Uma Fotografia Aérea - Ferreira Gullar
diomarcelo 09/01/2011 19:37
Uma fotografia aérea - audio Ferreira Gullar - Click Aqui Uma fotografia aérea Eu devo ter ouvido aquela tarde um avião passar sobre a cidade aberta como a palma da mão entre palmeiras e mangues vazando no mar o sangue de seus rios as horas do dia tropical aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos seus jardins eu devo ter ouvido aquela tarde em meu quarto? na sala? no terraço ao lado do quintal? o avião passar sobre a cidade geograficamente desdobrada em si mesma e escondida debaixo dos telhados lá embaixo sob as folhas lá embaixo no escuro sonoro do capim dentro do verde quente do capim lá junto à noite da terra entre formigas (minha vida!) nos cabelos do ventre e morno do corpo por dentro na usina da vida em cada corpo em cada habitante dentro de cada coisa clamando em cada casa a cidade sob o calor da tarde quando o avião passou II eu devo ter ouvido no meu quarto um barulho cortar outros barulhos no alarido da época rolando por cima do telhado eu devo ter ouvido (sem ouvir) o ronco do motor enquanto lia e ouvia a conversa da família na varanda dentro daquela tarde que era clara e para sempre perdida que era clara e para sempre em meu corpo a clamar (entre zunidos de serras entre gritos na rua entre latidos de cães no balcão da quitanda no açúcar já-noite das laranjas no sol fechado e podre àquela hora dos legumes que ficaram sem vender no sistema de cheiros e negócios do nosso Mercado Velho - o ronco do avião) III eu devo ter ouvido seu barulho atolou-se no tijuco da Camboa na febre do Alagado resvalou nas platibandas sujas nas paredes de louça penetrou nos quartos entre redes fedendo a gente entre retratos nos espelhos onde a tarde dançava iluminada Seu barulho era também a tarde (um avião) que passava ali como eu passava à margem do Bacanga em São Luís do Maranhão no norte do Brasil sob as nuvens IV eu devo ter ouvido ou mesmo visto o avião como um pássaro branco romper o céu veloz voando sobre as cores da ilha num relance passar no ângulo da janela como um fato qualquer eu devo ter ouvido esse avião que às três e dez de uma tarde há trinta anos fotografou nossa cidade V meu rosto agora sobrevoa sem barulho essa fotografia aérea Aqui está num papel a cidade que houve (e não me ouve) com suas águas e seus mangues aqui está (no papel) uma tarde que houve com suas ruas e casas uma tarde com seus espelhos e vozes (voadas na poeira) uma tarde que houve numa cidade aqui está no papel que (se quisermos) podemos rasgar

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