O novo governo e a tarefa da reconstrução e conciliação nacional
Roberto Dutra 31/10/2022 09:51 - Atualizado em 31/10/2022 10:46
O próximo governo tem pela frente uma tarefa inadiável de reconstrução e conciliação nacional. A divisão política polarizada confirmada nas urnas não é um problema em si. O problema é a polarização moralista que contamina todas as relações e esferas sociais sem trazer o lado bom da polarização propriamente política: a possibilidade de escolher entre duas linhas programáticas distintas sobre soluções para os problemas reais da sociedade. O maior desafio deste novo governo Lula é reconstruir uma polarização política que não resulte em uma polarização social açambarcante e simplista, baseada unicamente no sentimento moralista do nós contra eles. O caminho para isso é deslocar a polarização política das lutas culturais e morais para as lutas em torno da economia política e da política social. Para nos reconciliarmos, precisamos reaprender a brigar.
A ordem constitucional e institucional da Nova República foi arruinada não apenas pela ação de seus adversários. Sua derrocada também é o efeito de sua incapacidade intrínseca de ofertar ao país duas coisas essenciais sem as quais uma constituição cidadã não pode se efetivar: 1) inovações institucionais capazes de produzir direitos sociais e serviços públicos em quantidade e qualidade suficientes para garantir a cidadania; 2) e um modelo de desenvolvimento capaz de elevar a complexidade e a produtividade do sistema econômico e assim assegurar inclusão econômica qualificada e fonte de financiamento para as políticas sociais. Não é possível garantir política social e dignidade para as maiorias sem inovações institucionais na oferta de serviços públicos e sem um novo modelo econômico que combine elevação da complexidade e da produtividade com a inclusão das maiorias em empregos e oportunidades econômicas de qualidade. Falar em cidadania sem enfrentar estas duas questões é faltar com a dignidade intelectual e política.
Caso opte pelo atalho e evite enfrentar os conflitos e desafios políticos necessários para resolver os dois problemas estruturais mencionados acima, o novo governo certamente será um fracasso, preparando o caminho para a volta da extrema-direita ao poder. O atalho leva, desta vez, mais diretamente ao precipício. A falta de compromisso programático de Lula não é um bom sinal, pois indica que o grande líder popular pode novamente escolher este caminho curto e trágico. Mas este mau sinal nunca deve ser tomado como destino e necessidade. O futuro é aberto também porque as pessoas nunca estão prontas, porque novas situações exigem a busca por alternativas e inovações no ser e no agir. Por isso, arrisco uma avaliação antideterminista sobre o futuro governo Lula: ou será muito ruim e trágico se optar pelo atalho, ou será muito bom e construtivo se optar pelo caminho radical da reconstrução nacional. O meio termo se tornou uma opção indisponível.
A tarefa de reconstrução nacional requer combinar radicalidade no conteúdo com amplitude na forma de agregação de forças políticas. No conteúdo, é urgente reconectar a agenda da política social – inclusão social e redistribuição de renda – com a agenda da mudança da política econômica em torno de um projeto nacional de desenvolvimento centrado na soberania nacional. A reconexão entre política econômica nacionalista e política social universalista consiste em mudanças sociais induzidas pelo sistema político no sentido de construir solidariedade complexa no plano nacional, oferecendo programa e discurso que façam o que chamo de fusão política majoritária de interesses sociais distintos em interesses políticos comuns, responsável pela criação de identificações coletivas suficientemente amplas e coesas parra sustentar decisões políticas. Na política social, esta solidariedade complexa requer a ruptura com a fragmentação entre política compensatória de transferência marginal de renda para os pobres e política regulatória de serviços privados para a classe média. A tarefa é atrair a classe média para os serviços públicos, para a escola pública, para o SUS. Na política econômica, o desafio é romper com o abismo institucional entre produção desigual e redistribuição marginal da riqueza. É preciso reinventar a receita do bolo, de modo que produção e distribuição não sejam momentos e processos desconectados, mas processos correlatos. A esquerda precisa conjurar o rebaixamento das expetativas e não se contentar em redistribuir pela tributação redistributiva a riqueza produtiva a apropriada de modo desigual no sistema econômico. É preciso transformar as estruturas sociais da economia. É preciso transformar e diversificar as formas de propriedade, recolocando a questão do controle dos meios de produção e da relação entre o capital e o trabalho no centro da agenda. O trabalho assalariado não serve mais como forma de trabalho livre garantidor de cidadania para as maiorias. Formas alternativas de produção, consumo e financiamento como o trabalho cooperativo, que no século XIX figuravam como opções para superar a julgo do trabalho pelo capital, devem ser recuperadas e reformuladas à luz dos novos desafios. A inovação jurídica, especialmente nos direitos de propriedade, deve estar na ordem do dia. Em uma palavra, é preciso ousadia programática.
Na forma, é preciso compreender que uma política de alianças não está em contradição necessária com uma política radical no conteúdo. É possível ser radical no conteúdo e amplo na construção de alianças. A tarefa de reconstrução nacional não é uma tarefa da esquerda, embora possa ter o protagonismo da esquerda ao lado de outras forças. Neste sentido, a aliança entre Lula e Alckmin, assim como o movimento de aproximação com antigos adversários como FHC, são excelente sinais. Pode ser parte de uma eventual solução para ampliar a força política necessária para reconstruir o país. A maioria das pessoas de esquerda acredita que fazer alianças em busca do centro político exige borrar ou apagar diferenças e conteúdos programáticos radicais. Acreditam que a moderação programática é o único caminho possível. Precisam se dar conta que ela é parte do problema. Estão ainda reféns da confusão entre ser radical e ser sectário: partem da premissa de que um programa político radical, ousado, que busque soluções estruturais para problemas estruturais, é sempre sectário, estreito no espectro dos grupos e classes sociais que lhe dão sustentação. Esta confusão pode e deve ser desfeita, pois ser radical na dimensão programática não significa necessariamente sectarismo na relação com as forças políticas. Programas rebeldes de desenvolvimento nacional foram sempre radicais e contaram com ampla base de apoio envolvendo setores populares e médios. Quando não contaram com o apoio de setores burgueses, o apoio da classe média e dos setores populares garantiu, muitas vezes, as condições para a coerção política da minoria dissidente e entreguista. Não há lei social ou política que faça da classe média a linha de frente da burguesia antinacional e antipopular. É preciso recuperar as nuances e contradições da história política e a contingência das estruturas da ação social.
Para Lula o caminho radical da reconstrução nacional impõe pelo menos dois desafios específicos que implicam romper com o padrão dos governos lulistas anteriores: 1) desfazer a confusão entre política de alianças e rendição programática que serve de desculpa para governos medíocres; 2) buscar novos horizontes intelectuais para superar o deserto de ideias do PT. A confusão entre amplitude de alianças e rendição programática está sintetizada na doutrina estruturalista pseudo-sociológica da “correlação de forças”: a ideia de que as classes, grupos e demais forças sociais possuem interesses claramente definidos e fixados de antemão, antes da política. Daí se supõe que a natureza transformadora dos interesses é sempre inversamente proporcional à quantidade de atores que compõem uma aliança política, como se a política apenas reagisse passivamente à “correlação de forças” entre estes interesses. Esta suposição não leva em conta que a política transformadora real sempre promoveu sínteses de interesses diversos em um interesse maior: a política é ativa e formadora em relação aos interesses, pois estes nunca estão plenamente definidos e fixados pelos atores, que podem aprender a defender novos interesses a partir da política. Não se trata de imaginar uma situação de consenso, mas de buscar uma síntese de interesses entre classes médias e populares para antagonizar com as oligarquias rentistas que saqueiam o país. É aliança para o conflito.
No entanto, para superar esta falsa dicotomia entre ousadia programática e política de alianças, assim como outros determinismos, o novo governo precisa se libertar de certas amarras intelectuais entranhadas desde sempre no PT e na esquerda. No geral, essas amarras se caracterizam pela combinação de abstrações sem detalhamento contextual em termos de diagnóstico e programa, como a ideia vaga de socialismo, com um profundo desprezo pela história nacional e pelas conquistas brasileiras antes do PT chegar ao poder. Para a quase totalidade dos intelectuais petistas, nada no Brasil prestou antes de chegada de Lula ao poder em 2002. O nacionaldesenvolvimentismo e a pujança nacional em quase todas as esferas da vida social, que transformou o Brasil entre os anos 1930 e 1980, são simplesmente esquecidos e apagados, pra usar o jargão cultivado pela esquerda atual. Este negacionismo antinacional tem possivelmente sua melhor expressão no pensamento de Marilena Chauí, a filósofa para quem o Brasil não valeu a pena. Em análise recente com recomendações para o futuro governo , Chauí evidencia novamente seu distanciamento cognitivo e afetivo em relação aos problemas e soluções nacionais. Primeiro e determinante do resto, ela parece não estar observando os acontecimentos políticos dos últimos anos, pois só isso pode explicar tamanha alienação em supor que a tarefa de refazer o país é ou pode ser uma tarefa da esquerda. Ela parece não conceber a possibilidade de que outras forças políticas tenham contribuições importantes ao país e à tarefa de reconstruí-lo. Setores como os evangélicos e o agronegócio, que representam as duas maiores mudanças sociais e culturais no Brasil das últimas 5 décadas, não teriam lugar na obra de reconstrução nacional. Aceita-se, eventualmente, como foi no passado, que estes setores sejam convocados para ajudar na cozinha ou no porão da política, mas nunca para dividir a sala com a mesma dignidade que a esquerda atribui a si mesma. Na sequência deste esquerdismo, Chauí aborda temas como educação, reforma política, forças armadas e superação do neoliberalismo de modo abstrato, superficial e descolado dos problemas concretos do país. É uma lista de temas importantes com testemunho de boas intenções. Nenhum diagnóstico, nenhuma formulação programática.
Lula sabe como ninguém a arte de construir alianças e isso é uma virtude indispensável para reconstruir o país. Mas ele precisa aprender a dar a importância que nunca deu à forças das ideias na política, sobretudo quando representadas e encarnadas por líderes e partidos fortes como ele o PT. As ideias são armas indispensáveis nas disputas políticas de grandes dimensões, como as lutas redistributivas e pela soberania nacional que estarão na mesa do futuro governo. Lula estará diante destas lutas, querendo ou não. Minha esperança é que, cobrado pelas circunstâncias e agraciado pela sorte e por Deus, ele possa desenvolver a virtude de valorizar as formulações programáticas para estruturar e conduzir o governo. Se optar pelo atalho, como fez no passado, não fará um governo mediano capaz de entregar picanha e cerveja. Desta vez, o atalho conduz diretamente ao precipício antes de passar o bastão ao sucessor. Para Lula, isso significaria entrar para a história sob o signo da pequenez. Sua única alternativa pessoal é também a melhor para o país: fazer aliados, comprar as brigas necessárias, virar a mesa e construir um caminho radical de reconstrução nacional. Aí sim ele entraria para o panteão seleto dos grandes construtores do país.

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