Lançamento do livro "Teoria sistêmica da desigualdade" na Acadêmia Campista de Letras
23/08/2023 | 15h14
No próximo sábado dia 26 de agosto, as 16 horas, farei lançamento e apresentação do meu livro “Teoria sistêmica da desigualdade” na sede da Academia Campista de Letras (ACL), no Jardim São Benedito em Campos-RJ. O livro foi publicado pelo Ateliê de Humanidades em julho deste ano. Será o primeiro evento de lançamento na cidade. Agradeço à ACL, na pessoa de seu presidente Christiano Fagundes, por esta honrosa oportunidade.

Breve apresentação do livro
Estruturas de desigualdade: produção, reprodução e transformação
O livro propõe uma teoria não estruturalista das desigualdades sociais. A ideia central é que estruturas de desigualdade são construídas, reproduzidas e transformadas pelas práticas de diferentes sistemas sociais. E como a sociedade é um conjunto complexo de sistemas sociais diferenciados, as estruturas de desigualdade também são múltiplas e em grande medida distintas de acordo com o sistema social. Não existe, por exemplo, uma estrutura de classes que define de antemão as chances das pessoas na economia, no sistema de ensino, no direito e na política. O que chamamos de desigualdade de classe são formas de classificação de pessoas produzidas por cada um destes sistemas sociais, e que se tornam, em cada um deles, fenômenos estruturais distintos. O mesmo vale para desigualdades de gênero e de raça.
Minha proposta é romper com o que chamo de unitarismo estrutural: a ideia de uma estrutura difusa de desigualdade que determina de fora as chances das pessoas nos diferentes sistemas sociais. Como alternativa apresento a ideia de desigualdades estruturadas dentro de cada sistema. Embora existam influências das desigualdades do ambiente sobre as desigualdades do sistema, estas influências não são automáticas. Estas influências só podem existir de modo indireto, pois os sistemas sociais desempenham um papel ativo em produzir, reproduzir ou transformar estruturas de desigualdade. Pesquisas empíricas sobre desigualdades educacionais mostram, por exemplo, que desigualdades sociais externas não penetram diretamente na escola. A organização escolar não é passiva, mas sim ativa, decidindo ou não construir desigualdades educacionais com base em desigualdades sociais externas.
Apresento uma teoria não determinista sobre a desigualdade que pode ajudar a compreender as desigualdades existentes no Brasil como o resultado de práticas e decisões organizacionais dos mais diversos tipos. Trata-se de observar como o Estado e suas diversas organizações, as empresas, as escolas, os tribunais constroem estruturas de desigualdade de classe, gênero, raça etc. Um aspecto importante de minha proposta é a existência de uma única e mesma sociedade mundial e a recusa em falar de sociedades nacionais. O Brasil não é uma sociedade com uma estrutura de desigualdade própria, mas sim um Estado-nação integrado nesta sociedade global. Isto significa que as desigualdades dentro do Brasil precisam ser relacionadas com desigualdades entre o Brasil e outros países. Não apenas pessoas são colocadas em posições desiguais em relação a outras pessoas. Isto também ocorre com países.
Desigualdades são estruturas construídas, reproduzidas e transformadas por diferentes práticas sociais que frequentemente geram efeitos cumulativos intergeracionais, mas estes efeitos podem ser interrompidos por outras práticas como as políticas públicas e também por processos de mudança estrutural em cada sistema. Desigualdades são, portanto, estruturas contingentes: não precisam ser como são e podem ser substituídas por outras estruturas. A contingência das estruturas de desigualdade significa que o presente de sistemas sociais sempre oferece possibilidades maiores ou menores de transformação estrutural. Desigualdades estruturais são o resultado de práticas do presente que reforçam processos de acumulação de vantagens e desvantagens.
As desigualdades do passado são evidentemente importantes, mas sua importância é sempre decidida e atualizada no presente das práticas sociais, nos níveis micro, intermediário e macro da vida social. Tomemos como exemplo o caso da chamada “herança da escravidão” no Brasil. O passado de trabalho escravo em massa foi certamente um obstáculo estrutural à inclusão dos libertos e de seus descendentes nos diferentes sistemas da sociedade: na economia, no ensino, na política, e até mesmo na esfera da vida afetiva em família. Mas esta “herança da escravidão” não determinou de modo necessário a exclusão dos negros na sociedade pós-escravista. O significado do passado é definido no presente de práticas e decisões sistêmicas, como a decisão de bloquear o acesso dos negros à propriedade da terra, a direitos trabalhistas, à educação etc. Não é uma estrutura do passado que se projeta por si mesma no presente de sistemas sociais que reproduzem passivamente esta estrutura. É o presente que seleciona e atualiza o passado. São decisões e práticas que selecionam e reiteram ativamente as estruturas de desigualdade já criadas, em um horizonte de possibilidades relativas de mudança estrutural.
Na verdade, mesmo a reprodução de estruturas do passado não é meramente reprodução; inovações são sempre introduzidas, ainda que as mesmas populações permaneçam com vantagens ou desvantagens relativas entre si. A acumulação de desigualdades econômicas, educacionais, políticas e jurídicas que afetam negros, mulheres e pobres, assim como outras categorias, é formada por estruturas plurais de desigualdade que são acopladas de modo mais forte entre si, criando polarizações entre categorias sociais cuja participação nos sistemas sociais não produz pontos de contato e cooperação.
Desigualdade e igualdade
A existência de estruturas de desigualdade localizadas em certas organizações e contextos não é o grande problema da sociedade em que vivemos. O igualitarismo pleno não é possível nem desejável em nenhum contexto, pois ele viola outros valores sociais como liberdade e mérito. O grande problema é a acumulação de vantagens e desvantagens em diferentes sistemas por parte de determinadas categoriais de classe, de gênero e raça, ou seja, quando estas categoriais se combinam com assimetrias que tendem a ser reproduzidas em vários sistemas e contextos, inviabilizando não só a mobilidade, mas também desacreditando a própria expectativa de que o intercurso social pode ocorrer de forma relativamente independente de classe, gênero ou raça. Este tipo cumulativo e generalizado de desigualdade é um traço do Brasil, mas não é uma fatalidade definida por nenhum mal de origem e muito menos uma peculiaridade brasileira ou de países do chamado “sul global”. Ele também está presente em países ditos desenvolvidos como os EUA, Alemanha, Inglaterra e França.
A reprodução das desigualdades é o resultado de práticas e decisões organizacionais em empresas, escolas, organizações políticas, jurídicas e outras, que produzem a categorização desigual de pessoas em termos de classe, gênero e raça. A existência de desigualdades entre ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres não é o resultado de categorias e estruturas que antecedem o funcionamento de sistemas sociais como estas organizações que impactam diretamente a chance de vida das pessoas. São as organizações que constroem a adotam ativamente estas estruturas de desigualdade como solução para seus problemas operativos.
Podemos trazer como exemplo a prática do perfilamento racial pela polícia e pelo judiciário. Estas organizações adotam o perfilamento racial como solução para o problema de selecionar quem abordar na rua, e com isso produzem e reproduzem claramente uma estrutura racializada de desigualdade que combina atribuição de conduta suspeita ou criminosa com traços físicos. Para desconstruir na prática esta estrutura de desigualdade é preciso encontrar uma estrutura alternativa que oriente a distinção sobre quem abordar ou não abordar e que seja independente de categorias raciais. A dificuldade em promover a igualdade decorre do fato de que as organizações aprendem a resolver problemas e a tomar decisões com base em desigualdades já estabilizadas.
Toda organização precisa classificar e excluir pessoas, isto é inevitável. O que pode ser evitado é que isto seja feito com base em categoriais sociais que levem a acumulação de vantagens e desvantagens em vários sistemas sociais. O processo de mudança depende de aprendizados organizacionais capazes de modificar estruturas e rotinas de práticas e decisões. Mas não podemos absolutizar o valor da igualdade e exigir um igualitarismo impraticável e indesejável. Não é um grande problema a existência de desigualdades contextualizadas, ou seja, que não conduzem nem à acumulação de vantagens e desvantagens em diferentes sistemas, nem a criação de categoriais sociais opostas que vivem, na prática, sempre em sistemas sociais distintos.
Em resumo, a busca deve ser por uma igualdade relativa, ou complexa como diria Michael Walzer, cujo principal ponto de referência na sociedade em que vivemos é a cidadania nacional enquanto esfera de igualdade capaz de assegurar uma vida considerada digna e de valor independente de estruturas de desigualdade existentes em outras esferas. Para que esta igualdade complexa ou relativa seja uma estrutura real é preciso que esta esfera da igualdade seja autônoma o suficiente para evitar que experiência de exclusão social em um sistema funcional – como na economia – gere efeitos cumulativos em outros sistemas como a educação, a política e o sistema jurídico.
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A negação da história nos 30 anos da UENF
21/08/2023 | 17h32
No último dia 16 de agosto a UENF se vestiu para a festa. Emocionados, alunos, servidores técnicos, professores e a comunidade se prepararam para celebrar, com rito e cerimônia oficial, os 30 anos da Universidade. Rituais e cerimônias, independente do tamanho e da pompa, nos convocam a suspender interesses e preocupações imediatas e nos remetem à duração de coisas grandiosas, que transcendem o horizonte estreito que assumimos em nossas atividades e pelejas corriqueiras. São oportunidades de grandeza e magnanimidade até para quem vive atolado na mediocridade e nas intrigas. Somos inseridos em um trabalho extraordinário de memória coletiva: esquecer de coisas pequenas lembrando e exaltando algo grandioso que nos congrega. Na vida privada, momentos rituais e cerimoniosos como aniversários e funerais de entes queridos costumam ser marcados por gestos extraordinários de unidade e transcendência da mesquinharia e das intrigas que costumam afetar o cotidiano das famílias e das relações pessoais. Na vida pública, são situações propícias até para políticos do varejo de curto prazo ensaiarem o papel de estadista ao menos uma vez. Rituais e cerimônias são momentos de celebrar e performar a grandeza de instituições e coletividades. Participar destes momentos é poder tomar parte de algo grandioso que ultrapassa os feitos pessoais e a temporalidade de cada um; e estes feitos adquirem sua eventual grandeza unicamente ao se mostrarem parte da construção da obra duradoura em uma temporalidade cheia de história, memória e futuro, e que transcende o ciclo de vida e atuação das pessoas. Daí que a honra ritual aos ancestrais de uma instituição é menos um culto a personalidades do que o reconhecimento de contribuições importantes para o legado da obra maior.
Nestes 30 anos da UENF, foram muitos os que contribuíram para a construção desta grandiosa Universidade, deixando assim seu nome nas páginas de nossa história e memória. Neste período, foram muitas as conquistas e batalhas que envolveram um grande número de pessoas. Muitas destas pessoas ainda estão na Universidade, outras seguiram sua vida em outras instituições e atividades, mas sempre se fazem presentes nos rituais da UENF, quando convidadas. Uma parte significativa delas estava presente na Reunião Extraordinária do Conselho Universitário (CONSUNI) da Universidade, no Centro de Convenções Oscar Niemayer, para a cerimônia oficial de comemoração do aniversário da instituição. Muitos chegaram à UENF no momento de sua criação e participaram de seus primeiros passos. Como ex-aluno, atual professor e membro do CONSUNI, observava com muita reverencia, respeito e encanto nossos “cabeças brancas” chegando para a honrosa cerimônia. Incitado pela memória oral, pelos causos que tenho o prazer de ouvir pessoalmente de alguns deles, sempre fico imaginando a ousadia e os feitos destas senhoras e senhores para construir e fazer durar e crescer a UENF. É um privilégio conviver diariamente com a memória viva e encarnada da Universidade. A expectativa era que a cerimônia de aniversário fosse um ritual de reverência à história e à memória da instituição, o que incluiria lembrar a contribuição de gerações e pessoas que criaram e deram prosseguimento à obra coletiva de 30 anos. Mas a contribuição de nossos “cabelas brancas” foi solenemente ignorada na cerimônia organizada e conduzida pela reitoria.
Perplexos, assistimos uma blasfêmia ritual, um esforço tosco e indecoroso do reitor Raul Palacio para exaltar sua própria gestão em vez de celebrar a obra maior e transcendente que ali nos reunia. Três ex-reitores estavam presentes. Nenhum deles foi convidado a compor a mesa oficial, composta pelo reitor, diretores dos centros e pró-reitores. Também não foram mencionados pelo reitor com o mínimo de deferência. Sua contribuição à história da UENF foi esquecida, como se a Universidade tivesse começado a existir na atual gestão. Outros dois ex-reitores muito importantes na história da UENF estariam presentes se fossem convidados: O professor Wanderley de Souza, que dirigiu a implantação da estrutura da UENF, e o professor Salassier Bernardo, primeiro reitor eleito da Universidade. O atual dirigente máximo da instituição colocou o interesse eleitoral interno e a pequena política no lugar do ritual da grandeza que nos leva a transcender os particularismos. Depois que os diretores dos centros (CCTA, CCT, CCH, CBB) exaltaram a história e a memória da UENF, era a vez do reitor encerrar a cerimônia, encarnando, pelo menos de forma extraordinária, o papel do estadista com visão estendida do passado e do futuro. Mas parecíamos estar diante de um candidato a vereador tentando fidelizar sua clientela. O vício pela pequena política parece não ter deixado nenhum espaço para nada maior. Os grandes feitos científicos que marcam a história da UENF e o trabalho que os servidores realizaram antes que o atual grupo político chegasse ao poder pareciam não ter nenhum valor. A história da UENF foi sistematicamente negada no seu aniversário de 30 anos.
A negação mais evidente e escandalosa de nossa história foi a narrativa de que a primeira homenagem a um servido técnico-administrativo com a Medalha Darcy Ribeiro, maior honraria concedida pela UENF, havia ocorrido naquela cerimônia, pelas mãos do reitor Raul Palacio. Uma faixa (ver imagem 1) colada no palco pelo Sindicado dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais do Rio de Janeiro (Sintuperj) registrou e reforçou o negacionismo, afirmando que o tratorista Ademir Ribeiro Manhães seria o primeiro servidor de sua categoria a ser homenageado com a honrosa medalha.
Imagem 1
Imagem 1 / Arquivo pessoal
A homenagem foi indicada e aprovada pelo Conselho Universitário (CONSUNI), em votação quase unânime, com votos de todas as categorias, inclusive dos professores, em gratidão e reconhecimento pelo trabalho extraordinário de Ademir em defesa da UENF. Eu mesmo votei entusiasmado para que ele fosse o grande homenageado na festa de 30 anos. Representa muito bem a grande contribuição que os servidores de sua categoria deram e dão à Universidade durante este período. Mas o fato histórico é que ele não foi o primeiro de sua categoria a receber a mais alta homenagem da UENF. O primeiro a receber a Medalha Darcy Ribeiro foi o técnico Mário Lopes Machado. Além de ter ajudado a consolidar a instituição como servidor do seu quadro permanente, Mário ocupou um papel fundamental na criação da UENF: atuou com liderança na coleta de assinaturas para apresentar a emenda popular à Assembleia Constituinte Estadual para a criação de uma universidade pública em Campos dos Goytacazes. Por este feito, recebeu a Medalha Darcy Ribeiro em 2008 das mãos do então reitor Almy Junior (ver imagem 2). Depois de Mário, outra servidora também recebeu a Medalha em 2011. Foi a professora e então servidora do corpo técnico-administrativo Zuleima Faria (ver imagem 3), uma das pessoas que criou e institucionalizou a Secretaria Acadêmica da UENF.
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Imagem 3
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Esta lembrança em nada desmerece a contribuição e a homenagem feita a Ademir no aniversário de 30 anos. Ao contrário: é o esquecimento das outras homenagens, em esforço constrangedor de negar o passado, que desvaloriza o trabalho do corpo técnico-administrativo como um todo. Mas este não é um fato isolado. A negação da história e da memória parecem constituir um padrão para o atual reitor e o grupo que governa a Universidade. Na cerimônia usada pelo reitor para fins eleitoreiros, não havia nenhum trabalho de memória institucional com base em arquivos fotográficos e audiovisuais. Os slides apresentados pelo dirigente máximo da UENF estavam focados em sua própria gestão. O padrão politiqueiro continuou blasfemando a história e a memória da UENF. No dia 18 de agosto, última sexta-feira, a reitoria organizou uma mesa de debate sobre o legado de Darcy Ribeiro na Casa de Cultiva Villa Maria. Em vez de uma mesa que ressaltasse o pensamento e a obra de Darcy Ribeiro, o evento foi usado para reforçar os conchavos políticos do reitor fora da Universidade. Presentes estavam um ex-deputado estadual, o reitor do Instituto Federal Fluminense (IFF) e pré-candidato a prefeito de Campos e a diretora da UFF/Campos. Nada contra nenhum dos convidados da mesa. Mas a ausência de um cientista que trabalha sistematicamente com o pensamento e a obra de Darcy é um escândalo. No caso, a ausência tem nome e já trabalhou anos na própria UENF: a professora Adélia Miglievich Ribeiro, atualmente na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é uma das maiores conhecedoras de Darcy, e está sempre disposta a atender os convites da UENF. Faltou na mesa a dimensão científica tão valorizada por Darcy e tão desprezada pela atual gestão da Universidade. O evento parece ter sido organizado como uma luva para reforçar os interesses do reitor na política local e estadual. Mas Darcy não criou a UENF para servir de instrumento para particularismos políticos. É verdade que nosso “pai fundador” não demonizada a política e os políticos. Até porque ele foi um destes raros personagens que sabe navegar e entender estes dois mundos tão distintos que são a política e a ciência. Mas nada é mais contrário ao legado de Darcy do que manipular a ciência e o pensamento de longo prazo em favor de interesses eleitorais do momento.
De um reitor se espera respeito à Universidade que dirige. Isso exige respeitar os ritos, a história e a memória da instituição. O reconhecimento do trabalho e das contribuições dos que vieram antes é parte inseparável disto. Dele também se espera que saiba separar o significado maior de uma cerimônia oficial para celebrar o nascimento da UENF do desejo particular de elogiar o próprio mandato e promover seus objetivos eleitorais de curto prazo. Ao magnífico e seu grupo político faltou o mínimo de magnanimidade.
Quando assistia este discurso de autoelogio do reitor, me veio a mente outra grande realização de Darcy Ribeiro, Leonel Brizola e Oscar Niemayer: A construção do Sambódromo do Rio de Janeiro (mais conhecida como Marquês de Sapucaí e oficialmente nomeada de Passarela Professor Darcy Ribeiro). Nesta outra grande obra que transcende particularismos, a Estação Primeira de Mangueira nos arrebatou, em 2019, com o enredo “A história que a história não conta”. Nele aprendemos como a história tornada oficial pode se fazer pelo apagamento de muitos de seus protagonistas. Foi exatamente isso que nosso reitor tentou fazer. Mas o enrendo da verde e rosa, cuja bateria abrilhantou o aniversário de 15 anos da UENF em 2008 (ver imagens abaixo) com apresentação do enredo do carnaval de 2009 sobre o livro “O Povo Brasileiro” de Darcy, também nos ensina que a memória nunca está concluída e que a história das contribuições e protagonistas apagados pode sempre ser recuperada pela luta. Não uma luta em nome da vaidade de ex-reitores, servidores técnicos, professores e alunos. Mas uma luta em nome da verdade histórica sobre a construção e o legado da UENF. Não uma luta em torno do passado e suas picuinhas. Mas uma luta em torno do futuro, porque o costume de encurtar o horizonte temporal do passado, tratando 30 anos de Universidade como se fossem 4 anos do mandato de um reitor, tem afinidade carnal com o costume de negligenciar o futuro. A UENF não merece e não aceitará esta tentava de apequená-la.

                                     






 
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30 anos de UENF: experimento de grandeza compartilhada
16/08/2023 | 13h11
“Um plano é uma coisa real e as coisas projetadas são experimentadas. Um plano, depois de feito e visualizado, torna-se uma realidade ao lado de outras realidades – não podendo nunca ser destruído, mas podendo facilmente ser atacado”

John Steinbeck

Neste 16 de agosto de 2023 a UENF completa 30 anos. É um momento oportuno para refletir sobre o sentido desta Universidade. Oficialmente, este sentido está fixado no próprio nome da UENF, que carrega a assinatura de seu “pai fundador” Darcy Ribeiro. Não se trata meramente de uma homenagem ao político e intelectual que liderou a criação da Universidade. Mas acima de tudo de uma identidade assumida publicamente com um sentido específico de compromisso e tarefa sobre o papel da Universidade que Darcy Ribeiro defendia.
Qual compromisso e qual tarefa assume a UENF ao definir a si mesma com o nome de Darcy Ribeiro? Esta não é uma questão consensual e fácil e responder. A única resposta consensual e fácil, pelo menos para quem tem o mínimo de contato com as obras e a existência de Darcy, é que não existe nada mais contrário ao espírito criador da UENF do que o culto à personalidade e ao passado. Não estamos falando de uma obra de relevação a ser mantida intacta junto com a imagem cultuada de seu grande artífice. Diria que resposta mais adequada sobre o compromisso e a tarefa da UENF está na direção contrária. Por mais complexo que seja o pensamento de Darcy, podemos dizer que a ideia de uma grandeza compartilhada e projetada pelo povo brasileiro está presente na concepção e na identidade da UENF. O “pai fundador” da nossa Universidade definia os brasileiros como sendo um “povo novo” (Ribeiro, 2006), uma “nova Roma”: forjada nos “moinhos de moer gente” da sociedade colonial, nossa nação, apesar de ainda continuar moendo gente, foi capaz de criar e difundir um sentido de pertencimento que supera os limites da etnicidade comum, suporte da maior parte das identidades nacionais existentes no planeta. A maioria dos brasileiros não se quer descendente de etnia comum, e nem quis inventar uma tradição étnica para chamar de sua, como fizeram tantos outros povos. Nosso sentido de nação não depende de uma unidade étnica projetada no passado. Em vez disso, inventamos uma ideia de povo nacional cuja unidade está ancorada no futuro do destino comum, nos artefatos socioculturais produzidos em ambiente de vasta e intensa diversidade ecológica e cultural e na capacidade de inovação em todas as áreas da vida. O povo brasileiro não é um povo europeu deslocado no além-mar. Não somos continuidade de nenhum dos povos que nos formaram. Ser um “povo novo” significa principalmente isso: não ter o passado e sim o futuro como referência principal. Quando dizia “povo novo”, Darcy também queria dizer “povo do futuro”. Mas o que isso tem a ver com a UENF?
Tudo. A UENF traz a marca da utopia nacional de seu “pai fundador”. Como afirmava recorrentemente, Darcy era um utópico por todos os poros e partes do corpo. Mas para ele, utopia não tinha o sentido de negação da realidade, como era o caso, por exemplo, para Karl Marx. O futuro de uma nação, de um povo e até de uma pessoa é um sonho inventado no presente e que já começa a se tornar realidade no presente. A utopia é um sonho com passos significativos e reais que podemos realizar aqui e agora. O futuro só importa quando ele é adjacente, quando pode ser experimento como realidade em desenvolvimento. A utopia nacional popular de Darcy, por exemplo, não abre mão de um caminho de grandeza econômica, científica, tecnológica, política, militar e cultural. Mas esta grandeza não pode ser nacional se não for compartilhada pelos nacionais, e não pode ser compartilhada se não começar pelo enfrentamento dos problemas concretos vividos pela maioria do povo aqui e agora: a fome, o analfabetismo, a miséria, o racismo, a violência, etc. O futuro sonhado coletivamente e o enfrentamento dos problemas urgentes se reforçam mutuamente.
Não se trata de fazer projeções arbitrárias, mas de imaginar e inventar o futuro com base nas possibilidades, potências e práticas que já existem. A utopia nacional de um país produtivo e próspero, pujante, inteligente, inclusivo e fraterno surge da experiência do que já existe: sem abdicar da crítica feroz e contundente das iniquidades vigentes, ver também o que deu certo como potencial de algo novo que a realidade possibilita inventar. Darcy não foi otimista, ufanista nem ingênuo. Ele não acreditava que o Brasil daria certo apesar de tudo. Podia, pode e continua dando errado em muita coisa. Mas deu certo e continua dando certo em muitas outras. Darcy não recusava a realidade. O que ele recusava era o fatalismo que nega as possibilidades incrustadas na ordem existente. Afirmar que o Brasil pode ser um país grandioso e inclusivo não é negar a realidade nacional, mas sim compreendê-la efetivamente em sua complexidade e ambiguidade. Nem todo país pode sonhar com isso. A maioria dos países possivelmente não pode.
Assim como na utopia nacional, grandeza e inclusão são elementos centrais e inseparáveis no papel e no sentido da UENF. Grandeza é poder e decidir não aceitar certos limites como intransponíveis no próprio desenvolvimento. É poder transcender padrões socioculturais. A grandeza pode ser pessoal e coletiva. A UENF é um projeto de grandeza coletiva que também se desdobra no engrandecimento pessoal. A Universidade não nasceu para ser uma instituição periférica do interior, mas para atuar e alterar a fronteira do conhecimento científico e da inovação tecnológica em diversas áreas capazes de impulsionar o desenvolvimento regional e nacional: Na produção agroindustrial, na biotecnologia, nas engenharias, na administração pública e na organização produtiva, na política social, no recrutamento de elites e profissionais da política, no mundo empresarial, na educação e em muitas outras áreas. A tarefa da UENF é combinar grandeza com inclusão, ou seja, criar grandeza compartilhada.
Darcy nunca separou grandeza de inclusão como hoje se faz em parte dominante dos progressistas e também em setores da UENF. Nestes últimos anos, quando se deixou de praticar o experimento de colocar a Universidade no centro e na fronteira da produção de ciência e tecnologia, houve uma separação entre grandeza e inclusão que trai o sentido e a tarefa da UENF. Grandeza sem inclusão leva ao elitismo incompetente, cego as contribuições da diversidade popular na criação de soluções para os problemas comuns. No final deixa de ser grandeza e se torna mediocridade mal disfarçada de elites raivosas e decadentes. Darcy e a UENF não nasceram para serem elitistas. Mas inclusão sem grandeza, sem engrandecimento individual e coletivo, também não serve (Texeiras/Medeiros, 2022). Incluir em um sistema social que perde competência em sua tarefa mais importante e a para a qual existe é uma inclusão rebaixada, pois bloqueia caminhos da grandeza científica e tecnológica como parte inseparável do desenvolvimento universitário, regional e nacional. Ao comemorar seus 30 anos, faço votos que a UENF decida pela grandeza no lugar do rebaixamento de expectativas que nos faz aceitar um lugar menor no mundo. Sem isso não podemos levar a diante o experimento proposto do Darcy e acolhido oficialmente por todos nós.
Referências: 
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006.
TEXEIRA, Carlos Sávio Gomes/MEDEIROS, Tiago. A igualdade como problema, a grandeza como solução. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. V. 489, n. 183, p. 207-234, 2022.
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O novo governo e a tarefa da reconstrução e conciliação nacional
31/10/2022 | 09h51
O próximo governo tem pela frente uma tarefa inadiável de reconstrução e conciliação nacional. A divisão política polarizada confirmada nas urnas não é um problema em si. O problema é a polarização moralista que contamina todas as relações e esferas sociais sem trazer o lado bom da polarização propriamente política: a possibilidade de escolher entre duas linhas programáticas distintas sobre soluções para os problemas reais da sociedade. O maior desafio deste novo governo Lula é reconstruir uma polarização política que não resulte em uma polarização social açambarcante e simplista, baseada unicamente no sentimento moralista do nós contra eles. O caminho para isso é deslocar a polarização política das lutas culturais e morais para as lutas em torno da economia política e da política social. Para nos reconciliarmos, precisamos reaprender a brigar.
A ordem constitucional e institucional da Nova República foi arruinada não apenas pela ação de seus adversários. Sua derrocada também é o efeito de sua incapacidade intrínseca de ofertar ao país duas coisas essenciais sem as quais uma constituição cidadã não pode se efetivar: 1) inovações institucionais capazes de produzir direitos sociais e serviços públicos em quantidade e qualidade suficientes para garantir a cidadania; 2) e um modelo de desenvolvimento capaz de elevar a complexidade e a produtividade do sistema econômico e assim assegurar inclusão econômica qualificada e fonte de financiamento para as políticas sociais. Não é possível garantir política social e dignidade para as maiorias sem inovações institucionais na oferta de serviços públicos e sem um novo modelo econômico que combine elevação da complexidade e da produtividade com a inclusão das maiorias em empregos e oportunidades econômicas de qualidade. Falar em cidadania sem enfrentar estas duas questões é faltar com a dignidade intelectual e política.
Caso opte pelo atalho e evite enfrentar os conflitos e desafios políticos necessários para resolver os dois problemas estruturais mencionados acima, o novo governo certamente será um fracasso, preparando o caminho para a volta da extrema-direita ao poder. O atalho leva, desta vez, mais diretamente ao precipício. A falta de compromisso programático de Lula não é um bom sinal, pois indica que o grande líder popular pode novamente escolher este caminho curto e trágico. Mas este mau sinal nunca deve ser tomado como destino e necessidade. O futuro é aberto também porque as pessoas nunca estão prontas, porque novas situações exigem a busca por alternativas e inovações no ser e no agir. Por isso, arrisco uma avaliação antideterminista sobre o futuro governo Lula: ou será muito ruim e trágico se optar pelo atalho, ou será muito bom e construtivo se optar pelo caminho radical da reconstrução nacional. O meio termo se tornou uma opção indisponível.
A tarefa de reconstrução nacional requer combinar radicalidade no conteúdo com amplitude na forma de agregação de forças políticas. No conteúdo, é urgente reconectar a agenda da política social – inclusão social e redistribuição de renda – com a agenda da mudança da política econômica em torno de um projeto nacional de desenvolvimento centrado na soberania nacional. A reconexão entre política econômica nacionalista e política social universalista consiste em mudanças sociais induzidas pelo sistema político no sentido de construir solidariedade complexa no plano nacional, oferecendo programa e discurso que façam o que chamo de fusão política majoritária de interesses sociais distintos em interesses políticos comuns, responsável pela criação de identificações coletivas suficientemente amplas e coesas parra sustentar decisões políticas. Na política social, esta solidariedade complexa requer a ruptura com a fragmentação entre política compensatória de transferência marginal de renda para os pobres e política regulatória de serviços privados para a classe média. A tarefa é atrair a classe média para os serviços públicos, para a escola pública, para o SUS. Na política econômica, o desafio é romper com o abismo institucional entre produção desigual e redistribuição marginal da riqueza. É preciso reinventar a receita do bolo, de modo que produção e distribuição não sejam momentos e processos desconectados, mas processos correlatos. A esquerda precisa conjurar o rebaixamento das expetativas e não se contentar em redistribuir pela tributação redistributiva a riqueza produtiva a apropriada de modo desigual no sistema econômico. É preciso transformar as estruturas sociais da economia. É preciso transformar e diversificar as formas de propriedade, recolocando a questão do controle dos meios de produção e da relação entre o capital e o trabalho no centro da agenda. O trabalho assalariado não serve mais como forma de trabalho livre garantidor de cidadania para as maiorias. Formas alternativas de produção, consumo e financiamento como o trabalho cooperativo, que no século XIX figuravam como opções para superar a julgo do trabalho pelo capital, devem ser recuperadas e reformuladas à luz dos novos desafios. A inovação jurídica, especialmente nos direitos de propriedade, deve estar na ordem do dia. Em uma palavra, é preciso ousadia programática.
Na forma, é preciso compreender que uma política de alianças não está em contradição necessária com uma política radical no conteúdo. É possível ser radical no conteúdo e amplo na construção de alianças. A tarefa de reconstrução nacional não é uma tarefa da esquerda, embora possa ter o protagonismo da esquerda ao lado de outras forças. Neste sentido, a aliança entre Lula e Alckmin, assim como o movimento de aproximação com antigos adversários como FHC, são excelente sinais. Pode ser parte de uma eventual solução para ampliar a força política necessária para reconstruir o país. A maioria das pessoas de esquerda acredita que fazer alianças em busca do centro político exige borrar ou apagar diferenças e conteúdos programáticos radicais. Acreditam que a moderação programática é o único caminho possível. Precisam se dar conta que ela é parte do problema. Estão ainda reféns da confusão entre ser radical e ser sectário: partem da premissa de que um programa político radical, ousado, que busque soluções estruturais para problemas estruturais, é sempre sectário, estreito no espectro dos grupos e classes sociais que lhe dão sustentação. Esta confusão pode e deve ser desfeita, pois ser radical na dimensão programática não significa necessariamente sectarismo na relação com as forças políticas. Programas rebeldes de desenvolvimento nacional foram sempre radicais e contaram com ampla base de apoio envolvendo setores populares e médios. Quando não contaram com o apoio de setores burgueses, o apoio da classe média e dos setores populares garantiu, muitas vezes, as condições para a coerção política da minoria dissidente e entreguista. Não há lei social ou política que faça da classe média a linha de frente da burguesia antinacional e antipopular. É preciso recuperar as nuances e contradições da história política e a contingência das estruturas da ação social.
Para Lula o caminho radical da reconstrução nacional impõe pelo menos dois desafios específicos que implicam romper com o padrão dos governos lulistas anteriores: 1) desfazer a confusão entre política de alianças e rendição programática que serve de desculpa para governos medíocres; 2) buscar novos horizontes intelectuais para superar o deserto de ideias do PT. A confusão entre amplitude de alianças e rendição programática está sintetizada na doutrina estruturalista pseudo-sociológica da “correlação de forças”: a ideia de que as classes, grupos e demais forças sociais possuem interesses claramente definidos e fixados de antemão, antes da política. Daí se supõe que a natureza transformadora dos interesses é sempre inversamente proporcional à quantidade de atores que compõem uma aliança política, como se a política apenas reagisse passivamente à “correlação de forças” entre estes interesses. Esta suposição não leva em conta que a política transformadora real sempre promoveu sínteses de interesses diversos em um interesse maior: a política é ativa e formadora em relação aos interesses, pois estes nunca estão plenamente definidos e fixados pelos atores, que podem aprender a defender novos interesses a partir da política. Não se trata de imaginar uma situação de consenso, mas de buscar uma síntese de interesses entre classes médias e populares para antagonizar com as oligarquias rentistas que saqueiam o país. É aliança para o conflito.
No entanto, para superar esta falsa dicotomia entre ousadia programática e política de alianças, assim como outros determinismos, o novo governo precisa se libertar de certas amarras intelectuais entranhadas desde sempre no PT e na esquerda. No geral, essas amarras se caracterizam pela combinação de abstrações sem detalhamento contextual em termos de diagnóstico e programa, como a ideia vaga de socialismo, com um profundo desprezo pela história nacional e pelas conquistas brasileiras antes do PT chegar ao poder. Para a quase totalidade dos intelectuais petistas, nada no Brasil prestou antes de chegada de Lula ao poder em 2002. O nacionaldesenvolvimentismo e a pujança nacional em quase todas as esferas da vida social, que transformou o Brasil entre os anos 1930 e 1980, são simplesmente esquecidos e apagados, pra usar o jargão cultivado pela esquerda atual. Este negacionismo antinacional tem possivelmente sua melhor expressão no pensamento de Marilena Chauí, a filósofa para quem o Brasil não valeu a pena. Em análise recente com recomendações para o futuro governo , Chauí evidencia novamente seu distanciamento cognitivo e afetivo em relação aos problemas e soluções nacionais. Primeiro e determinante do resto, ela parece não estar observando os acontecimentos políticos dos últimos anos, pois só isso pode explicar tamanha alienação em supor que a tarefa de refazer o país é ou pode ser uma tarefa da esquerda. Ela parece não conceber a possibilidade de que outras forças políticas tenham contribuições importantes ao país e à tarefa de reconstruí-lo. Setores como os evangélicos e o agronegócio, que representam as duas maiores mudanças sociais e culturais no Brasil das últimas 5 décadas, não teriam lugar na obra de reconstrução nacional. Aceita-se, eventualmente, como foi no passado, que estes setores sejam convocados para ajudar na cozinha ou no porão da política, mas nunca para dividir a sala com a mesma dignidade que a esquerda atribui a si mesma. Na sequência deste esquerdismo, Chauí aborda temas como educação, reforma política, forças armadas e superação do neoliberalismo de modo abstrato, superficial e descolado dos problemas concretos do país. É uma lista de temas importantes com testemunho de boas intenções. Nenhum diagnóstico, nenhuma formulação programática.
Lula sabe como ninguém a arte de construir alianças e isso é uma virtude indispensável para reconstruir o país. Mas ele precisa aprender a dar a importância que nunca deu à forças das ideias na política, sobretudo quando representadas e encarnadas por líderes e partidos fortes como ele o PT. As ideias são armas indispensáveis nas disputas políticas de grandes dimensões, como as lutas redistributivas e pela soberania nacional que estarão na mesa do futuro governo. Lula estará diante destas lutas, querendo ou não. Minha esperança é que, cobrado pelas circunstâncias e agraciado pela sorte e por Deus, ele possa desenvolver a virtude de valorizar as formulações programáticas para estruturar e conduzir o governo. Se optar pelo atalho, como fez no passado, não fará um governo mediano capaz de entregar picanha e cerveja. Desta vez, o atalho conduz diretamente ao precipício antes de passar o bastão ao sucessor. Para Lula, isso significaria entrar para a história sob o signo da pequenez. Sua única alternativa pessoal é também a melhor para o país: fazer aliados, comprar as brigas necessárias, virar a mesa e construir um caminho radical de reconstrução nacional. Aí sim ele entraria para o panteão seleto dos grandes construtores do país.
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10 anos de Administração Pública na UENF
16/08/2022 | 11h37
Amanha, dia 17 de agosto, a UENF comemora 10 anos de seu curso de graduação em Administração Pública e do Laboratório de Gestão de Políticas Públicas, o LGPP. A criação do curso e do laboratório foi um processo de inovação e desenvolvimento institucional idealizado pelo professor Sérgio de Avezedo, atualizando o espírito e a prática de experimentação institucional preconizados por Darcy Ribeiro, o pai fundador da UENF. Darcy desejou criar uma universidade nova, de excelência no ensino, na pesquisa e na intervenção social.
O ideal é o de uma universidade capaz de produzir ciência e conhecimento de ponta e ao mesmo tempo responder com agilidade e efetividade aos desafios colocados por seu entorno social. Nada mais contrário a este ideal do que o espírito de idolatria institucional e a inércia. Ser fiel ao espírito fundador da UENF é defender e promover constante processo de inovação e desenvolvimento institucional na Universidade, pois só assim é possível responder aos desafios colocados pela sociedade, seja a nível local, regional ou nacional. A criação do curso de Administração Pública e do Laboratório de Gestão de Políticas Públicas encarna esta busca por uma instituição pujante em seu dinamismo. Isso permitiu à UENF produzir pesquisas de excelência sobre os temas ligados ao Estado e às políticas públicas, elaborar projetos de extensão focados nos desafios do setor público e formar quadros para os governos locais, regionais e até federal.
Em 10 anos de funcionamento, podemos dizer, sem nenhuma dúvida, que esta é uma história de sucesso! Apesar dos desafios internos, o curso de Administração Pública e o LGPP fortaleceram e qualificaram a capacidade da UENF influenciar positivamente na vida social. Em tempos de acelerada ofensiva neoliberal, da qual fazem parte os ignorantes que insistem em confundir administração pública com administração de empresas, a existência bem sucedida da pesquisa, do ensino e da extensão em administração pública é uma arma de enorme valor no esforço de reconstruir as capacidades estatais necessárias para induzir o desenvolvimento e produzir cidadania.
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A metamorfose ambulante do carisma lulista: do sindicato à turminha do capital cultural
02/06/2022 | 11h09
Max Weber define o carisma como uma forma de autoridade baseada em qualidades extraordinárias que os adeptos atribuem a um líder político, religioso ou de qualquer outra esfera social. O ponto fundamental é que antes de ser algo possuído pelo líder, o carisma é algo atribuído pelo movimento carismático. Não existe líder carismático sem movimento carismático.
Lula é o mais importante exemplo de liderança carismática na política brasileira das últimas 4 décadas. Muitos estudos já foram feitos sobre a trajetória pessoal e política dele. Mas ainda não conheço um estudo sobre a trajetória do carisma lulista, ou seja, sobre as metamorfoses do movimento carismático responsável pela construção e duração deste carisma.
O ponto de partida para um estudo deste tipo deve ser o da pluralidade e sobreposição estratificada dos diferentes segmentos que compõem o movimento carismático. E deste ponto de partida decorre evidentemente a tese de que tanto o movimento como o carisma não permanecem estáticos: eles vão se transformando de acordo com a centralidade que certos grupos e classes sociais assumem no movimento e na atribuição das qualidades extraordinárias que constituem o carisma do líder.
Tendo por base esta reflexão, gostaria de esboçar um modelo hipotético sobre a trajetória do carisma lulista.
1) A primeira fase: Nas décadas de 1980 e 1990 o carisma lulista era a de um líder sindical que sabia defender com qualidades políticas extraordinárias os interesses dos setores organizados da classe trabalhadora, sejam estes da indústria ou do funcionalismo público. Sustentando este carisma havia um movimento sindical forte, que mesmo não sendo capaz de garantir vitória em eleições presidenciais, assegurava pelo menos 25% dos votos. Intelectuais e artistas participavam do movimento, mas não constituem um grupo definidor do carisma lulista.
2) A primeira metamorfose: Entre 2002 e 2010, durante seus mandatos presidenciais, ocorreu um realinhamento eleitoral em torno de Lula que também se verifica na estrutura do movimento carismático em torno de sua liderança: como fica claro nas eleições de 2006, a maioria dos pobres e dos setores desorganizados da classe trabalhadora passam a fazer parte não apenas do eleitorado, mas também do movimento carismático lulista. Lula deixa de ser apenas um líder carismático dos sindicatos para ser também um líder carismático do Brasil popular desorganizado, ocupando um espaço que lideranças como a de Brizola e Arraes já haviam ocupado. Este segundo momento é o mais pluralista e amplo na trajetória do movimento carismático lulista, cujo auge foi em 2010. No entorno mais próximo de Lula, ainda se encontram seus companheiros líderes sindicais. Mas é ao redor deles, em outro segmento, que vemos a grande força do movimento: o povão desorganizado que projeta em Lula não as qualidades de um líder sindical combativo e habilidoso, mas as virtudes de um homem do povo que já passou fome e que tem empatia e compromisso com os pobres.
3) Segunda metamorfose? Entre 2010 e 2018 o movimento carismático lulista viveu o processo mais difícil de todo movimento carismático: a sucessão do líder por outra pessoa e os riscos de encolhimento que isso pode trazer para o carisma do líder, empenhado no fracassado governo Dilma. O fracasso da sucessora de Lula criou problemas sérios para os elementos populares e desorganizados do lulismo. E como o governo Lula promoveu a maior desindustrialização da história brasileira, ele acabou também destruindo as bases sociais do elemento organizado/sindicalizado do movimento carismático. O sindicalismo hoje não representa nada no movimento lulista, assim como não representa no país. Com a volta da fome em massa e da miséria selvagem no governado Bolsonaro, Lula retorna com força. Mas o que isso indica para a composição de seu movimento carismático? A grande maioria dos pobres continua atribuindo a Lula qualidades extraordinárias no sentido de melhorar a vida do povo, da classe trabalhadora desorganizada, hoje jogada na mais selvagem informalidade. Trata-se, porém, de um carisma baseado na memória recente, e que pode ser abalado tanto pelo embate com outra memória recente - a tragédia Dilma - como pelas dificuldades de um eventual novo governo. Velho e claramente sem condições pessoais para os embates políticos que precisaria enfrentar para garantir o mínimo existencial para este público mais pobre, Lula corre o risco de perder rapidamente a principal base que resta a seu movimento carismático. Além dos pobres, o movimento carismático lulista conta hoje com um entorno mais próximo de artistas, intelectuais e ativistas de orientação identitária, como pudemos ver claramente no evento desta semana na PUC de São Paulo. Ao contrário dos antigos companheiros sindicalistas, este segmento da elite cultural detesta tudo que é popular, da música sertaneja ao pentecostalismo. Essa "turminha do capital cultural", para usar a expressão do cientista político Carlos Sávio Teixeira, pode redefinir o carisma de Lula em uma direção elitista e politicamente preocupante: em vez de ser o líder com qualidades extraordinárias para representar o povo organizado ou desorganizado, se atribui a Lula qualidades extraordinárias que parecem transformá-lo numa espécie de novo Chico Buarque, ou seja, um senhor refinado e com sensibilidade para os afetos e padrões de comportamento pessoal da classe média culta, mas sem apelo popular. É o Lula que dá protagonismo à esposa no palanque para não parecer o “tosco machista”; é o Lula que fala em comida vegana para não provocar desgosto em uma plateia que não consegue disfarçar sua condenação do gosto popular pelo churrasco. Mesmo a empatia de Lula com a pobreza ganha outro sentido nesta relação que o líder carismático mantém com seu círculo mais próximo, hoje constituído por essa “turminha do capital cultural”: agora não se trata de uma relação de empatia entre Lula e os pobres, mediada apenas pelo trabalho de difusão dos meios de comunicação de massa, mas sim de uma empatia de Lula com a “turminha do capital cultural”, cujo sentido é confirmar, para este público, seu próprio sentimento de superioridade moral por gostarem dos pobres e por estarem do “lado certo da história”. Evidência de que esta hipótese é correta foi o fato de que, no evento destinado à leitura de cartas enviadas a Lula durante o período em que esteve preso, o protagonismo maior foi assumido não pelos autores das cartas, mas pelos artistas que estavam ali para melhor interpretar o sentimento popular. Para essa parte culturalmente elitizada do movimento carismático lulista, o povo é apenas um pretexto. E se Lula continuar neste caminho corre o risco de ter seu exuberante carisma reduzido ao tamanho da importância que a “turminha do capital cultural” possui para o povão, que graças a Deus não é muita coisa.
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A Enel em Campos dos Goytacazes: violação de direitos e expectativa de impunidade
20/05/2022 | 11h36
As reclamações sobre o fornecimento de energia feito pela Enel se multiplicam em Campos e em muitas cidades do Estado do Rio de Janeiro. Interrupções diárias no fornecimento do serviço se tornaram rotina não apenas em localidades rurais distantes, mas também nos próprios centros urbanos. Ontem duas Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) da área urbana de Campos dos Goytacazes (Parque Rodoviário e Eldorado) tiveram que suspender a vacinação contra a Covid-19 e o calendário de rotina de vacinação da criança e do adolescente em razão de oscilações no fornecimento de energia elétrica. O mesmo aconteceu na localidade de Lagoa de Cima. A empresa, como sempre, atribui a responsabilidade aos ventos, externalizando para a natureza toda sua responsabilidade pela falta de manutenção da infraestrutura de energia elétrica, utilizada pelo poder público para o serviço de iluminação pública.
Evidentemente que os fortes ventos podem ser a causa de muitos incidentes que levam à interrupção de energia. Mas basta observar com um pouco de atenção a infraestrutura de postes de muitas localidades para constatar que o efeito da natureza recebe a colaboração da própria Enel que decide não fazer a manutenção dos postes, muitos dos quais em estado de evidente putrefação. É esta situação que se pode observar na localidade de Pião, no distrito de Morro de Coco, município de Campos dos Goytacazes. Os moradores desta localidade relataram a este blogueiro que existem pelo menos 6 postes neste estado de putrefação alocados ao lado de residências ao longo da rua principal da localidade. Os postes são facilmente penetrados por qualquer objeto, dado ao estado putrefato em que se encontram. Possivelmente existem outros nesta mesma condição.
No último dia 10/05/2022, um poste nesta situação veio a baixo com toda a fiação de alta-tensão. Localizado entre duas residências, o acidente colocou em risco a vida dos moradores durante todo o dia. Acionada por um morador, a Enel só foi substituir o poste e soerguer os fios com eletricidade mais de 12 horas após ser informada. Durante todo o dia, a fiação de alta-tensão esteve em contato com cercas de arame farpado, amplificando ainda mais o risco para os moradores. Um cliente da empresa Enel, após acionar a empresa em nome de todos os moradores e registrar a ocorrência, procurou alertar os transeuntes sobre o perigo relativo à queda do poste e da fiação. No dia 13/05/2022, com informações sobre os demais postes em estado calamitoso, os moradores fizeram nova solicitação a Enel: desta vez para que a empresa venha substituir os postes e assim sanar o risco à vida dos moradores. Repetindo sua prática negligente com a queda do poste no dia 10/05, assim como em relação a inúmeros outros problemas no fornecimento de energia elétrica à localidade, a Enel não cumpriu o compromisso assumido e sequer enviou um técnico para verificar o problema. Nos dias seguintes, outras solicitações foram feitas. E o resultado foi a mesma negligência.
Em conversa informal, um técnico de uma empresa que presta serviço à Enel revelou aos moradores que a política deliberada da empresa é de somente substituir os postes que vierem abaixo. A prática negligente da empresa, que simplesmente ignora as demandas encaminhadas individualmente pelos moradores, parece confirmar esta política informal de violar direitos individuais dos consumidores privados de energia e direitos difusos dos moradores, afetados em sua segurança ao transitar pela rua com a rede de alta-tensão ameaçando desabar e no acesso ao serviço de iluminação pública. A necessidade de resguardar a segurança dos transeuntes na localidade corresponde a um direito difuso: a situação calamitosa dos postes que ameaçam cair afeta a todos que circulam pela rua principal da localidade. Além disso, a situação dos postes também produz danos à rede de iluminação pública administrada pelo poder público municipal, que utiliza os postes da Enel, para fornecer este serviço. Em sua decisão de considerar inconstitucional a cobrança de taxa de iluminação pública (súmula vinculante 41), o Supremo Tribunal Federal fixa a compreensão de que a iluminação pública é uma atividade estatal que se traduz em prestação de utilidade inespecífica, indivisível e insuscetível de ser vinculada a determinado contribuinte, ou seja, trata-se clara e inequivocamente de um direito difuso cujo titular é toda a coletividade. Com esta compreensão, os moradores da localidade de Pião enviaram, no dia 13/05/2022, ofício à Subsecretaria Municipal de Iluminação Pública solicitando que o poder público municipal exerça suas responsabilidades e prerrogativas na relação com a Enel no sentido de requerer que os postes sejam urgentemente substituídos de modo a reestabelecer 1) as condições de funcionamento do serviço de iluminação pública e 2) a garantia da segurança dos moradores e transeuntes. No ofício, seguem como anexo um conjunto de fotos atestando a situação putrefata dos postes, bem como sua numeração oficial. Como a prefeitura de Campos utiliza os postes da Enel e já foi devidamente informada sobre os danos e riscos acarretados pelo estado calamitoso destes postes, me parece plausível supor que o governo municipal está implicado em suas responsabilidades e prerrogativas, não podendo se omitir do esforço de fazer com que a Enel cumpra suas obrigações e pare de violar os direitos dos moradores e consumidores. Após informar oficialmente a prefeitura sobre a situação dos postes, muitos moradores decidiram acionar o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, através de sua ouvidoria.
A percepção generalizada entre os moradores é que, enquanto indivíduos/consumidores, estão todos impotentes, pois a promessa neoliberal do consumidor empoderado é refutada a cada contato com a Enel. Na semana em que avançou a privatização da Eletrobras não podemos deixar de lembrar os conflitos e contradições inerentes à prestação de serviços públicos realizada por empresas privadas. Por sua natureza, empresas privadas tomam o lucro como valor absoluto de suas práticas e tendem a violar todo direito que atrapalhe a maximização deste lucro, sobretudo quando podem contar com níveis consideráveis de impunidade. E é no dia a dia da violação de direitos que o sentido da privatização se revela. Na relação diária com uma empresa privada poderosa como a Enel, cidadãos se tornam subcidadãos sem direitos. Nem o direito à vida é respeitado. A assimetria de poder entre as partes é absurda e explica em grande medida a inefetividade da regulação estatal e do controle jurídico sobre a conduta da Enel. O cidadão isolado nada pode contra uma poderosa organização como a Enel. Para garantir seus direitos, só nos resta contar com outras organizações poderosas: o Ministério Público e o poder público municipal, diretamente interessado em fazer com que a Enel seja obrigada juridicamente a reparar a infraestrutura do fornecimento de energia elétrica, especialmente substituir os postes em situação calamitosa.



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Para além da tese da personalidade autoritária: queremos sim o eleitor bolsonarista
25/04/2022 | 14h41
1) O fenômeno do bolsonarismo tem provocado uma retomada da tese da personalidade autoritária de Theodor Adorno. No famoso livro “Estudos sobre a personalidade autoritária” (2019), Adorno e seus seguidores tentam explicar a adesão a políticas e ideologias autoritárias com base em estruturas psíquicas construídas no processo de socialização primária, especialmente a formação de um “eu” fraco. Na estrutura do argumento, os atributos autoritários da personalidade são claros e a tal ponto bem fixados que não deixam quase nenhuma margem para redefinições e redirecionamentos políticos a partir da mesma base de socialização primária. Quem possui uma personalidade autoritária praticamente não tem salvação, pois a política não é capaz de oferecer alternativas que consigam disputar os corações e mentes destas pessoas com as alternativas autoritárias. A única saída é modificar as próprias estruturas da socialização primária. Para quem já foi condenado ao autoritarismo, só resta impedir que haja uma oferta autoritária capaz de dar vazão as tendências autoritárias que definem a personalidade. O determinismo sociológico e o estruturalismo vulgar desta abordagem são marcas da fracassada teoria crítica de Adorno. Walter Benjamin, ao contrário, tinha visão bem distinta: entendia que o sucesso do fascismo não se devia primeiramente às tendências autoritárias formadas na socialização primária, mas sim ao fracasso da esquerda em disputar os corações e mentes destas pessoas com a extrema-direita.
2) O determinismo sociológico e o estruturalismo vulgar são muito atraentes: proclamar o fatalismo é um caminho sedutor para quem não consegue pensar a contingência e a indeterminação da vida social e política. Ao fim e ao cabo, este fatalismo resulta na mesma ladainha moralista do senso comum de esquerda: eleitores de Bolsonaro, Le Pen e Trump são autoritários incorrigíveis. No caso dos eleitores de Bolsonaro, generalizou-se um argumento moralista que atribui uma “política do ódio” como desenvolvimento necessário da personalidade autoritária. Como consequência, quem quiser ter o voto deste eleitor teria que apelar a mesma “política do ódio”, única capaz de mobilizar verdadeiramente personalidades autoritárias. Por isso, quando um político como Ciro Gomes busca disputar os eleitores bolsonaristas, ele é acusado de enveredar necessariamente pela mesma tendência autoritária protagonizada por Bolsonaro. Para o determinismo sociológico e o estruturalismo vulgar da tese da personalidade autoritária, o eleitor não possui indeterminação e contingência, ou seja, não tem possibilidade de aderir a diferentes ofertas e alternativas políticas. Ele já está definido e perdido. Daí que, identificando a personalidade autoritária com a masculinidade, a filósofa petista Marcia Tiburi, conselheira de Lula em temas comportamentais, sugira a exclusão política dos homens como única alternativa segura para enfrentar Bolsonaro.
3) Para compreender e enfrentar fenômenos autoritários como o bolsonarismo precisamos nos livrar do determinismo sociológico e do estruturalismo vulgar que orientam teses como a da personalidade autoritária. Na verdade, determinismo e estruturalismo são sintomas de falta de sociologia, pois a vida social não é nem determinista nem estruturada de modo fixo. Contingência e indeterminação são partes de todo fenômeno social: tudo que é pode ou poderia se configurar de outro modo. O eleitor não é autoritário por causa de sua socialização primária. Ele pode se tornar autoritário em razão da dinâmica e da estrutura de ofertas políticas. Os traços autoritários devem ser vistos como manifestações contingentes de frustrações e descontentamentos com o sistema político e as alternativas políticas dominantes, incapazes de encaminhar soluções para problemas concretos como miséria, violência e serviços públicos de má qualidade. A rebeldia antisistema é, por exemplo, outra manifestação possível para esta frustração. E ela pode ser potencializada pela oferta política. Em resumo: o bolsonarismo só pode ser enfrentado se for compreendido por uma sociologia de qualidade – não determinista e não estruturalista – que reconheça a autonomia do sistema político e das ofertas políticas como variáveis que garantem a contingência e a indeterminação das práticas e opiniões políticas. Adorno só atrapalha nesta dupla tarefa, e o caráter infecundo de sua obra já deveria bastar para nos convencermos de que a tese da personalidade autoritária é falsa sociologicamente e fatalista politicamente. Disputar o eleitor bolsonarista é um imperativo político de quem aposta na inteligência.
Referências:
ADORNO, Theodor. W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
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A crise silenciosa no Flamengo: um problema espiritual que nem Jesus consegue resolver
04/04/2022 | 16h41
Culpar o treinador é um discurso tão fácil e superficial que parece não convencer mais uma parte importante da apaixonada e raivosa torcida do Flamengo. Felizmente a parte do público mais raivosa e irracional parece ter diminuído ou mudado parcialmente suas disposições. Comentaristas rasos que só sabem jogar com as emoções deste público, como é o caso exemplar de Renato Maurício Prado, não tem aquele espaço todo que sempre tiveram neste tipo de crise. Paulo Souza é um treinador competente e já mostrou isso. Mas além de tempo, precisa da cooperação dos jogadores para realizar um bom trabalho.
Ocorre que o Flamengo está com um elenco arrogante, acomodado e desonesto: o time claramente está boicotando o trabalho do treinador, como já fizeram antes com Dome e Ceni. Há um problema “espiritual” no grupo. E foi a presença de espírito do Fluminense que derrotou a arrogância do Flamengo. Assim como foi a presença de espírito do Palmeiras que ajuda a explicar a virada épica contra o São Paulo. Não falta apenas o famoso, amado e necessário “plus” da “raça” em campo, mas também e principalmente respeito à hierarquia organizacional e portanto ética profissional. Como afirma Mauro Cezar: esses jogadores estão manchando sua própria história no clube.
É evidente que o trabalho de Paulo Sousa não surtiu os resultados esperados. Demonstrou avanços no começo, mas a equipe retrocedeu de modo inaceitável nos últimos jogos, especialmente no último. Neste jogo, os jogadores cumpriam as posições, mas não faziam os movimentos requeridos pelo esquema tático. Os generosos buracos entre as linhas foram o resultado desta indisciplina do time em correr como manda o treinador e sua tática.
Tem cara de boicote, rabo de boicote, pele de boicote. Não pode ter sido outra coisa. O grande problema do Flamengo não é o treinador. É a equipe. Obviamente não toda a equipe. Mas uma parte bem maior do que imaginamos. Há ervas daninhas poderosas que precisam ser arrancadas. Jogador não tem que pedir pra treinador ser flexível e mudar o esquema de jogo de acordo com suas preferências e seu comodismo. Jogador é pago, e no caso muito bem pago, para fazer o que o treinador manda. Se Paulo Sousa cair, será o terceiro treinador que essa panelinha de velhos cansados derruba. E se voltar, com a vitória da panelinha sobre mais um técnico, nem Jesus salva o Flamengo de sua grave crise na cultura organizacional do futebol. Precisamos de uma barca grande e generosa, e sobretudo de uma mudança política no futebol do clube que inviabilize esse boicote inaceitável que alguns atletas estão fazendo. Paulo Sousa tem que ficar e os velhos devem ir caminhar na praça. A manutenção do treinador é um posicionamento político essencial para resolver a crise.
 
 
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O que representam os quatro pré-candidatos a presidente
02/01/2022 | 12h14
Quem é simpatizante de pré-candidaturas presidenciais como eu tende a ficar conversando quase sempre com quem pensa parecido. Essa tendência é reforçada pela estrutura da esfera pública digital cada vez mais fragmentada em bolhas e públicos que quase não se comunicam. Infelizmente são raras as oportunidades de conversar fora de nossas respectivas bolhas, com simpatizantes de outros pré-candidatos. Desde o segundo semestre do ano passado tenho me esforçado para encontrar e aproveitar estas oportunidades. No último dia 5 de novembro, o programa Folha no Ar, da Folha FM 98,3, criou uma destes raros momentos. Promoveu um debate entre simpatizantes dos quatro principais pré-candidatos à presidência da república: Lula, representado pelo professor José Luis Vianna, Bolsonaro representado pelo odontólogo Alexandre Buchaul, Sérgio Moro representado pelo advogado Cristiano Sampaio e Ciro Gomes, por mim representado. Neste texto gostaria de fazer uma análise sobre a visão de país representada pelos quatro pré-candidatos tomando este debate do Folha no Ar como principal referência para construir e apresentar meu ponto de vista.
‘Embora não possa reivindicar nenhuma imparcialidade, já que sou assumidamente simpatizante de um pré-candidato, tenho me esforçado para compreender o ponto de vista dos apoiadores das outras três pré-candidaturas. Lula, Bolsonaro, Moro e Ciro representam correntes de opinião e interesses importantes no país. Se é inegável que meu interesse político em torno de Ciro me torna parcial em qualquer análise sobre o assunto, acredito que meu interesse sociológico sobre os distintos grupos sociais e suas visões de mundo me permite levar a sério e discutir o ponto de vista de quem simpatiza com Lula, Bolsonaro e Moro. Para isso, creio ser conveniente começar pela apresentação de minha simpatia política.
Ciro Gomes
Porque simpatizo com a pré-candidatura de Ciro Gomes?
Minha simpatia por Ciro começou na disputa pré-eleitoral para as eleições presidenciais de 2010. Naquele momento, mesmo sendo filiado ao PT, defendia que Lula e seu partido apoiassem o ex governador do Ceará e então aliado, que havia sido um dos principais quadros do governo e que desde seu rompimento com o PSDB na década de 1990 trabalhava na construção de um projeto de desenvolvimento para o país. Dilma foi a escolhida. A tragédia inconteste de seu governo, referendada pelo ostracismo que seu próprio partido hoje lhe impõe, mostra que eu tinha razão em defender o nome de Ciro. Desde então vejo Ciro como o único líder político nacional que se preocupa em entender os graves problemas econômicos, sociais, culturais que o Brasil enfrenta na sua quadra histórica mais recente. Do meu ponto de vista, apenas Ciro coloca no centro de sua ação aquilo que o Brasil mais precisa hoje: ideia e projeto. Ideias apenas não bastam para mudar a realidade, mas sem ideias nenhuma mudança é possível. No episódio em que suspendeu sua pré-candidatura para pressionar parlamentares do seu partido a mudar de posição sobre a PEC dos precatórios, Ciro deu talvez o mais importante e convincente testemunho da centralidade que as ideias ocupam em sua prática política. Riscou uma linha em torno de concepções inegociáveis. Precisamos de um presidente que assuma os riscos de conduzir as mudanças que o país precisa e o compromisso com ideias é precondição para isso.
As principais propostas de Ciro referem-se à economia, mas abrangem também a reconstrução do presidencialismo, a educação e a reformulação do pacto federativo. O foco é a superação de nossa trajetória de subdesenvolvimento, desindustrialização e reprimarização através de políticas macroeconômicas e setoriais que visam construir novo processo de industrialização sintonizado com a economia do conhecimento. Entre os setores destacam-se o complexo industrial da saúde, do agronegócio, da energia e da defesa. Meu argumento, no entanto, é que cada uma das quatro pré-candidaturas representa mais que políticas públicas específicas. Elas trazem para o jogo político visões de mundo sobre o país, seus problemas, potencialidades e possíveis soluções. A visão de mundo articulada por Ciro é o trabalhismo nacional-desenvolvimentista: a perspectiva de que o aviltamento do trabalho pelo capital é inseparável da subordinação nacional na divisão internacional do trabalho e nas relações centro/periferia. Para Ciro esta condição de superexploração do trabalho e subordinação nacional não é necessária. Ela é o resultado de políticas públicas que desperdiçam as potencialidades físicas, culturais e econômicas do país e de seu povo. Em sua perspectiva as soluções podem e devem ser criadas pela política, especificamente por uma nova política nacional-desenvolvimentista que combine valorização do trabalho e da produção com o soerguimento nacional. É possível e desejável que haja discordância e debate sobre esta visão do país. Mas infelizmente isso não ocorreu em 2021, pois os outros três pré-candidatos fizeram a opção pelo personalismo exagerado, pela conversa sobre pessoas em detrimento do debate sobre ideias e projetos. Nenhum deles quis debater com Ciro, pois sabem que ideia e projeto são a grande qualidade do trabalhista. E quais os problemas de Ciro e de sua pré-candidatura? O principal e mais grave deles, fazendo jus ao conhecido e verdadeiro chichê, tem a ver com sua virtude: ao investir no debate racional de ideias, apostar na inteligência do povo, Ciro acaba negligenciando a dimensão afetiva e as urgências da população que legitimamente se fazem representar na política democrática.
Na democracia, votar com o estômago vale tanto quanto votar com o fígado ou com a cabeça. A democracia é o regime em que a quantidade tem primazia sobre a qualidade: é o governo da maioria, não o governo dos que se colocam como mais qualificados. Esta é a norma básica e simples da igualdade política, inventada pelos atenienses: mesmo que os cidadãos (apenas homens, mulheres e escravos de fora) aptos à vida política na Atenas antiga fossem apenas uma parte minoritária da população, entre eles não valia critério hierárquico de qualidade, mas sim critérios quantitativos igualitários de agregação de vontades e preferências. Na democracia, é a quantidade que define a qualidade.
Os outros três pré-candidatos não investiram no debate de projetos de governo e país em 2021. No entanto, mesmo sem debate racional, creio ser possível identificar a perspectiva de mundo representada por cada um deles. É preciso deixar claro que não estou analisando prioritariamente a personalidade concreta de nenhum deles, mas sim a pessoa política que constroem na relação de representação de segmentos da população. O foco é menos no que cada um deles pensa e diz do que nas expectativas com as quais os eleitores, de modo explícito ou implícito, os identificam e diferenciam. Assim, na sequência identifico pontos positivos e negativos das pré-candidaturas de Lula, Bolsonaro e Moro não como qualidades e defeitos de suas respectivas personalidades individuais, mas sim enquanto atributos da visão de mundo e país que julgo representarem.
Bolsonaro
No caso de Bolsonaro, acredito que a principal qualidade que ele representa é o agonismo democrático. Bolsonaro representa uma extrema-direita que não traz nada de construtivo em seu conteúdo. Mas há algo de muito fundamental e positivo na forma como ele articula a visão de mundo que representa: o elemento plebiscitário e populista da democracia, capaz de desafiar a hegemonia ideológica e institucional vigentes, mesmo sem apresentar nada melhor como alternativa. Neste ponto sigo as teses de Chantal Mouffe sobre o “momento populista”. Ao seu modo, Bolsonaro articula o antagonismo “povo” x “oligarquias” como forma de criticar e atacar o que seu movimento chama de “sistema”, mas que nada mais é do que a estrutura institucional e ideológica do regime político da constituição de 1988. O “momento populista” inaugurado pelo bolsonarismo denuncia que esta estrutura institucional e ideológica fracassou em representar os anseios das maiorias. Mesmo sem apresentar nenhuma alternativa, sendo por isso um movimento essencialmente destrutivo, a denúncia de nossa falência institucional, ideológica e constitucional me parece pertinente.
De fato, a democracia brasileira se encontra bloqueada pela própria natureza do regime que desacelera a política em desfavor do povo e em proveito das oligarquias. Infelizmente nenhuma outra corrente política cumpre a tarefa de denunciar este bloqueio como faz o bolsonarismo. Por isso a crítica radical de nossa democracia bloqueada fica restrita a uma crítica autoritária, mas pode e deve ser uma crítica democrática. Bolsonaro representa a força necessária para se insurgir contra arranjos institucionais e ideológicos que não nos servem. A maioria de nosso povo não aceita bem o papel de vítima da história, e Bolsonaro soube vocalizar essa visão de mundo. Quem não souber entender este mérito “antisistema” de Bolsonaro terá não apenas dificuldades de enfrentar o bolsonarismo, mas também de se conectar com as demandas sociais que ele representa. Mas Bolsonaro distorce a força social que representa, transformando-a em mera violência destrutiva. O grande problema do bolsonarismo é sua evidente pulsão de morte. Na ausência de uma alternativa ao modelo que denuncia, resta o ódio destrutivo contra tudo que está aí, a revolta puramente moralista, irmã siamesa da violência escancarada. Por isso, ele não é o melhor representante da direita conservadora brasileira, que é bem distinta da extrema-direita. Bolsonaro não tem nada de conservador. É um destruidor compulsivo, um jacobino miliciano. Os conservadores podem dar contribuição importante ao país, mas não por meio de Bolsonaro. Além da pulsão de morte, outra diferença importante entre o bolsonarismo e o conservadorismo é a incapacidade de Bolsonaro de separar palanque de governo. É quase completa a falta de racionalidade administrativa no governo Bolsonaro. Esta colonização do governo pelo palanque está na raiz de todas as tragédias administrativas do governo, que a gestão da pandemia sintetiza tão bem.
Moro
A relevância política de Moro está evidentemente ligada ao que a operação Lava Jato representou e ainda representa em alguma medida. Como sabemos hoje pela boca do próprio pré-candidato, a Lava Jato sempre foi uma operação política com o objetivo de combater o PT. Mesmo assim, politicamente, Moro acabou representando a denúncia moral da relação promíscua entre dinheiro e poder. A legitimidade política e a força desta denúncia independem da corrupção política do Direito que a própria Lava Jato promoveu. Ela demonstrou de modo farto e inconteste como os grandes empresários estão sempre na antessala da política, corrompendo economicamente os partidos e sua legitimidade em representar a vontade popular. No entanto, embora esta seja uma contribuição importante, a corrente de opinião que Moro representa comunga com ele o mesmo vício moralista presente no bolsonarismo. A corrupção, percebida como maior dos males e grande causa de todos os problemas nacionais, é atribuída unicamente à ação de pessoas e grupos corruptos, e não a arranjos institucionais incapazes de bloquear a ação corruptora do dinheiro sobre o poder e o Direito, e do poder sobre o Direito e o dinheiro. Na visão de mundo representada por Moro, a solução de todos os problemas é a cruzada moralista contra pessoas e grupos corruptos. Enquanto o moralismo bolsonarista tem a violência miliciana como horizonte, o moralismo morista deságua no culturalismo colonizado: o Brasil seria um país marcado pela cultura da corrupção em comparação com a cultura da honestidade que ele atribui aos EUA. Daí que, sem surpresa, a solução inclua a subordinação neocolonial do nosso país às estratégias de “combate a corrupção” promovidas pelo grande irmão do norte. O morismo é uma variante do mesmo moralismo que constitui o bolsonarismo, só que com doses cavalares de complexo de vira-latas.
Lula
A grande qualidade política do lulismo não é apenas representar a massa de despossuídos, hoje torturados novamente pela fome e pelo desespero quase completo. Isso já seria algo muito importante. Mas Lula representa algo ainda mais forte: a identificação do povo brasileiro consigo mesmo e com o próprio país. O grande legado de Lula não está em nenhuma política pública ou construção institucional, mas sim nesta auto-identificação positiva do povo a partir de sua pessoa política e de seu carisma. Isso não é pouca coisa. Embora Lula esteja longe de ser um estadista do tamanho de Vargas, como dizem os mais obtusos bajuladores, esta obra simbólica de promover a autoestima do povão não foi realizada antes por nenhum outro na extensão alcançada pelo lulismo. De certo modo, o próprio Bolsonaro se valeu desta auto-identificação positiva. O grande problema do lulismo é o desperdício do seu próprio movimento carismático: Lula, como nenhum outro nas últimas décadas, poderia ter sido o grande representante e articulador de um projeto e de um sonho nacional. É inegável que Lula realizou políticas sociais importantíssimas de combate a pobreza. Mas nenhuma delas constituiu um legado como foi o caso das políticas de Vargas. Se tivesse articulado o “popular” como o “nacional”, Lula poderia ter superado Vargas no posto de maior presidente da história do país. Com mais de oitenta por cento de aprovação, não realizou nenhuma mudança estrutural e institucional. Talvez por confiar demais em seu carisma, Lula parece até hoje não acreditar na importância das ideias como elemento fundamental na transformação da realidade. Que fique bem claro: não se trata aqui de questionar a inquestionável inteligência de Lula. É inteligentíssimo em quase todas as dimensões da vida. O problema é que ele não valoriza a força das ideias na vida política. Possivelmente também por conviver com intelectuais bajuladores e medíocres, trata as ideias como mero adereço retórico, preferindo o improviso intuitivo, cujo resultado é sempre a acomodação conservadora em lugar de inadiáveis mudanças que exigem firmeza de convicção e disposição para o risco. Isso fica claro quando comparamos sua retórica de afirmação nacional na política exterior, acompanhada de uma política econômica que pouco ou nada fez para reverter a trajetória de desindustrialização e degradação econômica do país. Será que Lula mudou depois da amarga experiência? Gostaria de acreditar que sim, mas suas ações infelizmente indicam que não.
E o que podemos esperar para o decisivo ano de 2022? Que tipo de resultante irá emergir do embate entre os quatro principais pré-candidatos? Nos 200 anos de sua independência encontrará o país um rumo para sair de sua mais grave crise existencial? A própria natureza da crise, que é multidimensional, encurta os horizontes temporais e torna o futuro algo abstrato, sem sentido concreto para as maiorias, tornando-se uma enorme pedra no caminho de quem deseja disputar a cadeira de presidente a partir do debate de ideias. Isso contribui muito para que Lula e Bolsonaro se mantenham firmes em suas respectivas posições na preferência dos eleitores.
Quanto a isso, não há o que se queixar da democracia. A política democrática não é o espaço para a vitória garantida do melhor argumento. Não é ciência, não é discussão racional, para espanto de muitos. Não para o meu. A política democrática é o espaço da disputa pacífica, agonística e regular entre visões de mundo distintas, entre visões distintas sobre a natureza dos problemas coletivos e de suas possíveis soluções. Não é, por exemplo, o lugar em que o conhecimento científico tem mais valor que a visão religiosa não científica. Não é o lugar em que a racionalidade de quem pensa a longo prazo tem mais valor do que o voto com o estômago ou com o fígado. A tarefa de quem pode pensar problemas e questões de longo prazo, sem a urgência do estômago e as perturbações afetivas do fígado, não é apostar exclusivamente na racionalidade de longo prazo e desprezar a de curto e curtíssimo prazo. É usar a primeira para conquistar a segunda. Este é o desafio de quem deseja construir um projeto nacional de desenvolvimento em um país devastado pela urgência da fome e pelo moralismo que perturba a razão a partir dos afetos do fígado. O país precisa urgentemente de debate racional sobre seu futuro. E isto deve ser cobrado de todos os postulantes à cadeira de presidente da república. Mas o povo é o que é. E é bom que os ilustrados, se quiserem ter sucesso na política, saibam entender as “línguas estranhas” que atribuem a ele.
 
 
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