


Ana Magdalena Bach, mesmo vivendo em uma família relativamente estável, num casamento de cerca de duas décadas, com filhos encaminhados, se descobre na curiosidade de viver casos amorosos em viagens anuais no mês de agosto - quando visita o túmulo de sua mãe, que fora enterrada em uma ilha.
Sem considerar a história em seu sentido literal, penso no quanto a trama revela de uma humanidade hedonista pautada na descartabilidade das relações e na satisfação momentânea como motor das escolhas.
Entendo a família como a segurança do que a personagem conquistou ao longo da vida, a mãe falecida como um pretexto para se ausentar desse núcleo familiar marcado pela rotina e os casos extraconjugais como uma satisfação oculta que permite fugir da mesmice e garantir o viço da novidade.
Você pode preferir ver pela ótica do julgamento moral acerca da traição dentro do relacionamento, mas eu vejo essa obra como uma análise da necessidade de autodescoberta motivada pela insatisfação, pelo tédio ou pela mesmice. Ana não se entende por completo enquanto não percebe que pode ir além de seu casamento e de sua família.
E essa insatisfação - até então não percebida - a fazia infeliz. Muitas pessoas são capazes de se dizerem felizes dentro de uma rotina, ocupadas com as minúcias que compõem as agendas cheias - dentro e fora de casa -, mas Ana não era uma dessas pessoas, ou pelo menos passou a não ser ao longo da vida.
Ao nos apresentar uma personagem mais madura, Gabo dá a dimensão da passagem do tempo ao inseri-la numa lógica que me parece fazer muito mais sentido para as gerações mais recentes: a lógica de estar constantemente insatisfeito.
Sei que essa angústia é própria do ser humano e, mais ainda, motivadora de quase tudo que fazemos e queremos - o capitalismo sabe manejá-la muito bem, inclusive. Mas é inegável que o século XXI tem uma insatisfação vazia como sua marca registrada.
Nos nossos dias, muito disso se deve, é claro, às redes sociais, que são veículos de depressão em massa, com o bombardeio de informações que faz o indivíduo se sentir em constante comparação com o outro, que está sempre feliz, sadio e tem uma história para contar todos os dias.
Mas muito disso se deve, também, à forma como lidamos com o que está ao nosso redor. A insatisfação tem a ver com o quão descartáveis e voláteis estão as coisas. Algo nos diz que o novo é melhor e que precisa ser conquistado. De fato, a novidade é inevitável e, por vezes, até desejada, mas qual valor damos para o agora quando estamos sempre com a cabeça no amanhã?
Com a precisão de suas palavras e com a beleza de sua narrativa, Gabo esmiúça as emoções de uma personagem que se descobre enredada nas artimanhas do destino traçado por sua mãe - ou que pelo menos usa isso como pretexto para sua autodescoberta sentimental.
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com



Faltou a consciência
para o poeta saber
que, na verdade,
era mais uma mercadoria
na estante da livraria,
mas uma mercadoria
que pensa que critica que fala que desassossega
Afinal o texto
é um conjunto
de repetições
do que o mundo
já viu
sendo vendidas
como se novas
Nada é inédito no conjunto de atualidades
E assim vivemos a ilusão
da novidade,
enquanto nos
estupefazemos
com aquilo que
já existe há quase
um século
Talvez sejamos
nós mesmos as
mercadorias que
queremos consumir
que queremos inventar
para então deglutir
O sol nasce
mal se dissipa
a caligem que
torna o céu fumê
e já consumimos
desde o tocar do
des(es)pertador
E assim seguimos
E assim comemos
E assim dormimos
esperando
o consumo final
Estilhaço
Destrilado
Descompasso
Destinado
Esperamos
compulsivamente
do cadafalso
ouvir o anúncio
do que iremos (ser)
consumir
Somos uma tendência
uma efemeridade
uma decadência
na descartabilidade
da existência
Somos moeda
sem lastro
Somos o lixo
que só se degrada
- ou tem consciência disso -
passados milhares de anos
em constante deterioração
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
**Este texto compõe a obra “poesia simulada: blefes, ironias e fake news", que está em pré-venda pelo site www.benfeitoria.com/poesiasimulada.


Meu pai me acompanhava nessa desagradável empreitada, e nós conversávamos para ocupar o tempo falando sobre qualquer assunto que não tivesse relação com exames ou consultas médicas.
Sem que eu me desse conta, sentou ao nosso lado um senhor distinto – camisa verde, maço de cigarro apoiado sobre a pasta de exames cardiológicos -, mas um tanto inconveniente.
Eu comentava com meu pai sobre as eleições municipais na capital paulista, especificamente sobre a notícia que atribuía o segundo lugar do candidato Guilherme Boulos a uma confusão de seus eleitores quanto ao número de seu partido, fazendo com que ele perdesse cerca de cinquenta mil votos.
Foi nesse momento que me dei conta da presença do paciente que poderia, dentre diversos assentos ociosos, não ter escolhido justo aquele ao nosso lado.
Ele resolveu interagir, primeiro questionando o que eu achava sobre o Boulos. Depois, querendo saber o que eu achava sobre o presidente Lula. Terminada a sabatina, ele já tinha uma conclusão. Olhou fixamente para mim e disse algo que, em todos esses anos, eu curiosamente não tinha ouvido – apesar de estar ciente da recorrência do termo:
-Então você é comunista!
Envaidecido diante da ignorância gritante dessa alcunha inédita para mim, resolvi usar meu direito de fazer ao menos uma pergunta:
-E o que é comunismo pra você?
Diante do que ouvi, de pronto, qual resposta decorada:
-É tudo isso que está aí.
Tentei, me esforcei, para considerar essa conceituação tosca, mas não suportei continuar a conversa com a pessoa que, em seguida, disse que a fonte do comunismo era a universidade pública.
Olhando para a memória desse momento, penso que o velhinho de aparência simpática, prestes a levar um esporro do médico pelo uso excessivo de cigarros, poderia ter me poupado de identificá-lo no extremo de sua ideologia cristalizada em meio àquela pequena multidão.

*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor. Atualmente, é presidente da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com


ali,
na treze de maio,
a caminho
do calçadão,
dia após dia,
ao sair da Faculdade
de Direito
de Campos,
um retrato vivo
se formava
em meus olhos
sob os toldos dos comércios
bastava olhar ao longe
para sentir
a mescla de
presente e passado
a Igreja Nossa Senhora
do Carmo,
ainda na treze de maio,
nem sempre notada pelos transeuntes
o prédio
da antiga
Joalheria Renne
de esquina, ao fundo,
logo depois do pelourinho,
no centro do boulevard
as fachadas históricas
ladeadas
competindo
com letreiros
faixas
cores
fios
carros
e, sobretudo,
as tantas gentes
que por ali transitam
diariamente
- com ou sem rumo -
quase sempre
sem erguer os olhos
para vislumbrar
a poesia histórica
se rareando
sob(re) as marquises


Sobre o autor
Ronaldo Junior
[email protected]Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.