A negação da história nos 30 anos da UENF
Roberto Dutra 21/08/2023 17:32 - Atualizado em 21/08/2023 18:29
No último dia 16 de agosto a UENF se vestiu para a festa. Emocionados, alunos, servidores técnicos, professores e a comunidade se prepararam para celebrar, com rito e cerimônia oficial, os 30 anos da Universidade. Rituais e cerimônias, independente do tamanho e da pompa, nos convocam a suspender interesses e preocupações imediatas e nos remetem à duração de coisas grandiosas, que transcendem o horizonte estreito que assumimos em nossas atividades e pelejas corriqueiras. São oportunidades de grandeza e magnanimidade até para quem vive atolado na mediocridade e nas intrigas. Somos inseridos em um trabalho extraordinário de memória coletiva: esquecer de coisas pequenas lembrando e exaltando algo grandioso que nos congrega. Na vida privada, momentos rituais e cerimoniosos como aniversários e funerais de entes queridos costumam ser marcados por gestos extraordinários de unidade e transcendência da mesquinharia e das intrigas que costumam afetar o cotidiano das famílias e das relações pessoais. Na vida pública, são situações propícias até para políticos do varejo de curto prazo ensaiarem o papel de estadista ao menos uma vez. Rituais e cerimônias são momentos de celebrar e performar a grandeza de instituições e coletividades. Participar destes momentos é poder tomar parte de algo grandioso que ultrapassa os feitos pessoais e a temporalidade de cada um; e estes feitos adquirem sua eventual grandeza unicamente ao se mostrarem parte da construção da obra duradoura em uma temporalidade cheia de história, memória e futuro, e que transcende o ciclo de vida e atuação das pessoas. Daí que a honra ritual aos ancestrais de uma instituição é menos um culto a personalidades do que o reconhecimento de contribuições importantes para o legado da obra maior.
Nestes 30 anos da UENF, foram muitos os que contribuíram para a construção desta grandiosa Universidade, deixando assim seu nome nas páginas de nossa história e memória. Neste período, foram muitas as conquistas e batalhas que envolveram um grande número de pessoas. Muitas destas pessoas ainda estão na Universidade, outras seguiram sua vida em outras instituições e atividades, mas sempre se fazem presentes nos rituais da UENF, quando convidadas. Uma parte significativa delas estava presente na Reunião Extraordinária do Conselho Universitário (CONSUNI) da Universidade, no Centro de Convenções Oscar Niemayer, para a cerimônia oficial de comemoração do aniversário da instituição. Muitos chegaram à UENF no momento de sua criação e participaram de seus primeiros passos. Como ex-aluno, atual professor e membro do CONSUNI, observava com muita reverencia, respeito e encanto nossos “cabeças brancas” chegando para a honrosa cerimônia. Incitado pela memória oral, pelos causos que tenho o prazer de ouvir pessoalmente de alguns deles, sempre fico imaginando a ousadia e os feitos destas senhoras e senhores para construir e fazer durar e crescer a UENF. É um privilégio conviver diariamente com a memória viva e encarnada da Universidade. A expectativa era que a cerimônia de aniversário fosse um ritual de reverência à história e à memória da instituição, o que incluiria lembrar a contribuição de gerações e pessoas que criaram e deram prosseguimento à obra coletiva de 30 anos. Mas a contribuição de nossos “cabelas brancas” foi solenemente ignorada na cerimônia organizada e conduzida pela reitoria.
Perplexos, assistimos uma blasfêmia ritual, um esforço tosco e indecoroso do reitor Raul Palacio para exaltar sua própria gestão em vez de celebrar a obra maior e transcendente que ali nos reunia. Três ex-reitores estavam presentes. Nenhum deles foi convidado a compor a mesa oficial, composta pelo reitor, diretores dos centros e pró-reitores. Também não foram mencionados pelo reitor com o mínimo de deferência. Sua contribuição à história da UENF foi esquecida, como se a Universidade tivesse começado a existir na atual gestão. Outros dois ex-reitores muito importantes na história da UENF estariam presentes se fossem convidados: O professor Wanderley de Souza, que dirigiu a implantação da estrutura da UENF, e o professor Salassier Bernardo, primeiro reitor eleito da Universidade. O atual dirigente máximo da instituição colocou o interesse eleitoral interno e a pequena política no lugar do ritual da grandeza que nos leva a transcender os particularismos. Depois que os diretores dos centros (CCTA, CCT, CCH, CBB) exaltaram a história e a memória da UENF, era a vez do reitor encerrar a cerimônia, encarnando, pelo menos de forma extraordinária, o papel do estadista com visão estendida do passado e do futuro. Mas parecíamos estar diante de um candidato a vereador tentando fidelizar sua clientela. O vício pela pequena política parece não ter deixado nenhum espaço para nada maior. Os grandes feitos científicos que marcam a história da UENF e o trabalho que os servidores realizaram antes que o atual grupo político chegasse ao poder pareciam não ter nenhum valor. A história da UENF foi sistematicamente negada no seu aniversário de 30 anos.
A negação mais evidente e escandalosa de nossa história foi a narrativa de que a primeira homenagem a um servido técnico-administrativo com a Medalha Darcy Ribeiro, maior honraria concedida pela UENF, havia ocorrido naquela cerimônia, pelas mãos do reitor Raul Palacio. Uma faixa (ver imagem 1) colada no palco pelo Sindicado dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais do Rio de Janeiro (Sintuperj) registrou e reforçou o negacionismo, afirmando que o tratorista Ademir Ribeiro Manhães seria o primeiro servidor de sua categoria a ser homenageado com a honrosa medalha.
Imagem 1
Imagem 1 / Arquivo pessoal
A homenagem foi indicada e aprovada pelo Conselho Universitário (CONSUNI), em votação quase unânime, com votos de todas as categorias, inclusive dos professores, em gratidão e reconhecimento pelo trabalho extraordinário de Ademir em defesa da UENF. Eu mesmo votei entusiasmado para que ele fosse o grande homenageado na festa de 30 anos. Representa muito bem a grande contribuição que os servidores de sua categoria deram e dão à Universidade durante este período. Mas o fato histórico é que ele não foi o primeiro de sua categoria a receber a mais alta homenagem da UENF. O primeiro a receber a Medalha Darcy Ribeiro foi o técnico Mário Lopes Machado. Além de ter ajudado a consolidar a instituição como servidor do seu quadro permanente, Mário ocupou um papel fundamental na criação da UENF: atuou com liderança na coleta de assinaturas para apresentar a emenda popular à Assembleia Constituinte Estadual para a criação de uma universidade pública em Campos dos Goytacazes. Por este feito, recebeu a Medalha Darcy Ribeiro em 2008 das mãos do então reitor Almy Junior (ver imagem 2). Depois de Mário, outra servidora também recebeu a Medalha em 2011. Foi a professora e então servidora do corpo técnico-administrativo Zuleima Faria (ver imagem 3), uma das pessoas que criou e institucionalizou a Secretaria Acadêmica da UENF.
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Imagem 2 / Imagem 2
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Esta lembrança em nada desmerece a contribuição e a homenagem feita a Ademir no aniversário de 30 anos. Ao contrário: é o esquecimento das outras homenagens, em esforço constrangedor de negar o passado, que desvaloriza o trabalho do corpo técnico-administrativo como um todo. Mas este não é um fato isolado. A negação da história e da memória parecem constituir um padrão para o atual reitor e o grupo que governa a Universidade. Na cerimônia usada pelo reitor para fins eleitoreiros, não havia nenhum trabalho de memória institucional com base em arquivos fotográficos e audiovisuais. Os slides apresentados pelo dirigente máximo da UENF estavam focados em sua própria gestão. O padrão politiqueiro continuou blasfemando a história e a memória da UENF. No dia 18 de agosto, última sexta-feira, a reitoria organizou uma mesa de debate sobre o legado de Darcy Ribeiro na Casa de Cultiva Villa Maria. Em vez de uma mesa que ressaltasse o pensamento e a obra de Darcy Ribeiro, o evento foi usado para reforçar os conchavos políticos do reitor fora da Universidade. Presentes estavam um ex-deputado estadual, o reitor do Instituto Federal Fluminense (IFF) e pré-candidato a prefeito de Campos e a diretora da UFF/Campos. Nada contra nenhum dos convidados da mesa. Mas a ausência de um cientista que trabalha sistematicamente com o pensamento e a obra de Darcy é um escândalo. No caso, a ausência tem nome e já trabalhou anos na própria UENF: a professora Adélia Miglievich Ribeiro, atualmente na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é uma das maiores conhecedoras de Darcy, e está sempre disposta a atender os convites da UENF. Faltou na mesa a dimensão científica tão valorizada por Darcy e tão desprezada pela atual gestão da Universidade. O evento parece ter sido organizado como uma luva para reforçar os interesses do reitor na política local e estadual. Mas Darcy não criou a UENF para servir de instrumento para particularismos políticos. É verdade que nosso “pai fundador” não demonizada a política e os políticos. Até porque ele foi um destes raros personagens que sabe navegar e entender estes dois mundos tão distintos que são a política e a ciência. Mas nada é mais contrário ao legado de Darcy do que manipular a ciência e o pensamento de longo prazo em favor de interesses eleitorais do momento.
De um reitor se espera respeito à Universidade que dirige. Isso exige respeitar os ritos, a história e a memória da instituição. O reconhecimento do trabalho e das contribuições dos que vieram antes é parte inseparável disto. Dele também se espera que saiba separar o significado maior de uma cerimônia oficial para celebrar o nascimento da UENF do desejo particular de elogiar o próprio mandato e promover seus objetivos eleitorais de curto prazo. Ao magnífico e seu grupo político faltou o mínimo de magnanimidade.
Quando assistia este discurso de autoelogio do reitor, me veio a mente outra grande realização de Darcy Ribeiro, Leonel Brizola e Oscar Niemayer: A construção do Sambódromo do Rio de Janeiro (mais conhecida como Marquês de Sapucaí e oficialmente nomeada de Passarela Professor Darcy Ribeiro). Nesta outra grande obra que transcende particularismos, a Estação Primeira de Mangueira nos arrebatou, em 2019, com o enredo “A história que a história não conta”. Nele aprendemos como a história tornada oficial pode se fazer pelo apagamento de muitos de seus protagonistas. Foi exatamente isso que nosso reitor tentou fazer. Mas o enrendo da verde e rosa, cuja bateria abrilhantou o aniversário de 15 anos da UENF em 2008 (ver imagens abaixo) com apresentação do enredo do carnaval de 2009 sobre o livro “O Povo Brasileiro” de Darcy, também nos ensina que a memória nunca está concluída e que a história das contribuições e protagonistas apagados pode sempre ser recuperada pela luta. Não uma luta em nome da vaidade de ex-reitores, servidores técnicos, professores e alunos. Mas uma luta em nome da verdade histórica sobre a construção e o legado da UENF. Não uma luta em torno do passado e suas picuinhas. Mas uma luta em torno do futuro, porque o costume de encurtar o horizonte temporal do passado, tratando 30 anos de Universidade como se fossem 4 anos do mandato de um reitor, tem afinidade carnal com o costume de negligenciar o futuro. A UENF não merece e não aceitará esta tentava de apequená-la.

                                     






 

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