Para além da tese da personalidade autoritária: queremos sim o eleitor bolsonarista
25/04/2022 14:41 - Atualizado em 25/04/2022 14:48
1) O fenômeno do bolsonarismo tem provocado uma retomada da tese da personalidade autoritária de Theodor Adorno. No famoso livro “Estudos sobre a personalidade autoritária” (2019), Adorno e seus seguidores tentam explicar a adesão a políticas e ideologias autoritárias com base em estruturas psíquicas construídas no processo de socialização primária, especialmente a formação de um “eu” fraco. Na estrutura do argumento, os atributos autoritários da personalidade são claros e a tal ponto bem fixados que não deixam quase nenhuma margem para redefinições e redirecionamentos políticos a partir da mesma base de socialização primária. Quem possui uma personalidade autoritária praticamente não tem salvação, pois a política não é capaz de oferecer alternativas que consigam disputar os corações e mentes destas pessoas com as alternativas autoritárias. A única saída é modificar as próprias estruturas da socialização primária. Para quem já foi condenado ao autoritarismo, só resta impedir que haja uma oferta autoritária capaz de dar vazão as tendências autoritárias que definem a personalidade. O determinismo sociológico e o estruturalismo vulgar desta abordagem são marcas da fracassada teoria crítica de Adorno. Walter Benjamin, ao contrário, tinha visão bem distinta: entendia que o sucesso do fascismo não se devia primeiramente às tendências autoritárias formadas na socialização primária, mas sim ao fracasso da esquerda em disputar os corações e mentes destas pessoas com a extrema-direita.
2) O determinismo sociológico e o estruturalismo vulgar são muito atraentes: proclamar o fatalismo é um caminho sedutor para quem não consegue pensar a contingência e a indeterminação da vida social e política. Ao fim e ao cabo, este fatalismo resulta na mesma ladainha moralista do senso comum de esquerda: eleitores de Bolsonaro, Le Pen e Trump são autoritários incorrigíveis. No caso dos eleitores de Bolsonaro, generalizou-se um argumento moralista que atribui uma “política do ódio” como desenvolvimento necessário da personalidade autoritária. Como consequência, quem quiser ter o voto deste eleitor teria que apelar a mesma “política do ódio”, única capaz de mobilizar verdadeiramente personalidades autoritárias. Por isso, quando um político como Ciro Gomes busca disputar os eleitores bolsonaristas, ele é acusado de enveredar necessariamente pela mesma tendência autoritária protagonizada por Bolsonaro. Para o determinismo sociológico e o estruturalismo vulgar da tese da personalidade autoritária, o eleitor não possui indeterminação e contingência, ou seja, não tem possibilidade de aderir a diferentes ofertas e alternativas políticas. Ele já está definido e perdido. Daí que, identificando a personalidade autoritária com a masculinidade, a filósofa petista Marcia Tiburi, conselheira de Lula em temas comportamentais, sugira a exclusão política dos homens como única alternativa segura para enfrentar Bolsonaro.
3) Para compreender e enfrentar fenômenos autoritários como o bolsonarismo precisamos nos livrar do determinismo sociológico e do estruturalismo vulgar que orientam teses como a da personalidade autoritária. Na verdade, determinismo e estruturalismo são sintomas de falta de sociologia, pois a vida social não é nem determinista nem estruturada de modo fixo. Contingência e indeterminação são partes de todo fenômeno social: tudo que é pode ou poderia se configurar de outro modo. O eleitor não é autoritário por causa de sua socialização primária. Ele pode se tornar autoritário em razão da dinâmica e da estrutura de ofertas políticas. Os traços autoritários devem ser vistos como manifestações contingentes de frustrações e descontentamentos com o sistema político e as alternativas políticas dominantes, incapazes de encaminhar soluções para problemas concretos como miséria, violência e serviços públicos de má qualidade. A rebeldia antisistema é, por exemplo, outra manifestação possível para esta frustração. E ela pode ser potencializada pela oferta política. Em resumo: o bolsonarismo só pode ser enfrentado se for compreendido por uma sociologia de qualidade – não determinista e não estruturalista – que reconheça a autonomia do sistema político e das ofertas políticas como variáveis que garantem a contingência e a indeterminação das práticas e opiniões políticas. Adorno só atrapalha nesta dupla tarefa, e o caráter infecundo de sua obra já deveria bastar para nos convencermos de que a tese da personalidade autoritária é falsa sociologicamente e fatalista politicamente. Disputar o eleitor bolsonarista é um imperativo político de quem aposta na inteligência.
Referências:
ADORNO, Theodor. W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

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    Roberto Dutra

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