Arthur Soffiati - Destruição secular da bacia do Paraíba do Sul
Arthur Soffiati - Atualizado em 13/04/2022 18:52
Foi a economia de mercado que destruiu os rios brasileiros. Os povos nativos da América tinham economias que dependiam intrinsecamente da natureza. Inconscientemente, águas, matas e fauna eram protegidas, sem correr o risco de destruição. Forçoso é reconhecer que a chegada dos europeus à América, no final do século XV, iniciou a destruição. Ela prossegue nos dias que correm, apesar de todo o discurso sobre os riscos que a humanidade enfrenta caso a destruição continue.
Particularmente, a bacia do Paraíba do Sul ilustra essa destruição. O domínio da Mata Atlântica, no sudeste do Brasil, foi o mais afetado. De 100% de floresta, restaram apenas 10%. As formações vegetais nativas da bacia do Paraíba do Sul foram removidas quase que totalmente, sobretudo junto às margens. Desejavam-se as terras que estavam sob elas para agricultura, pecuária, mineração, indústria e cidades. Desprovidas de vegetação nativa protetora, as margens sofreram muita erosão. A terra erodida correu para dentro dos rios. Suas águas ficaram turvas. Passaram a ter coloração ocre. Os sedimentos em suspensão depositaram-se no fundo e provocaram assoreamento. Os rios ficaram rasos.
As cidades ergueram-se, em sua maioria, às margens dos rios da bacia. Até o século XIX, os rios eram valorizados pela água que forneciam e pela navegação, como mostra Gilberto Freyre em “Nordeste” (Rio de Janeiro: José Olympio, 1961). Aos poucos, as cidades foram virando as costas para os rios. Eles continuaram a fornecer água para o abastecimento público, mas foram deixando de ser navegáveis e passaram a receber esgoto das casas e das fábricas. Os rios tornaram-se poluídos por sedimentos, produtos químicos e micróbios. A poluição se tornou crônica, com eventos agudos causados por acidentes em fábricas e mineração.
O grande acúmulo de água no final do rio Paraíba do Sul foi progressivamente lançado ao mar. Esse grande volume líquido provia o curso final do rio de água doce e detinha o avanço da língua salina, como demonstrei no artigo “A grande transformação da planície do norte do Rio de Janeiro (1933-1990)” (AMBIENTES. Volume 3, Número 1, 2021). Mas a drenagem dessa imensa área úmida, a maior da capitania, província e do estado do Rio de Janeiro, começou no final do século XVII. O capitão José de Barcelos Machado, um grande produtor rural, abreviou o curso do rio Iguaçu, ao sul da lagoa Feia, abrindo a vala do Furado. O volume de água escoado para o mar era imenso, mas a vala se fechava com a força das correntes marinhas uma vez diminuída a vazão. Os jesuítas e seus escravos mantinham esse sistema de drenagem durante as chuvas. No século XIX, abrir canais de navegação representava progresso. Quatro foram construídos no Norte Fluminense: os canais de Cacimbas, do Nogueira, da Onça e o famoso Campos-Macaé. Quando a moda passou, eles foram abandonados.
Mas a grande transformação começou no fim do século XIX, com a substituição dos pequenos engenhos de açúcar pelas grandes usinas. Era necessário ampliar a produção de cana para abastecer as moendas. Era preciso terra para plantar, e a terra estava embaixo d’água. Era preciso drenar as lagoas definitivamente. Vários projetos de drenagem foram formulados. O que vingou foi o do engenheiro campista Saturnino de Brito, aplicado com adaptações pela Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense a partir de 1935 e levado adiante pelo seu sucessor, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS).
Considere-se também que o rio Paraíba do Sul e seus afluentes foram barrados por represas para a geração de energia elétrica e reservação de água. A que causou maior impacto ao rio foi a represa de Santa Cecília, para transpor água do Paraíba do Sul para o rio Guandu, a fim de abastecer a grande cidade do Rio de Janeiro. O Paraíba do Sul perdeu 2/3 de sua vazão com essa transposição e se dividiu em dois. Somadas às sangrias feitas na bacia e ao desmatamento, as transformações descomunais ao logo de todo o sistema reduziram a capacidade do rio de manter sua barra aberta para o mar. A manutenção da abertura já era problemática antes das grandes intervenções na bacia. Tornou-se mais problemática com a transposição. Além de tender ao fechamento, ela enfrenta o avanço do mar e da língua salina.
Agora, um projeto de lei na Câmara do Deputados passa a considerar as regiões Norte e Noroeste Fluminense como semiáridas. As regiões não são naturalmente secas, como na Caatinga. Elas ficam no bioma Atlântico e eram muito úmidas. A aridez é o resultado de um desmatamento e uma drenagem seculares. Se os recursos financeiros fossem destinados à restauração e revitalização parciais das regiões, seria uma notícia bem recebida pelos poucos que pensam no futuro. Mas ele vai se destinar a socorrer os produtores em eventos climáticos severos. O chefe do clã Garotinho buscou o rompimento com a aristocracia rural valendo-se dos royalties do petróleo. Agora, seus filhos buscam novamente essa aliança completamente anacrônica. Em vez de compensar o CO2 lançado na atmosfera e recuperar os ecossistemas destruídos, os ruralistas vão aprofundar ainda mais a destruição ambiental criando possibilidades para a corrupção. Guardem esses alertas.

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