A Enel em Campos dos Goytacazes: violação de direitos e expectativa de impunidade
Roberto Dutra 20/05/2022 11:36 - Atualizado em 20/05/2022 12:06
As reclamações sobre o fornecimento de energia feito pela Enel se multiplicam em Campos e em muitas cidades do Estado do Rio de Janeiro. Interrupções diárias no fornecimento do serviço se tornaram rotina não apenas em localidades rurais distantes, mas também nos próprios centros urbanos. Ontem duas Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) da área urbana de Campos dos Goytacazes (Parque Rodoviário e Eldorado) tiveram que suspender a vacinação contra a Covid-19 e o calendário de rotina de vacinação da criança e do adolescente em razão de oscilações no fornecimento de energia elétrica. O mesmo aconteceu na localidade de Lagoa de Cima. A empresa, como sempre, atribui a responsabilidade aos ventos, externalizando para a natureza toda sua responsabilidade pela falta de manutenção da infraestrutura de energia elétrica, utilizada pelo poder público para o serviço de iluminação pública.
Evidentemente que os fortes ventos podem ser a causa de muitos incidentes que levam à interrupção de energia. Mas basta observar com um pouco de atenção a infraestrutura de postes de muitas localidades para constatar que o efeito da natureza recebe a colaboração da própria Enel que decide não fazer a manutenção dos postes, muitos dos quais em estado de evidente putrefação. É esta situação que se pode observar na localidade de Pião, no distrito de Morro de Coco, município de Campos dos Goytacazes. Os moradores desta localidade relataram a este blogueiro que existem pelo menos 6 postes neste estado de putrefação alocados ao lado de residências ao longo da rua principal da localidade. Os postes são facilmente penetrados por qualquer objeto, dado ao estado putrefato em que se encontram. Possivelmente existem outros nesta mesma condição.
No último dia 10/05/2022, um poste nesta situação veio a baixo com toda a fiação de alta-tensão. Localizado entre duas residências, o acidente colocou em risco a vida dos moradores durante todo o dia. Acionada por um morador, a Enel só foi substituir o poste e soerguer os fios com eletricidade mais de 12 horas após ser informada. Durante todo o dia, a fiação de alta-tensão esteve em contato com cercas de arame farpado, amplificando ainda mais o risco para os moradores. Um cliente da empresa Enel, após acionar a empresa em nome de todos os moradores e registrar a ocorrência, procurou alertar os transeuntes sobre o perigo relativo à queda do poste e da fiação. No dia 13/05/2022, com informações sobre os demais postes em estado calamitoso, os moradores fizeram nova solicitação a Enel: desta vez para que a empresa venha substituir os postes e assim sanar o risco à vida dos moradores. Repetindo sua prática negligente com a queda do poste no dia 10/05, assim como em relação a inúmeros outros problemas no fornecimento de energia elétrica à localidade, a Enel não cumpriu o compromisso assumido e sequer enviou um técnico para verificar o problema. Nos dias seguintes, outras solicitações foram feitas. E o resultado foi a mesma negligência.
Em conversa informal, um técnico de uma empresa que presta serviço à Enel revelou aos moradores que a política deliberada da empresa é de somente substituir os postes que vierem abaixo. A prática negligente da empresa, que simplesmente ignora as demandas encaminhadas individualmente pelos moradores, parece confirmar esta política informal de violar direitos individuais dos consumidores privados de energia e direitos difusos dos moradores, afetados em sua segurança ao transitar pela rua com a rede de alta-tensão ameaçando desabar e no acesso ao serviço de iluminação pública. A necessidade de resguardar a segurança dos transeuntes na localidade corresponde a um direito difuso: a situação calamitosa dos postes que ameaçam cair afeta a todos que circulam pela rua principal da localidade. Além disso, a situação dos postes também produz danos à rede de iluminação pública administrada pelo poder público municipal, que utiliza os postes da Enel, para fornecer este serviço. Em sua decisão de considerar inconstitucional a cobrança de taxa de iluminação pública (súmula vinculante 41), o Supremo Tribunal Federal fixa a compreensão de que a iluminação pública é uma atividade estatal que se traduz em prestação de utilidade inespecífica, indivisível e insuscetível de ser vinculada a determinado contribuinte, ou seja, trata-se clara e inequivocamente de um direito difuso cujo titular é toda a coletividade. Com esta compreensão, os moradores da localidade de Pião enviaram, no dia 13/05/2022, ofício à Subsecretaria Municipal de Iluminação Pública solicitando que o poder público municipal exerça suas responsabilidades e prerrogativas na relação com a Enel no sentido de requerer que os postes sejam urgentemente substituídos de modo a reestabelecer 1) as condições de funcionamento do serviço de iluminação pública e 2) a garantia da segurança dos moradores e transeuntes. No ofício, seguem como anexo um conjunto de fotos atestando a situação putrefata dos postes, bem como sua numeração oficial. Como a prefeitura de Campos utiliza os postes da Enel e já foi devidamente informada sobre os danos e riscos acarretados pelo estado calamitoso destes postes, me parece plausível supor que o governo municipal está implicado em suas responsabilidades e prerrogativas, não podendo se omitir do esforço de fazer com que a Enel cumpra suas obrigações e pare de violar os direitos dos moradores e consumidores. Após informar oficialmente a prefeitura sobre a situação dos postes, muitos moradores decidiram acionar o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, através de sua ouvidoria.
A percepção generalizada entre os moradores é que, enquanto indivíduos/consumidores, estão todos impotentes, pois a promessa neoliberal do consumidor empoderado é refutada a cada contato com a Enel. Na semana em que avançou a privatização da Eletrobras não podemos deixar de lembrar os conflitos e contradições inerentes à prestação de serviços públicos realizada por empresas privadas. Por sua natureza, empresas privadas tomam o lucro como valor absoluto de suas práticas e tendem a violar todo direito que atrapalhe a maximização deste lucro, sobretudo quando podem contar com níveis consideráveis de impunidade. E é no dia a dia da violação de direitos que o sentido da privatização se revela. Na relação diária com uma empresa privada poderosa como a Enel, cidadãos se tornam subcidadãos sem direitos. Nem o direito à vida é respeitado. A assimetria de poder entre as partes é absurda e explica em grande medida a inefetividade da regulação estatal e do controle jurídico sobre a conduta da Enel. O cidadão isolado nada pode contra uma poderosa organização como a Enel. Para garantir seus direitos, só nos resta contar com outras organizações poderosas: o Ministério Público e o poder público municipal, diretamente interessado em fazer com que a Enel seja obrigada juridicamente a reparar a infraestrutura do fornecimento de energia elétrica, especialmente substituir os postes em situação calamitosa.



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