Arthur Soffiati - 3/4 de século: as fases de uma vida (final)
Arthur Soffiati 02/03/2022 17:14 - Atualizado em 02/03/2022 17:44
Eu mesmo dividi minha vida em fases. Não foi um um inexistente biógrafo. Certamente, ninguém discordará do que eu escrevo, pois se trata da minha visão sobre minha trajetória nesse mundo. Ao morrer, serei logo esquecido. Assim, com a aposentadoria, no início de 2011, começa, segundo meu critério, a quarta fase da minha vida, que se estende até o momento, nesses três quartos de século que acabo de completar.
Foi uma vida sem muitas grandezas e baixezas. Vida mediana, vivida em vários lugares e ancorada por 50 anos em Campos. Sonhei ser maestro, compositor, escritor, cientista etc. No máximo, escrevo sem a preocupação de produzir uma obra significativa.
Foi assim: a partir dos 16 anos, desejei estudar e escrever. Querendo muito, acabei confuso. Aos poucos, minhas ideias foram se definindo. Minha vida, estabeleceu limites para mim mesmo. Durante 40 anos de magistério, fiz planos. Elaborei projetos. Consegui levar adiante alguns. Publiquei livros. Nada de importante. Minha profissão foi boa, posto que me restringisse bastante. É monótono e cansativo elaborar e aplicar provas assim como avaliar e entregar resultados. As reuniões eram muito monótonas para mim. Eu detestava fechar diários. Sei que a burocracia aumentou. No máximo, eu passava notas para boletins e os entregava à secretaria. Hoje, o professor deve cuidar de tudo.
A aposentadoria veio como uma forma de libertação dessa parte burocrática do magistério. Representou libertação também para levar meus projetos adiante. Passei, então, a lidar com as limitações que a vida impõe. É preciso cuidar da saúde física e mental. É preciso prolongar a vida.
Meus projetos engavetados foram retomados. Consegui me firmar na linha de história ambiental que valoriza a paisagem como documento. Formado em história, da graduação ao doutorado, valho-me de mapas, fotos, documentos escritos etc. Enfim, de tudo que um arquivo pode me proporcionar. Mas não me contento com o conforto e com as facilidades oferecidas pelos arquivos. Saio para o campo a fim de examinar terrenos, estruturas geológicas, rios, lagoas, vegetação, fauna etc.
A segunda opção que fiz como historiador ambiental refere-se à escolha de uma região para estudos. Eu gostaria de ser volúvel como foram e são alguns historiadores: hoje, estudo as tropas do período regencial. Amanhã, estudo as cantoras do rádio. Primeiramente, escolhi uma das quatro planícies fluviomarinhas do recorte chamado estado do Rio de Janeiro: a planície dos Goytacazes, a maior das quatro. Depois, busquei o território diretamente ligado a ela e estendi meus interesses para a área delimitada pelos rios Itapemirim e Macaé, embora em estados diferentes. A natureza é anterior a divisões administrativas impostas por europeus e europeizados. Terras, águas, plantas, animais e povos pioneiros do Brasil definiram fronteiras mais consentâneas com a natureza.
Terceiro, procuro relacionar o local com o global, ciente de que o local não se separa mais do global desde o século XV. Meus escritos levam em conta esses três princípios. Entendi que, só com fidelidade à certa teoria, metodologia e objeto, eu podia contribuir para o conhecimento. Hoje, recebo uma infinidade de artigos acadêmicos sobre a ecorregião que estudo e sinto uma sensação de insuficiência. Os recortes, os instrumentos de análises e a definição de objetos parecem artificiais. Usa-se muito a mente e muito pouco a sensibilidade e os sentidos. Valho-me muito de reflexões e dos cinco sentidos no ato do conhecimento. Escrevi muitos artigos acadêmicos por imposição da universidade. Os professores eram obrigados a isso pelo ditador currículo Lattes. Hoje, estou livre desse tirano. Escrevo artigos acadêmicos quando quero. Gosto mesmo de escrever artigos jornalísticos e livros, como os modernistas entre 1917 e 1945.
Artigos jornalísticos e livros exigem que eu escreva de uma forma que atinja um público maior que o acadêmico. Acho isso bom e ruim. É bom por sentir a sensação de ser lido por pessoas fora do meio acadêmico. Ruim porque poucos leem num mundo de redes sociais e por levantar ainda um preconceito naqueles que estão na academia. “Desde que Soffiati entrou no movimento ambientalista, militando junto a pescadores e pequenos produtores rurais, ele não é mais um dos nossos”.
Assim, envelheço ao lado de Vera, dos filhos e dos netos. Como escreveu Julio Ramón Ribeyro, “Quando não estou em frente à minha máquina de escrever, fico entediado, não sei o que fazer. A vida me parece desperdiçada; o tempo, insuportável. Que o que eu faço tenha valor ou não, é secundário. O importante é que escrever é minha maneira de ser”.
Nessa quarta fase da minha vida, a melhor de todas, devo registrar ainda o prazer de ser avô. É muito bom estar com crianças que aprendem a nos amar porque elas precisam amar. E amarão aqueles que estão mais próximos. Não levarão em conta as diferenças de idade. Brincarão conosco. O problema é que crescem. É sempre bom ter uma criança por perto.
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