Barra do Furado
02/02/2017 12:48 - Atualizado em 02/02/2017 12:48
Barra do Furado
Arthur Soffiati
 
Vira e mexe, Barra do Furado volta à pauta. E bota vira e mexe nisso. A primeira vez que a questão de uma saída para o mar pelo sul da lagoa Feia foi discutida remonta a 1688, no século em que a colonização portuguesa contínua da região começou. A geografia da baixada era então bem diferente que a de hoje. Da lagoa Feia, partiam vários canais naturais por onde a água escoava, reunindo-se todos ou quase todos num único ou quase único canal. Os antigos o conheciam com o nome de rio Iguaçu. Ao norte, corria o rio Paraíba do Sul. Quase paralelo a ele, na parte meridional, corria outro sistema complexo que até hoje é difícil de identificar. Ele começava com os rios Imbé e Urubu, que se alargavam na lagoa de Cima, que escoava pelo rio Ururaí, que recebia parcialmente a contribuição do rio Preto. As águas do Ururaí se alastravam na lagoa Feia, que recebia água dos rios Macabu e da Prata, além de água do Paraíba do Sul pelo lençol freático.
Dela, as águas se distribuíam por vários canais que se juntavam no chamado rio Iguaçu. No seu curso rumo ao que hoje é a barra do Açu, ele recebia água do Paraíba do Sul por vários canais naturais. Quando havia muita água, ele forçava a barragem de areia entre a lagoa do Lagamar e o mar, principalmente por força do rio Bragança, seu afluente, formando o que era conhecido por Barra Velha. O príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied registrou esse rio por escrito e por desenho. Era lindo. Hoje, não existe nitidamente.
Voltando a 1688, o capitão José de Barcelos Machado, um dos descendentes indiretos dos Sete Capitães, herdou terras ao sul da lagoa Feia. Era o Morgado de Capivari. Ele olhou pra aquela água toda correndo pelos canais naturais perto do mar e entendeu que faltava inteligência a ela. Recorrendo à ficção, ele perguntou por que ela não atingia o mar ali, tão perto, em vez de se dirigir para a barra do Canzoza, como se chamava antigamente a barra do Açu. A água doce respondeu, mas poucos entendem sua linguagem. “Porque aqui, o mar é muito forte e não deixa eu abrir uma saída por bastante tempo. Veja no Lagamar. Eu abro a Barra Velha, jogo-me no mar e logo ele fecha. No Açu é diferente. A saída lá é protegida da corrente dominante.”
Foi o que aconteceu. A vala do Furado só se mantinha aberta se a força da água doce no continente conseguisse enfrentar o mar. Vala do Furado não é o mesmo que canal da Flecha, gente. Leiam esse artigo até o fim. Não contente com a teimosia do mar em fechar a Barra do Furado, a engenharia sanitária tentou ligar a lagoa Feia ao mar por um canal retilíneo. A ideia foi do engenheiro Marcelino Ramos da Silva, que escolheu o ponto em que a lagoa mais se aproxima do mar. Esse ponto fica em terreno de restinga, portanto arenoso. Saturnino de Brito, outro engenheiro, advertiu que o canal não daria certo, pois a areia da restinga esboroaria e entupiria o canal. Marcelino o abriu assim mesmo em 1898, com o nome de Ubatuba ou Jagoroaba. A previsão de Saturnino de Brito se concretizou. Marcelino admitiu que havia cometido um erro. Mas a ideia de lançar água doce excedente para o mar pela Barra do Furado continuou. Até mesmo Saturnino de Brito, tão cauteloso, admitiu que um canal entre a lagoa Feia e o mar em terreno argiloso vingaria.
Criado em 1940, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) abriu, entre 1942 e 1949, o conhecido canal da Flecha, que funcionaria como outro defluente de água para o mar junto com o rio Paraíba do Sul. Para domesticar as águas revoltas da Baixada dos Goytacazes, era necessário aproveitar os canais naturais que ligavam o Paraíba do Sul ao Iguaçu, drenar as lagoas horríveis que eles formavam, desviá-los para o canal da Flecha, dar a eles um traçado retilíneo e tudo funcionaria às mil maravilhas. Não funcionou.
A força do mar tapava a foz do canal da Flecha no mar como tapava a barra da vala do Furado e a Barra Velha. Então, o DNOS teve uma ideia brilhante: prolongar o canal mar adentro por dois espigões (guias-correntes). Com a barra permanentemente aberta, seria possível construir um ancoradouro e um terminal pesqueiro para os pobres pescadores do Farol de São Tomé. Na verdade, a intenção não declarada era criar um porto para os petroleiros da Petrobras, para os navios pesqueiros industriais de alto mar e para drenar e dessalinizar uma vasta área para a agropecuária. Há quem me conteste quanto a estas afirmações. A diferença é que sou testemunha dessa história, além de contar com documentos. Falo e escrevo com base.
Mas quem faria obra tão suntuosa? Só havia um empresário capaz de executá-la. Ele era, ao mesmo tempo, deputado federal bem quisto pelo governo militar e pelo Ministério do Interior. Quem, quem, quem? Ninguém mais que o deputado-empresário Alair Ferreira. Ele tinha uma pedreira, os caminhões para transportar as pedras e uma empresa de engenharia. Sem nenhum estudo de impacto ambiental, a obra foi feita. Resultado: o espigão da margem direita do canal (lado de Quissamã) passou a reter areia, enquanto que, do lado esquerdo (lado de Campos), o mar erodiu a costa. Na época, lembro-me bem, fui o único a condenar as obras publicamente. Políticos regionais e população acreditaram que a obra seria a redenção da região. O DNOS era, então, uma espécie de Eike Batista da época. Como ele, um ídolo de pés de barro. Não se falava em DNA da empresa, mas, tanto o DNA do DNOS quanto o DNA das empresas de Eike eram enganosos. Diziam ser DNA de elefante, mas não passavam de minhoca.
A obra só agravou os problemas costeiros de assoreamento e erosão. Elas ficaram lá, abandonadas. Posteriormente, surgiram otimistas (eles são muito perigosos) com propostas de aproveitá-las no desenvolvimento regional. As propostas não saíram do papel. Parece que haviam enterrado uma caveira de burro em Barra do Furado. A última tentativa foi empreendida nos oito anos do governo Rosinha, com apoio do governo de Quissamã. Lembro-me bem do início. Agora, estudos de impacto ambiental aprovados pelo INEA, audiência pública validada pelo INEA, autorizaram as obras, iniciadas e logo interrompidas.
Nenhuma empresa quer investir em infraestrutura. Elas querem encontrá-la pronta para montar seus negócios. Coube às prefeituras de Campos e de Quissamã investirem dinheiro dos royalties para montar a infraestrutura, ou seja, resolver o problema do acúmulo de areia do lado oeste, aprofundar o calado para a entrada de navios e criar área para a construção de plantas empresariais. É sempre problemático confiar em fluxo de dinheiro fácil. Um dia a torneira pode fechar. Foi o que aconteceu com os royalties. Não que a torneira tenha sido totalmente fechada. Mas o que vaza dela é muito pouco. Parece o conjunto de reservatórios da Cantareira em São Paulo em 2014-2015. O consumo de água foi maior que o volume de chuvas. Foi necessário adotar o racionamento.
Para voltar à Barra do Furado como local de empreendimentos econômicos, é preciso levar em conta os seguintes pontos: 1- nada que seja feito lá, redimirá a região. Há que ser mais humilde, fazer projetos mais modestos, ter os pés no chão; 2- Tudo o que se fizer lá deve partir do princípio de que os problemas de retenção de areia e erosão costeira devem ser resolvidos de modo a alinhar a costa novamente; 3- todo empreendimento lá realizado deve beneficiar também os pequenos, sobretudo pescadores; 4- toda intervenção lá efetuada deve levar em conta a dimensão ambiental, do contrário, a Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (nome horrível que poderia voltar a ser simplesmente para Secretaria Municipal do Meio Ambiente) não poderá mais levar as pessoas para conhecer o Manguezal da Carapeba; e 5- transparência governamental sempre. Apesar de vídeos, folders e visitas guiadas, nunca se soube exatamente o que as prefeituras de Campos e de Quissamã queriam realizar em Barra do Furado.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Aristides Soffiati

    [email protected]