Uma escritora em dois mundos
31/03/2017 09:28
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 31 de março de 2017
Uma escritora em dois mundos
Aparício Torres
 
Maria Valéria Rezende lançou dois livros recentemente: “Quarenta dias” (Rio de Janeiro: Objetiva, 2014) e “Outros cantos”. (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016). Ela não é marinheira de primeira viagem. Não é uma aventureira das letras, que lança um livrinho qualquer em meio a muita festa e a pouca qualidade literária. A literatura mundial está cheia de autores superficiais.
Maria Valéria já fincou pé na literatura brasileira com os romances “O voo da guará vermelha” (2005) e “Vasto Mundo” (2001), assim como com os livros de contos “Modo de apanhar pássaros à mão” (2006) e a “A utilidade da cobra”. Ela participou ativamente da resistência contra o regime militar brasileiro, estudou letras e educação no Brasil e na França. Trabalhou em educação popular. Mora na Paraíba. O que mais surpreende na autora é o fato de ela ser freira. Uma freira ficcionista com grande cultura literária.
É ela que reclama do rótulo de literatura regional para aqueles que escrevem fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo. De fato, o regionalismo não tem mais muito sentido hoje no Brasil. Ou ele está no passado ou na memória dos escritores. Ronaldo Correia de Brito talvez seja o autor que mais se aproxime do regionalismo atualmente. Mas o sertão que ele visita em suas obras está em frangalhos. Sua ficção transita entre o sertão descaracterizado e a cidade.
Em “Quarenta dias”, Maria Valéria Rezende sai da sua amada Paraíba na pessoa de Alice e vai transitar em Porto Alegre, já uma grande cidade. Ela mostra que sabe construir personagens. A filha de Alice se casou e foi morar em Porto Alegre. Alice é uma professora aposentada que gosta de ler, embora não tenha uma grande biblioteca. Como mora sozinha, só conta com amigas e com um diário redigido num caderno escolar com Barbie na capa. Em seus apontamentos, ela conversa com Barbie, que deve ter a sua idade, mas permanece sempre jovem e bonita.
De repente, sua filha Norinha monta uma armadilha para a mãe. Ela é praticamente sequestrada por sua filha e seu genro para Porto Alegre a fim de cuidar de um neto planejado pelo casal de universitários. Numa narrativa original, a autora mostra Alice rebelando-se contra os planos traçados para ela. O estilo é rápido, com diálogos inseridos na própria narrativa na primeira pessoa, representada por Alice. Toda intervenção é embutida no texto, à moda de Saramago. Ela se inicia sempre com letra maiúscula. Quando os parágrafos não concluem o pensamento, deixando a suposição para o leitor, não há ponto.
Todo capítulo do diário começa com o pensamento de um autor a guisa de epígrafe. Talvez esse artifício extraia um pouco a condição de diário. Também aparecem notas de compras e anúncios, que bem poderiam ser papeis recolhidos por Alice e guardados no diário. A narradora não apela para o que se considerava há pouco tempo como palavrão nem para erotismo. Ao contrário, quando recorre a algo parecido, acaba exclamando “Ave-Maria, Quanto nome feio acabei de escrever!, eu que nunca fui disso!”
Em Porto Alegre, Alice é acomodada num apartamento confortável, mas que não a agrada por não ser o seu, na Paraíba. Ela consegue uma diarista do Nordeste de quem fica íntima, pois ambas se sentem desterradas na cidade. Num belo dia, sua filha Norinha e seu genro Umberto a convidam para jantar e lhe dão a notícia de que vão viajar para o exterior por quase um ano para continuar os estudos. Alice se sente abandonada e se revolta. Logo em seguida, uma amiga da Paraíba lhe informa que o filho da manicure de ambas foi para Porto Alegre e nunca mais deu notícias. Alice é convocada a procurar Cícero. Essa busca incessante leva Alice a percorrer os bairros, as favelas, os hospitais e as cidades vizinhas à procura de Cícero. A narrativa ganha um segundo fôlego.
Na procura, Alice conhece muitas pessoas. Descobre que há muitos nordestinos morando em Porto Alegre. Aprende o linguajar do sul. Passa a falar duas línguas: a nordestina e a sulista. Várias gafes de Alice são hilariantes. Ela tem humor. Seu diário e suas conversas com Barbie passam a ter um caráter metalinguístico no livro. Os registros não se dirigem a ninguém a não ser a ela própria, mas se trata de um livro para leitura de outros.
Com filha e genro no exterior, a vida de Alice ganha sentido com a procura de Cícero em Porto Alegre. Ela conhecerá a cidade e seus habitantes nessa procura. Enquanto o encontro de Cícero é uma esperança. A narrativa é densa. Mas sua força começa a arrefecer quando a procura não rende o fruto esperado.
Ao longo do romance, Alice compara Porto Alegre a sua terra natal, o presente ao passado. À educação, à medicina de seu tempo com as dos dias atuais. “Agora, até parece não haver mais médicos, só engenheiros de órgãos isolados, muitos nem olham pra cara do paciente nem perguntam nada, passam uma batelada de exames eletro-ultrassônico-cibernéticos, olham pros papéis e pro computador, escrevem em uns e no outro, e a gente mesmo tem de fazer o próprio diagnóstico pra saber em que especialista vai.”
Na sua humanidade, Alice humaniza Barbie. Uma leitura atenta do livro dá a impressão de que o diário de Alice não é escrito no dia a dia, mas no final da grande aventura de sua vida. Lembra de seus avós. Tem uma história antiga atrás de si. Tem memória. Escreve de forma coloquial. Nas suas buscas, acaba se transformando numa moradora de rua quase até o final do romance. Maria Valéria coloca em Alice sua experiência de freira.
Sobre o viciante celular, ela é perspicaz: “Não aguento gente que, mesmo sentada num restaurante com quem lhe fez um convite pra almoçar, se essa coisa tocar, larga você, sozinha, bestando, olhando pras moscas, esperando respeitosamente, a presença eletrônica mais forte e exigente do que a presença de uma criatura de carne e osso.”
Sobre sua ficção: “Ninguém vai ler o que escrevo, mas escrevo. É a única maneira de voltar inteiramente, se é que dá pra fazer meia-volta-volver (...) deixar escorrer tudo do corpo pra caneta e pro papel.” Ela zanza tanto por Porto Alegre e arredores que “Toda a energia que eu tinha exibido atravessando a pé quilômetros daquela cidade pareceu escorrer pro chão pelos meus pés agora doloridos, deixando atrás de si um desânimo enorme.” A grande cidade se transforma para ela num não-lugar. Será que ela conhece o antropólogo Marc Augé?
No premiado “Outros Cantos”, Rezende volta, quarenta anos depois, a Olho d’Água, lugarejo em que iniciou sua vida de professora pelo Mobral. A personagem Maria, que parece ser a autora, parte do leste em direção a oeste. Ela saiu do lugarejo por razões políticas durante a vigência da ditadura militar. Viajou ao México e ao Saara na Argélia, lugares que lhe servirão de referências nas suas comparações com o sertão nordestino. Quarenta anos remete ao título do romance “Quarenta dias” e a um número bíblico, ligando a autora a sua condição de freira.
O romance avança em cortes. Um capítulo narra a viagem com suas paradas e suas andanças num ônibus em direção a Olho d’Água. O capítulo seguinte aborda suas lembranças do lugarejo. “O sertão não é mais sertão e ainda não virou mar. As casas sertanejas encheram-se de trastes e abandonaram aquela estética do essencial, minimalista, diriam hoje, que me encantava na minha casinha e em todas as outras de Olho d’Água?” Pergunta-se durante a viagem.
Contrastando passado e presente, ela toma o exemplo da música: “... liga uma traquina eletrônica qualquer e me oferece as vozes em terça da agora chamada música sertaneja, inteiramente alheia ao meu antigo sertão. Não é só o fast-food no estômago, é o fast-food no cérebro...”
O tempo todo está presente a tensão entre passado e presente, entre o antigo e o moderno. A integridade do sertão, mesmo com suas perversidades, foi estilhaçada. Essas perversidades eram a condição feminina, com maridos tendo o direito de bater nas esposas, a autoflagelação coletiva de homens por motivos religiosos etc. Maria se sentia na Idade Média. Era uma citadina extraviada no sertão. Mas ela não relata como é o novo sertão. Não chega ao lugarejo de seu passado, que está na sua memória. O novo está na sua imaginação. Talvez seja uma técnica ficcional: deixar o lugar em suspenso para o leitor.

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    Sobre o autor

    Aristides Soffiati

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