gado numa zona extremamente úmida, seria necessário a sua conversão em terras apropriadas para a agropecuária. Como não houvesse tecnologia para grandes obras de drenagem, os colonos se conformaram a plantar e a criar nas terras mais altas, não completamente sujeitas às águas. A umidade foi um fator limitante à agropecuária por séculos. Comparada à que se prática atualmente, ela era pífia. E observe-se que a região não tem peso expressivo na produção nacional. As demandas também não eram tão grandes no século XVII como hoje, em que o mundo está cada vez mais globalizado pelo capitalismo nascido no ocidente.

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    Aristides Soffiati

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