Hoje na Curva: A culpa é de Adrielly
Suzy 09/01/2013 21:28
  “Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panaceia, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue... Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, o que terei como preceito de honra. Nunca me servirei da minha profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu para sempre a minha vida e a minha arte com boa reputação entre os homens; se o infringir ou dele afastar-me, suceda-me o contrário”.   Juramento de Hipócrates, com atualização hoje utilizada no Brasil A culpa é de Adrielly   Doutor Adão Orlando Crespo Gonçalves não se sente culpado pela morte de Adrielly Santos Vieira. Afinal, ele já havia faltado a todos os plantões em dezembro no hospital Salgado Filho. Afinal, o serviço público de saúde é uma droga mesmo. Afinal, ele é um neurocirurgião, merece mais do que trabalhar em um hospital sem estrutura, tentando salvar e toda sorte de pessoas que, às portas da morte, nunca é culpada. O doutor admite ao jornal O Globo (edição de ontem) que vinha faltando ao trabalho com o intuito de ser demitido. “É necessária a falta em 30 dias consecutivos para que se inicie o processo de demissão. Não se trata de radicalismo, e sim de lei trabalhista”, afirma. E acrescenta qual o procedimento normal: “você deve solicitar demissão, provar que não deve nada como servidor, provar que não tem processo administrativo e continuar trabalhando até a publicação no Diário Oficial do Município”. Mas isso, destaca o médico em seu terno impecável e seus óculos importados, leva meses por causa da burocracia. Então, melhor faltar. Avisou ao chefe, mesmo sabendo que não havia substitutos. Porém, quem haveria de prever uma tragédia. Aliás, tragédia, não. Mais uma pessoa atingida por bala perdida. Era criança, se lamenta, mas fazer o que? Nasceu pobre e no Brasil: Está sujeita a isso. Também não tem culpa pela morte de Adrielly o tal chefe do setor, que foi avisado da falta. Não substituiu, não gritou. O que poderia acontecer? E acontecer faz parte das emergências. É só olhar as estatísticas. E Adrielly é mais um número nas estatísticas. Culpada mesmo é Adrielly. Culpada por morar em Piedade, perto dos morros do Urubu e do Urubuzinho. Culpada por ganhar presente de Natal e ficar feliz. Culpada também por sair de casa para mostrar a boneca que ganhou, talvez tão esperada, talvez “aquela” boneca, sonho de tantas meninas. Culpados, também, são os pais. Quem mandou ter filhos e não poder pagar um neurocirurgião? Quem mandou não poder ir a um hospital particular? Aliás, quem mandou ter filhos? Sabe-se Deus onde estava Dr. Adão na Ceia de Natal, se dormindo aborrecido ou em alguma festa, entre espumantes e castanhas. Pouco importa. Não estava onde deveria estar. Sabe-se Deus onde estava o chefe, onde estava o serviço público. Não foram suficientes. Talvez Adrielly – pela gravidade do ferimento – tivesse morrido mesmo assim. Mas, pais e familiares não carregariam a culpa e a incerteza, além da dor imensa, pelo resto de suas vidas. E talvez, só talvez, Adrielly tivesse uma oportunidade de sobreviver, quem sabe agradecer ao médico que a salvou e, até por isso, tornar-se médica, salvando vidas e fazendo jus ao juramento escrito por um maluco, quatro séculos antes de Cristo, aquele nascido na noite em que ela deu seu último sorriso.

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    Suzy Monteiro

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