Sensação de refazer
01/03/2025 | 15h42
Imagem gerada por inteligência artificial.
A íngreme encosta de panos estava sempre prestes a cair enquanto eu me via ao centro de um forte reforçado por cores que exalavam sabão em pó. Ao menor movimento, qual um gigante devastador, tudo mexia, ameaçando desfazer o trabalho de um dia inteiro. Era assim que eu acompanhava, ajudava, atrapalhava, o trabalho da minha mãe na véspera de uma viagem.
Olhos atentos em flagrante inquietação enquanto, em cima da cama, as pilhas de roupas dobradas se formavam e logo eram postas na mala. As mãos ágeis da minha mãe ditavam o ritmo de um dos serviços mais detestados por ela: fazer as malas.
Depois de crescido, já no centro dos afazeres, não tenho a mesma agilidade - nem a mesma precisão - que admirava em minha mãe. Eu dobro, desdobro, redobro, e a assimetria da peça mostra o quão vacilante é minha habilidade com os tecidos.
A sensação é de permanecer horas na mesma camisa, na mesma calça, até alcançar uma falsa perfeição inexplicável diante da banalidade de uma mala que logo será chacoalhada e revirada como se centrifugasse as roupas a seco.
Percebo no refazer um retrato do meu perecimento. É a vida que passa na peça de roupa dobrada. É o dente a ser reescovado. A louça novamente suja. O lixo a ser posto para fora. A gasolina que acaba a procurar um posto. A lâmpada que pisca exigindo troca. O cabelo que cresce à espera de uma tesoura. A conta que, sucessivamente, vence no mesmo dia todo mês.
A roupa e sua imperiosa necessidade de ser dobrada - para a mala ou para o armário - faz parte de um ciclo extenuante de busca pela conclusão que cisma em não acontecer. Fica só a sensação temporária do acontecido para, em seguida, reacender em obrigação.
Diante do cansaço, as passagens já sobre a mesa, olho as roupas separadas e me imagino jogado entre os tecidos para reviver a sensação de estar no forte com aroma de sabão em pó sob a proteção de não compreender o significado prático da palavra rotina.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com.
Escreve mensalmente no blog Extravio.
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A árvore que eu via da janela
29/12/2024 | 01h37
Imagem gerada por inteligência artificial.
Aconteceu abruptamente, sem cerimônias. Ela estava lá, frondosa, alta, com as raízes eclodindo pela calçada da vizinhança. A casa do velho de poucas palavras tinha sua entrada coberta pelas folhas, que ele fazia questão de juntar e queimar ao menos duas vezes na semana.
Amanheci com o encontro entre as serras e a madeira. Vários uniformes andavam pela rua separando os galhos para jogar num triturador que jorrava pedaços de árvore para todo lado.
Deve ser uma poda para evitar que os galhos caiam com o vento, era o que eu justificava. Mas o simples corte de galhos atravessou a tarde, deixando a árvore sem qualquer resquício de verde.
Dia seguinte, o trabalho seguiu. A árvore está, desde então, reduzida a um toco que mal serve de banco. Se foram a sombra, as folhas espalhadas, o farfalhar que anunciava qualquer mínimo vento, as pequenas flores brancas que choviam em certos dias do ano e o rangido – qual porta entreaberta em filme de terror – que ditava a saúde da madeira.
Por um momento, pensei no primeiro encontro do jornalista com a mulher da casa abandonada, narrado em podcast, e cheguei a idealizar que, ao contrário, o vizinho que varria as folhas seria um defensor da derrubada da árvore, mesmo não tendo, aparentemente, nada melhor para fazer além de varrer e incendiar folhas na sarjeta.
Não havia, porém, nada a ser feito. A árvore estava reduzida ao chão. Argumentariam, é provável, que a madeira estava podre, com risco de queda iminente. A árvore que compunha o mundo que eu compreendia através da janela, na verdade, valia muito menos que um poste erguido a cada tantos metros de calçada.
Aquela árvore arrancada vorazmente numa tarde do meio do ano representava uma violência incompreensível contra a paisagem. Exceto para o vizinho que se irritava com as folhas. Exceto para o pedestre que tentava trafegar pela calçada. Exceto para a própria calçada, deformada pelas raízes incertas. Exceto para a árvore, incrustada no meio da cidade, isolada entre asfalto e muro, obrigada a dividir sua existência com quem a considerava descartável.
A árvore foi extraída no meio de 2024, e, ainda hoje, eu olho pela janela e vejo um vazio, sem compreender espacialmente a rua onde moro, sem compreender a falta de importância, sem compreender que a árvore - a falta dela - atravessaria a forma como eu enxergo minha própria casa.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com.
Escreve quinzenalmente, aos sábados, no blog Extravio.
Aviso: Este blog retornará em fevereiro de 2025. Boas festas!
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Enquanto não
07/12/2024 | 14h01
Imagem gerada por inteligência artificial.
Clarão toma a rua. A fumaça começa, pouco a pouco, a invadir minhas narinas. Fecho as janelas. É provável que o vizinho incendiário esteja queimando lixo outra vez. Não ligo.
A claridade parece aumentar. Resolvo olhar pela janela. O fogo já toma parte significativa da árvore frontal à minha casa. Alguém vai fazer alguma coisa. Logo passa.
Na televisão, dezenas de focos de incêndio são registrados pelo país. Troco de canal. O que acontece em outra cidade não me afeta.
Ouço o vizinho gritar algo incompreensível. Após fingir que não escuto, dou ouvidos para me manter informado. O fogo alcançou o terreno baldio, ameaçando as casas ao lado.
Agora que as chamas já tomam o telhado da primeira casa, os bombeiros chegam para conter o avanço da queimada pela vizinhança. Alguém deve ter ligado.
Sinto calor. Ligo o ar condicionado enquanto observo o frenesi ganhar a rua. Luzes, gritos, clarão crescente. Coisa boa para um dia pacato nessa rua morta que quase não vê carro.
A árvore, escondida pelas chamas, parece não estar firme. Espreito como quem se delicia com um acontecimento inesperado, pensando no que virá a seguir. Os galhos desabam e tocam a rede elétrica. Ainda estou com luz, não vejo problema.
Abro o aplicativo. Peço uma pizza. O tempo passa. O interfone toca. Vejo que o caos ainda toma conta da rua. O fogo ainda clareia a noite. Como o homem se recusa a subir para trazer meu pedido, então preciso descer para pegar a comida. Aproveito para espiar os bombeiros, cercados pelos fofoqueiros que assistem ao derretimento do lado ímpar.
Do meu lado, nada de novo. Subo. Estou com fome. Sento no sofá e como metade da pizza de uma só vez. Depois, deixo o prato de lado e me espalho aqui mesmo. Acendo um cigarro. Controlo o fogo que queima lá fora entre dois dedos.
Pego no sono enquanto o fogo ainda não é problema meu.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve quinzenalmente, aos sábados, no blog Extravio.
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Somos mercado
23/11/2024 | 10h01

Imagem gerada por inteligência artificial.

 

 Faltou a consciência

   para o poeta saber

     que, na verdade,

     era mais uma mercadoria

              na estante da livraria,

              mas uma mercadoria

que pensa que critica que fala que desassossega


         Afinal o texto

         é um conjunto

         de repetições

         do que o mundo

                       já viu

                       sendo vendidas

                       como se novas


Nada é inédito no conjunto de atualidades


         E assim vivemos a ilusão

                         da novidade,

                         enquanto nos

                         estupefazemos

                         com aquilo que

                         já existe há quase

                               um século


                 Talvez sejamos

                 nós mesmos as

                 mercadorias que

                 queremos consumir

                 que queremos inventar

                 para então deglutir


       O sol nasce

       mal se dissipa

       a caligem que

       torna o céu fumê

       e já consumimos

       desde o tocar do

       des(es)pertador


                   E assim seguimos

                   E assim comemos

                   E assim dormimos

                       esperando

                       o consumo final


                    Estilhaço

                    Destrilado

                    Descompasso

                    Destinado


       Esperamos

       compulsivamente

                do cadafalso

                ouvir o anúncio

                do que iremos (ser)

                              consumir


        Somos uma tendência

                      uma efemeridade

                      uma decadência

                 na descartabilidade

                       da existência


       Somos moeda

                     sem lastro


       Somos o lixo

       que só se degrada

     - ou tem consciência disso -

       passados milhares de anos

       em constante deterioração


*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com

**Este texto compõe a obra “poesia simulada: blefes, ironias e fake news", que está em pré-venda pelo site www.benfeitoria.com/poesiasimulada.

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Como se pudesse voltar
02/11/2024 | 14h00
Imagem gerada por inteligência artificial.
No fundo da loja, largado pela força do vento que o levara, um envelope jazia no vão entre o armário e a parede.
 
Não fosse um armário daqueles que nunca são tirados do lugar, não fosse uma parede tão pouco requisitada a ponto de nunca ser vasculhada com esmero, talvez o esquecimento não fosse.
 
A pilha de correspondências recebidas era um amontoado de propagandas talões boletos carnês cartas bilhetes, todos em formatos papéis cores selos de diferentes tipos, deixados sobre a mesa, sob o vento que entra pela vidraça esquerda sempre que a árvore da rua range.
 
Papel perdido, informação pretérita. A briga ficou por isso. Um acusou. O outro não respondeu - exceto pelo envelope lançado pelo vento. O dito foi consumado pelo suposto não dito.
 
E a palavra escrita, não lida, esquecida, fez cristalizar as convicções, pois o silêncio, quando não acompanhado, é um intransigente catalisador de fissuras.
 
Suposições para cada lado, cada um tem certeza de que sabe quando tudo se perdeu - na lacuna diante da acusação ou na indiferença diante da resposta.
 
Como um pequeno traço escondido, capaz de resolver todo o enigma, a carta permanece irresoluta a amparar teias de aranha e tufos de poeira pouco a pouco inseridos naquele diminuto espaço, qual peças tétricas que se amontoam para contar a história de uma fase.
 
A carta, por mais fina que fosse, demarcava o afastamento provocado pela alegoria do destino. Para ambos os lados, melhor assim.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente.
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Como identificar os extremos
19/10/2024 | 14h01
Imagem gerada por inteligência artificial.
Na sala de espera de uma clínica, dentre todos os lugares disponíveis para sentar e aguardar, resolvi escolher o assento mais distante, não apenas para evitar interações indesejadas, mas também para conviver com a ansiedade pré-consulta que teima em aparecer nesses momentos.

Meu pai me acompanhava nessa desagradável empreitada, e nós conversávamos para ocupar o tempo falando sobre qualquer assunto que não tivesse relação com exames ou consultas médicas.

Sem que eu me desse conta, sentou ao nosso lado um senhor distinto – camisa verde, maço de cigarro apoiado sobre a pasta de exames cardiológicos -, mas um tanto inconveniente.

Eu comentava com meu pai sobre as eleições municipais na capital paulista, especificamente sobre a notícia que atribuía o segundo lugar do candidato Guilherme Boulos a uma confusão de seus eleitores quanto ao número de seu partido, fazendo com que ele perdesse cerca de cinquenta mil votos.

Foi nesse momento que me dei conta da presença do paciente que poderia, dentre diversos assentos ociosos, não ter escolhido justo aquele ao nosso lado.

Ele resolveu interagir, primeiro questionando o que eu achava sobre o Boulos. Depois, querendo saber o que eu achava sobre o presidente Lula. Terminada a sabatina, ele já tinha uma conclusão. Olhou fixamente para mim e disse algo que, em todos esses anos, eu curiosamente não tinha ouvido – apesar de estar ciente da recorrência do termo:

-Então você é comunista!

Envaidecido diante da ignorância gritante dessa alcunha inédita para mim, resolvi usar meu direito de fazer ao menos uma pergunta:

-E o que é comunismo pra você?

Diante do que ouvi, de pronto, qual resposta decorada:

-É tudo isso que está aí.

Tentei, me esforcei, para considerar essa conceituação tosca, mas não suportei continuar a conversa com a pessoa que, em seguida, disse que a fonte do comunismo era a universidade pública.

Olhando para a memória desse momento, penso que o velhinho de aparência simpática, prestes a levar um esporro do médico pelo uso excessivo de cigarros, poderia ter me poupado de identificá-lo no extremo de sua ideologia cristalizada em meio àquela pequena multidão.
Isso serviu para identificar um extremo. Quanto ao outro, só fui ver quando, já em casa, me olhei no espelho e, pela primeira vez, lembrei que viram em mim um comunista. Logo eu, tão avesso aos extremos. Tudo culpa da universidade pública.
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente.
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Ruas Inequívocas
24/07/2024 | 08h01
Ilustração de Ronaldo Araújo.
de uma rua pra outra
     do centro,
     transita
     a sensação de estar
        numa única
                  rota,
                  alinhavada
                  pela trama
                  geográfica
     de uma superfície
     entremeada pela
     interioraneidade
     das relações

       basta olhar a
       es
       trei
       te
       za
       da confluência das ruas
         - que sempre
                  retornam à fonte,
         sendo necessário
                    imenso esforço
              pra se perder por elas -

          mas há algo mais
          que salienta
     as notáveis banalidades
         das ruas do centro:

         um olhar atento
         pelos prédios que
            dão fundamento
            às passagens
            torna possível
                    a criação
               desimpedida
 das mais corriqueiras
      - e, por isso, belas -
                   ficções

    pois as ruas
    despertam,
    com a alma que
    as faz únicas,
    a substância
       indócil
       do ser

    por isso,
    passar pela Rua Carlos de Lacerda
    dobrar na Oliveira Botelho
    e desembocar na Treze de Maio
       com os olhos
               atentos
               ao que se vê
        cria vínculos
        intrincados
        com
     o que as ruas
        dizem
      - despalavradas -
        no próprio chão

             por outro lado,
             deixar-se despretenciosamente
                             pelas ruas
                 permite que os atentos olhos
                              das passagens
                                     absorvam
                        de cada alma
                              algum
                              fluxo

     basta passar pela
rua Governador Teotônio Ferreira de Araújo
              - outrora rua da Quitanda -,
                repleta dos trajetos,
                das histórias,
                dos lampejos
          vividos ao longo dos anos

              para sentir que a rua
                      tem muito para contar

                      ainda mais
              com os livros e cafés e debates
                      da livraria
                    - verde flâmula -
                      mais antiga do país,
                      que se torna ainda mais
                            nostálgica e
                            memoriosa
                            com as histórias
                            do professor
                            Fernando da Silveira
                                e seus entusiásticos
                                   seguidores

                 esse elo
                 entre homem
                          caminho
                       e memória
                 é a mais pura identidade
               - diz a filosofia
                          oculta
                     no asfalto

*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor. Atualmente, é presidente da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
*Este texto foi originalmente publicado no livro “Muros impalpáveis – Recorte poético da cidade de Campos” (edição do autor, 2021), que pode ser lido integralmente no código QR abaixo.
*Texto publicado na edição de hoje (24/07) da Folha da Manhã, na Coluna Folha Letras, no caderno Folha Dois.
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Retrato feito da calçada
19/06/2024 | 10h01
Foto: Ronaldo Junior (2018)

 

     ali,
     na treze de maio,
     a caminho
     do calçadão,
     dia após dia,
ao sair da Faculdade
             de Direito
             de Campos,
       um retrato vivo
       se formava
       em meus olhos
sob os toldos dos comércios
 
     bastava olhar ao longe
          para sentir
          a mescla de
   presente e passado
 
         a Igreja Nossa Senhora
                  do Carmo,
         ainda na treze de maio,
nem sempre notada pelos transeuntes
 
      o prédio
      da antiga
      Joalheria Renne
      de esquina, ao fundo,
      logo depois do pelourinho,
              no centro do boulevard
 
      as fachadas históricas
      ladeadas
                         competindo
                         com letreiros
                                   faixas
                                   cores
                                   fios
                                   carros
 
       e, sobretudo,
  as tantas gentes
que por ali transitam
        diariamente
      - com ou sem rumo -
 
       quase sempre
                  sem erguer os olhos
                           para vislumbrar
                           a poesia histórica
                  se rareando
                  sob(re) as marquises

 
Ilustração: Ronaldo Araújo (2021)

*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor. Atualmente, é presidente da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
*Este texto foi originalmente publicado no livro “Muros impalpáveis – Recorte poético da cidade de Campos” (edição do autor, 2021), que pode ser lido integralmente no código QR abaixo.
*Texto publicado na edição de hoje (19/06) da Folha da Manhã, na Coluna Folha Letras, no caderno Folha Dois.
 
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Depois da curva, o esquecimento
09/03/2024 | 14h00
Fonte: Pixabay.
Virou a esquina justo naquele instante.
 
Pé brusco no freio, impacto contra o volante, olhares desesperados, estrondo no chão.
 
O prédio que caía no meio da rua poderia ter caído sobre seu carro. Poderia, sob os escombros esquecidos, ter virado apenas um pedaço de tijolo ou concreto ou madeira ou janela. Uma coisa que se mistura para erguer uma construção.
 
Mas estava ali, pensando no que poderia ter acontecido no relance instantâneo do que passou, ainda na névoa poeirenta que vendava a rua, com o estrondo que se dispersava, mas que permanecia a ecoar pelos arredores encobertos.
 
Caiu a história de uma família. Caiu um pedaço do centro da cidade que era também centro de negócios e memórias e interesses e atenções e trajetos. Caiu um pedaço - caco sobre caco - dos tantos prédios que formam a cidade. Caiu mais que um tijolo, uma viga, uma janela carcomida. Caiu uma história inteira que só o Google Maps vai contar, congelado no tempo passado, borrando rostos e placas, como se aquele prédio fosse uma espécie de realidade virtual, dessas efêmeras que passam quando rolamos o feed.
 
Pessoas se amontoavam para fotografar. Sensacionalistas filmavam para compartilhar nas redes sociais. O prédio caído era, antes de memória, um clique passado. Desses que esquecemos depois de clicar.
 
Atrás, o trânsito começava a ficar tumultuado. Carros se enfileiravam enquanto pessoas saíam para ver o que estava acontecendo imediatamente após a curva. Mas aquele primeiro carro permanecia na perplexidade, imóvel, como se tivesse sido atingido pela memória de quem colocou suor e força para construir a obra decadente.
 
Dois guardas surgiram para tentar organizar o que se passava. Começavam a afastar os curiosos, com medo de um novo desabamento. Tudo dependia de laudos, inspeções, palavras da defesa civil, fechamento da rua para retirada dos escombros, interdição da área para avaliação dos prédios laterais.
 
Passada a perplexidade do solavanco, um pensamento prático. Não perdi nada com isso, não era meu. Deu de ombros enquanto subia com o carro na calçada indicada pelo guarda e ia seguir sua vida. Deixava ali, porém, um importante capítulo da casa que não perdera só porque não habitava.
 
Mas o esquecimento, talvez ignorasse, também é uma forma de perda.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve mensalmente no blog Extravio.
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Arredores
27/01/2024 | 14h00
Fonte: Pixabay.
Aqui, detrás desses painéis que não te permitem me enxergar, dou as últimas pinceladas nas imagens para as quais pretendo olhar pelo resto dos meus dias - não que sejam muitos, mas são tudo que tenho.
 
Aproveitei para, numa pausa entre a observação e a mistura de tons, relatar o que faço como forma de explicar para mim mesmo os anseios por trás dessa que já considero minha principal obra.
 
VanGogh pode ter retratado a si mesmo, Michelangelo pode ter expressado a divindade, Picasso pode ter dado forma ao indizível, mas eu pinto para compor o que desejo vivenciar.
 
Não me refiro à imaturidade de pintar meus desejos ou paixões juvenis. Já passei disso há anos. Na verdade, falo de pintar minhas ficções pessoais, com as quais convivo e nas quais acredito a cada amanhecer.
 
A ideia de me dedicar a isso surgiu quando passei um tempo na casa do meu irmão, podendo olhar de perto a rotina da família e, em especial, do meu sobrinho mais novo. Parei para ter uma conversa com ele, saber de suas questões particulares e de sua formação, ter um contato com a juventude, mas fui surpreendido com uma realidade paralela.
 
Ele, assim como o restante da família, tinha uma perspectiva distorcida de acontecimentos históricos, descobertas científicas e até mesmo de fenômenos da natureza. Suas convicções chegavam a níveis de creditar fatos singelos ao divino ou mesmo explicar coincidências com teorias conspiratórias.
 
Faz alguns meses, saí de lá para procurar um canto e viver sozinho. E fiz isso convicto de que algo faltava em minha vida. Passar quatro décadas me dedicando a ilustrar, pintar e projetar murais fez com que eu nunca olhasse para o que havia de cor dentro de mim.
 
Se bem que, devo dizer, eu me encontrava simbolizado em cada pincelada que dedicava durante os meses de execução de um trabalho. Mas nunca tive algo meu, voltado para mim. Então resolvi fabricar meu próprio ópio, modelar a ficção absurda com a qual convivo em meus pensamentos e dar, enfim, uma explicação para tudo que fiz até hoje.
 
Aluguei este cubículo que me leva quase toda a aposentadoria e dediquei os últimos meses a idealizar o meu lugar nos painéis que agora me cercam. Penso, olhando agora, que pintei uma espécie de deserto, no qual sou eu mesmo o escaldar do sol e o refletir da lua, sou o centro.
 
Estou cercado de uma imensidão que pode ser infinito vazio ou abastado preenchimento, depende do dia em que observo. Nunca pisei num deserto nem nunca me detive a pensar em um, mas não havia outro motivo para esses painéis que não fossem tornar acessíveis os grãos de areia - ora cortantes como vidro, ora macios como flocos de espuma - que eu trazia em mim.
 
E assim, a partir dessa mensagem que escrevo antes mesmo de concluir as pinceladas, explico por que me isolei de todos e resolvi viver na misantropia da reclusão: tenho um deserto inteiro a percorrer todos os dias, às vezes em jejum, às vezes em um oásis. Foi essa a realidade em que escolhi acreditar e, nela, você me encontra enquanto lê estas palavras.
 
Você já encontrou a sua?
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
A partir de 2024, escreve mensalmente no blog Extravio.
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Sobre o autor

Ronaldo Junior

[email protected]

Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.