O Festival Doces Palavras é um movimento cultural, mas também é um movimento de protesto - sua sigla não nega esse espírito crítico que pulsa desde a idealização seminal do FDP!.
Mas, para pensar sobre a importância desta sexta edição do nosso Festival, não quero falar de cultura, de identidade, de memória nem de representatividade. Quero falar sobre... gatos.
Não, eu não estou equivocado quanto ao tema. Definitivamente, não se trata de um simpósio veterinário sobre a vida de felinos indefesos, pelo contrário. Trata-se de uma reflexão que surge de uma expressão muito falada em nosso cotidiano.
Qual será o potencial de meia dúzia de gatos pingados? Para ser mais temático, eu preferiria gatos chuviscados, mas não quero perder a linha de raciocínio.
"Gatos pingados" é uma expressão que usamos para retratar, por exemplo, um grupo insignificante de pessoas, reunidas ou dispersas, mas que certamente não possuem qualquer influência ou relevância para mudar determinada realidade.
Será mesmo?
Lembro, em 2014, naquela Bienal do Livro de Campos, quando o saudoso utopista Hélio Coelho - com quem tanto aprendi - e o caríssimo utopista Vitor Menezes - com quem tanto aprendo - firmaram compromisso com Wainer Teixeira, então representante do poder público, a fim de realizar o primeiro FDP! no ano seguinte.
Aqueles gatos pingados se uniram para fazer um movimento ousado. Juntar a cultura literária e a cultura gastronômica de Campos para conceber algo feito por campistas e para campistas. Loucura. E, hoje, iniciamos a sexta edição do FDP!, não sem o espírito combativo que forjou o Festival.
Mas volto aos gatos pingados, tema central deste texto: o que seria de nossa sociedade sem eles? Um pequeno grupo que se debruça sobre utopias, muitas vezes, é capaz de dar significado e até mesmo concretude a elas.
Sem os gatos pingados, ficaríamos sempre nas mãos de felinos outros, que pensam serem donos do mundo apenas porque conseguiram uma pequena e temporária fatia de poder. Tolos.
Mal sabem que os gatos pingados, justamente por sobreviverem de suas próprias utopias, firmam suas patas nos sonhos e não arredam pé até conseguir. São insistentes esses bichos. “São”, não: somos insistentes.
Isso porque não há espaço para omissos nessa gataria. A realidade não nos permite deixar que uma falta de verba, uma ausência de cachê, um planejamento inexistente, uma desculpa esfarrapada forrada com palavras burocráticas ou mesmo a falta de vontade dos outros faça esmaecer o sonho. Pelo contrário: sonhamos mais alto. E nos agregamos ainda mais com tudo isso.
Quem diz que meia dúzia de gatos pingados é insignificante certamente não ouviu os miados insistentes na madrugada ou não imagina a agilidade com que podemos agir diante de injustiças.
Nosso grupo de aparentemente frágeis gatos pingados, que, até domingo, ocupará o Palácio da Cultura - abandonado há mais de 10 anos! -, nunca teve uma briga fácil, pois raramente possui qualquer pedaço de poder. Restam-nos, vira-latas, as migalhas que deixam cair os que se pensam poderosos.
Mas, das migalhas, fazemos um banquete, tanto que o FDP! não deixou de acontecer nem mesmo quando, em 2019, viraram as costas para nós às vésperas de nossa terceira edição.
Esta sexta edição chega com a urgência da sétima, pois cultura se faz com planejamento e com os olhos voltados para o que virá dando a devida importância ao que já passou. Isso quer dizer que não se faz um Festival do dia para a noite como quem tira um coelho da cartola (ou melhor... como quem tira um chuvisco do pote!).
Cultura se faz com métodos e políticas públicas estruturantes, o que exige empenho, boa vontade e pessoas qualificadas. E aqui estou eu, novamente, me desviando do tema deste texto.
Os gatos pingados que estarão no Palácio da Cultura a partir de hoje querem que você, leitor, faça parte do bando, pois, quanto mais gatos, melhor para fazer barulho ao pular de telhado em telhado enquanto pensam que somos apenas uma meia dúzia inofensiva.
Convido você a ocupar o Palácio da Cultura na sexta edição do Festival Doces Palavras, que começa neste dia 05 de novembro. E aproveito para dizer: a pré-produção da sétima já começou. Que venha 2027!
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com.
É parte da minha rotina verificar se deixei espaço suficiente na porta entreaberta para garantir a passagem da pequena Jolie, uma Yorkshire de pouco mais de trinta centímetros – com peso pena de dois quilos e meio – que é a dona do quarto, quiçá da casa onde eu moro.
O vão da porta tem pouco mais de um palmo, largura suficiente para ela atravessar a abertura com sua corpulência de camundongo sem tocar os pelos na madeira da porta.
Ao contrário, ela tem a estranha certeza de que não consegue entrar. Já a observei deitada perto do alizar da porta aguardando alguém que lhe desse passagem, pois aquela não seria suficiente. Isso quando não resmunga para que alguém a perceba mais rápido.
É o estranho caso da cachorrinha que, de tão pequena a ponto de caber em qualquer lugar, se julga grande demais para os espaços que frequenta. Daí cunhei, obviamente baseado no termo rodrigueano, que ela possui o complexo de labrador, quase uma megalomania que a impede de seguir adiante, pois é grande demais para isso.
Por minha falta de noção espacial, compreendo e até me vejo na pequena dona do meu lar, mas não posso deixar de correlacionar esse complexo com a vida real.
Há quem se julgue bom demais para competir com alguém; há quem se pense autossuficiente a ponto de cavar um fosso ao redor de si; há quem se ache gramático a ponto de dizer que “fulano escreve errado”, mas segue usando vírgula entre o sujeito e o verbo; há quem se sinta intocável porque tem proximidade com alguém que ocupa momentaneamente o poder; há quem se rotule dono do mundo inteiro por ter sido eleito para governar um país.
Você pode observar uma aparente contradição nesta teoria furada pelo fato de os labradores serem reconhecidos por sua docilidade e por seu companheirismo quando se relacionam com os humanos. Mas não se engane: o termo utilizado tem a ver com a corpulência típica da raça e com o fato de, diferentemente dos chamados vira-latas (cães sem raça definida), terem uma linhagem que lhes atribui alguma superioridade – pelo menos aos olhos dos humanos.
Sensato ou não, o Complexo de Vira-latas (cunhado pelo Profeta Tricolor em 1958) e o Complexo de Labrador são definidos pelo enorme vão entre quem sou e quem penso que sou, sobretudo em relação ao outro. E isso é uma construção cultural – quando se fala de nacionalismo – ou mesmo subjetiva – quando se trata de autoestima –, sendo ambas entrecruzadas na biografia do indivíduo.
No fim das contas, pendula entre a humildade e a megalomania o bom senso que cada um julga ter. Eu, por exemplo, escrevo achando que sou lido. Não venha me julgar – caso me esteja lendo –, pois tenho o direito de alimentar minhas próprias utopias.
Agora, terei que repousar a caneta. Tem uma microlabradora na porta querendo entrar.
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
Só no último domingo, 07 de setembro, quando a primeira temporada da comédia musical "Ponciano de Amores Furtado" se encerrava, tive a oportunidade de ir ao Teatro de Bolso Procópio Ferreira para, da primeira fila, presenciar e aplaudir de pé esse espetáculo baseado na obra de José Cândido de Carvalho.
A querida e admirável autora Arlete Sendra e o também admirável diretor Fernando Rossi - ambos acadêmicos da ACL - levaram ao palco do Teatro de Bolso a leveza dos causos contados à porta de casa, com fidelidade ao linguajar meticulosamente retratado por José Cândido em seus contos, crônicas e romances.
O Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, vivido pelo primoroso Pedro Fagundes, é pura hesitação e casmurrice para demonstrar um coronel que só sabe fazer alarde da honra que herdou do avô Simeão.
Os demais integrantes do elenco - Katiana Rodrigues, Liana Velasco, João Velasco, Nathan Silva, Valdiney Mendes, Luciana Rossi, Almir Júnior, Geovane Crisóstomo, Renato Arpoador e Vânia Navarro - dão o tom de uma comédia que apresenta o Coronel por si mesmo e pelos olhos dos outros, com a imagem contrastante entre o que sente e o que mostra para os que o rodeiam.
A trama, delineada em torno das histórias causídicas de Ponciano, é cantada em diferentes ritmos, que ficaram a cargo do músico e compositor Renato Arpoador – que fez uma luxuosa parceria com a autora, Arlete Sendra, e, para a música de abertura, com Gualter Torres -, contando com execução do próprio Renato, da multifacetada Katiana Rodrigues e da instrumentista Vânia Navarro, que dão cadência ao andamento da história de acordo com o passar dos acordes.
Voltando à trama, considero que o ponto alto da peça se dá com a presença do advogado e político frustrado Pernambuco Nogueira - vivido pelo hilário Almir Júnior - e sua esposa Esmeraldina - vivida pela talentosa Katiana Rodrigues. O casal arranca ótimas risadas da plateia ao fazer críticas ácidas à política campista enquanto a esposa do candidato se insinua para Ponciano, de olho em suas posses.
Outro destaque é o figurino assinado por Luciano Moreira, que já demonstra seu preciosismo desde a entrada dos três músicos - trajados de acordo com Mouros e Cristãos da tradicional Cavalhada de Santo Amaro -, algo que se estende ao elenco e se evidencia nos figurinos de Ponciano, sendo um deles pintado à mão pela artista Andréa Barcelos.
A ficha técnica conta, ainda, com cenografia de Vanderlei Machado, fotografia de Patrícia Bueno, iluminação de Marco Antonio Almeida e produção executiva de Aucilene Freitas.
Ao expor as fragilidades da vida de aparências de Ponciano, Arlete Sendra nos instiga, com veia cômica afiada, a repensar os hábitos do povo de nossa planície, a hipocrisia de quem fala uma coisa e vive outra e os impactos psicológicos dessas contradições.
A autora, sem dúvidas, enriquece o texto de “O Coronel e o Lobisomem” ao trazer à tona sua leitura sobre a solidão amorosa do protagonista, mantendo a riqueza linguística popular e a precisão geográfica contidas na obra, que é um passeio pela Baixada Campista.
A peça, é importante dizer, contou com verba da Lei Paulo Gustavo, que viabilizou a execução de um espetáculo de tamanha qualidade com preços populares.
Ressalto que não sou técnico em teatro, mas, por ser um apreciador dessa arte e por trabalhar com literatura, saí do Teatro movido a escrever este texto com impressões sinceras de um espetáculo que merece ser divulgado Brasil afora.
Para quem não pôde comparecer na primeira temporada da peça, fique sabendo que a próxima apresentação ocorrerá no domingo, dia 21 de setembro, às 18h, na Santa Paciência - Casa Criativa, localizada na Rua Barão de Miracema, 81, no Centro de Campos.
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
**Texto publicado na coluna Folha Letras do dia 10 de setembro de 2025.
Logo depois de vender seriedade, gargalhou. O barulho da risada gorgolejante rompeu a sobriedade com que o público formava suas ficções mentais, mas deixava no ar a dúvida de quem era a figura a gargalhar. As roupas expressavam que quem as vestia tinha algum tipo de preocupação estética, assim como os cabelos - milimetricamente penteados - fio a fio divididos no alto do cocuruto. Via-se triângulo retângulo, mas queria mesmo era ser escaleno. Então a risada desleixada repartia a formalidade em uma imagem dúbia e, ainda assim, categórica. Porque, antes de si, a imagem era uma convenção do outro, uma espécie de contrato a partir do qual se cria uma série de expectativas de ações desaforadas, que se encontram fora de quem é, mas dentro da imagem estampada, vendida como pôster a ornamentar o rol dos julgamentos mentais. Então silenciou a gargalhada, retirou de cena o sorriso, e todos ao redor voltaram a crer que se tratava de uma figura respeitável, que o riso - tão próximo da primitividade simiesca - era algo pontual no emergir das ideias. Só então continuou, olhos sérios, vidrados nos ouvidos atentos, e resolveu quebrar a quarta parede tijolo por tijolo levantada entre quem era e quem pensava ser. Em frente ao espelho, notou que construía sua própria imagem diante do outro que havia em si.
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com.
Você acorda com uma disposição incomum, resolve sair de casa mais cedo para tomar um café na padaria da esquina enquanto vê as pessoas passando de bicicleta rumo ao dia inteiro. Café acabado, caminho do trabalho. Quando nota, já é hora do almoço. Mais um telefonema antes de mais uma garfada, bebe uma água e volta para adiantar as demandas e ver se sai mais cedo. Hoje, pelo jeito, vai ter é que ficar até mais tarde. Chega em casa, já anoiteceu faz algum tempo. A pedida é se jogar no sofá porque - até parece - o dia rendeu.
Você acorda. Zero disposição. Vontade de nem olhar pra xícara do café que a máquina fez depois que você tateou o botão. Talvez a camisa de ontem caia bem, tanto faz. Digitar mais uns relatórios. Uma reunião e outras ligações de sempre. Hora do almoço. Chega uma mensagem que dá vontade de lançar fora o celular. Passa a tarde vagarosa pela penumbra que invade a persiana empoeirada. Chega em casa, é noite recém-caída. Melhor ir direto pra cama antes que outra ligação antecipe o amanhã.
Você nem acorda e já sente que o despertador está por tocar. Só então força pra abrir os olhos. A energia está média, até surpreende. Resolve ir pro trabalho ouvindo música. Quando chega, já vai direto pra cozinha tomar mais um café. O dia passa rápido, sem grandes intercorrências. Chega em casa, resolve ver uma série, mas acaba dormindo antes dos dez minutos.
Você acorda, não precisa sair de casa. Seu trabalho todo está no notebook aberto desde ontem na mesa da sala. Já recebe uma ligação da chefe impaciente porque você não viu as mensagens enviadas às cinco da manhã. O café pode esperar. Quando vê a hora, já é a pausa para o almoço, mas ainda não pode parar, só mais vinte minutos. Entra em outra reunião. Começa a anoitecer quando você finalmente vai comer alguma coisa enquanto rola o feed do Instagram para ler variedades vazias de vidas mais interessantes que a sua.
Você não dormiu. Tem uma apresentação importante para hoje e tudo precisa dar certo, pois o resultado do projeto depende de você. Quando chega, a sala de reuniões está vazia, pois a chefia decidiu que havia algo mais importante do que o cronograma que você apresentou desde o ano passado. Controla a raiva e vai cumprir a nova urgência recém-inventada por alguém que sequer sabe sua função na empresa.
Você acorda, vai ao banheiro lentamente e toma um café na mais plena calma. Seus subalternos - colaboradores - devem estar trabalhando enquanto você finge se importar com as demandas do dia. Chega na empresa quase na hora do almoço, óculos escuros, reclamando do cansaço e do calor que faz lá fora. Toma outro cafezinho para ver se acorda e pergunta qual é a agenda de hoje. Nada? Então resolve, antes de sair para almoçar, fumar um cigarrinho na área externa enquanto os outros adiantam um serviço que você ainda não sabe do que se trata. No fim da tarde, surge um imprevisto. Mandaram mensagem chamando para tomar um chope vendo o pôr do sol. O dia foi duro. Você chega em casa direto pro chuveiro e vai dormir explodindo de dor de cabeça.
Alguém te acorda. Você pergunta o que tem para o café e julga se vale a pena levantar da cama. Resolve aguardar o almoço enquanto liga a TV para ouvir amenidades vindas de um papagaio verde. Pelo celular, seu dia está traçado antes mesmo de sair da cama: a galera está chamando pro cinema. Você volta tarde da noite depois de andar por aí, mas ainda tem disposição para ler um livro enquanto toma um vinho na sua sala, onde pega no sono depois de um ou dois capítulos.
Você nem sabe que acordou, mas já acionou o piloto automático antes mesmo de abrir os olhos e cumprir a rotina que lhe foi ofertada. Ou você pôde escolher qual é a sua?
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com.
Quando terminei a leitura de Em agosto nos vemos, romance póstumo de Gabriel García Márquez, sabia que não estava diante do paradoxo moral de uma mulher que busca casos extraconjugais por mera curiosidade. Na verdade, Gabo utiliza os relacionamentos para falar do vazio e da incompletude típicos do nosso tempo.
Ana Magdalena Bach, mesmo vivendo em uma família relativamente estável, num casamento de cerca de duas décadas, com filhos encaminhados, se descobre na curiosidade de viver casos amorosos em viagens anuais no mês de agosto - quando visita o túmulo de sua mãe, que fora enterrada em uma ilha.
Sem considerar a história em seu sentido literal, penso no quanto a trama revela de uma humanidade hedonista pautada na descartabilidade das relações e na satisfação momentânea como motor das escolhas.
Entendo a família como a segurança do que a personagem conquistou ao longo da vida, a mãe falecida como um pretexto para se ausentar desse núcleo familiar marcado pela rotina e os casos extraconjugais como uma satisfação oculta que permite fugir da mesmice e garantir o viço da novidade.
Você pode preferir ver pela ótica do julgamento moral acerca da traição dentro do relacionamento, mas eu vejo essa obra como uma análise da necessidade de autodescoberta motivada pela insatisfação, pelo tédio ou pela mesmice. Ana não se entende por completo enquanto não percebe que pode ir além de seu casamento e de sua família.
E essa insatisfação - até então não percebida - a fazia infeliz. Muitas pessoas são capazes de se dizerem felizes dentro de uma rotina, ocupadas com as minúcias que compõem as agendas cheias - dentro e fora de casa -, mas Ana não era uma dessas pessoas, ou pelo menos passou a não ser ao longo da vida.
Ao nos apresentar uma personagem mais madura, Gabo dá a dimensão da passagem do tempo ao inseri-la numa lógica que me parece fazer muito mais sentido para as gerações mais recentes: a lógica de estar constantemente insatisfeito.
Sei que essa angústia é própria do ser humano e, mais ainda, motivadora de quase tudo que fazemos e queremos - o capitalismo sabe manejá-la muito bem, inclusive. Mas é inegável que o século XXI tem uma insatisfação vazia como sua marca registrada.
Nos nossos dias, muito disso se deve, é claro, às redes sociais, que são veículos de depressão em massa, com o bombardeio de informações que faz o indivíduo se sentir em constante comparação com o outro, que está sempre feliz, sadio e tem uma história para contar todos os dias.
Mas muito disso se deve, também, à forma como lidamos com o que está ao nosso redor. A insatisfação tem a ver com o quão descartáveis e voláteis estão as coisas. Algo nos diz que o novo é melhor e que precisa ser conquistado. De fato, a novidade é inevitável e, por vezes, até desejada, mas qual valor damos para o agora quando estamos sempre com a cabeça no amanhã?
Com a precisão de suas palavras e com a beleza de sua narrativa, Gabo esmiúça as emoções de uma personagem que se descobre enredada nas artimanhas do destino traçado por sua mãe - ou que pelo menos usa isso como pretexto para sua autodescoberta sentimental.
*Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
A íngreme encosta de panos estava sempre prestes a cair enquanto eu me via ao centro de um forte reforçado por cores que exalavam sabão em pó. Ao menor movimento, qual um gigante devastador, tudo mexia, ameaçando desfazer o trabalho de um dia inteiro. Era assim que eu acompanhava, ajudava, atrapalhava, o trabalho da minha mãe na véspera de uma viagem.
Olhos atentos em flagrante inquietação enquanto, em cima da cama, as pilhas de roupas dobradas se formavam e logo eram postas na mala. As mãos ágeis da minha mãe ditavam o ritmo de um dos serviços mais detestados por ela: fazer as malas.
Depois de crescido, já no centro dos afazeres, não tenho a mesma agilidade - nem a mesma precisão - que admirava em minha mãe. Eu dobro, desdobro, redobro, e a assimetria da peça mostra o quão vacilante é minha habilidade com os tecidos.
A sensação é de permanecer horas na mesma camisa, na mesma calça, até alcançar uma falsa perfeição inexplicável diante da banalidade de uma mala que logo será chacoalhada e revirada como se centrifugasse as roupas a seco.
Percebo no refazer um retrato do meu perecimento. É a vida que passa na peça de roupa dobrada. É o dente a ser reescovado. A louça novamente suja. O lixo a ser posto para fora. A gasolina que acaba a procurar um posto. A lâmpada que pisca exigindo troca. O cabelo que cresce à espera de uma tesoura. A conta que, sucessivamente, vence no mesmo dia todo mês.
A roupa e sua imperiosa necessidade de ser dobrada - para a mala ou para o armário - faz parte de um ciclo extenuante de busca pela conclusão que cisma em não acontecer. Fica só a sensação temporária do acontecido para, em seguida, reacender em obrigação.
Diante do cansaço, as passagens já sobre a mesa, olho as roupas separadas e me imagino jogado entre os tecidos para reviver a sensação de estar no forte com aroma de sabão em pó sob a proteção de não compreender o significado prático da palavra rotina.
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com.
Aconteceu abruptamente, sem cerimônias. Ela estava lá, frondosa, alta, com as raízes eclodindo pela calçada da vizinhança. A casa do velho de poucas palavras tinha sua entrada coberta pelas folhas, que ele fazia questão de juntar e queimar ao menos duas vezes na semana.
Amanheci com o encontro entre as serras e a madeira. Vários uniformes andavam pela rua separando os galhos para jogar num triturador que jorrava pedaços de árvore para todo lado.
Deve ser uma poda para evitar que os galhos caiam com o vento, era o que eu justificava. Mas o simples corte de galhos atravessou a tarde, deixando a árvore sem qualquer resquício de verde.
Dia seguinte, o trabalho seguiu. A árvore está, desde então, reduzida a um toco que mal serve de banco. Se foram a sombra, as folhas espalhadas, o farfalhar que anunciava qualquer mínimo vento, as pequenas flores brancas que choviam em certos dias do ano e o rangido – qual porta entreaberta em filme de terror – que ditava a saúde da madeira.
Por um momento, pensei no primeiro encontro do jornalista com a mulher da casa abandonada, narrado em podcast, e cheguei a idealizar que, ao contrário, o vizinho que varria as folhas seria um defensor da derrubada da árvore, mesmo não tendo, aparentemente, nada melhor para fazer além de varrer e incendiar folhas na sarjeta.
Não havia, porém, nada a ser feito. A árvore estava reduzida ao chão. Argumentariam, é provável, que a madeira estava podre, com risco de queda iminente. A árvore que compunha o mundo que eu compreendia através da janela, na verdade, valia muito menos que um poste erguido a cada tantos metros de calçada.
Aquela árvore arrancada vorazmente numa tarde do meio do ano representava uma violência incompreensível contra a paisagem. Exceto para o vizinho que se irritava com as folhas. Exceto para o pedestre que tentava trafegar pela calçada. Exceto para a própria calçada, deformada pelas raízes incertas. Exceto para a árvore, incrustada no meio da cidade, isolada entre asfalto e muro, obrigada a dividir sua existência com quem a considerava descartável.
A árvore foi extraída no meio de 2024, e, ainda hoje, eu olho pela janela e vejo um vazio, sem compreender espacialmente a rua onde moro, sem compreender a falta de importância, sem compreender que a árvore - a falta dela - atravessaria a forma como eu enxergo minha própria casa.
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com.
Escreve quinzenalmente, aos sábados, no blog Extravio.
Aviso: Este blog retornará em fevereiro de 2025. Boas festas!
Clarão toma a rua. A fumaça começa, pouco a pouco, a invadir minhas narinas. Fecho as janelas. É provável que o vizinho incendiário esteja queimando lixo outra vez. Não ligo.
A claridade parece aumentar. Resolvo olhar pela janela. O fogo já toma parte significativa da árvore frontal à minha casa. Alguém vai fazer alguma coisa. Logo passa.
Na televisão, dezenas de focos de incêndio são registrados pelo país. Troco de canal. O que acontece em outra cidade não me afeta.
Ouço o vizinho gritar algo incompreensível. Após fingir que não escuto, dou ouvidos para me manter informado. O fogo alcançou o terreno baldio, ameaçando as casas ao lado.
Agora que as chamas já tomam o telhado da primeira casa, os bombeiros chegam para conter o avanço da queimada pela vizinhança. Alguém deve ter ligado.
Sinto calor. Ligo o ar condicionado enquanto observo o frenesi ganhar a rua. Luzes, gritos, clarão crescente. Coisa boa para um dia pacato nessa rua morta que quase não vê carro.
A árvore, escondida pelas chamas, parece não estar firme. Espreito como quem se delicia com um acontecimento inesperado, pensando no que virá a seguir. Os galhos desabam e tocam a rede elétrica. Ainda estou com luz, não vejo problema.
Abro o aplicativo. Peço uma pizza. O tempo passa. O interfone toca. Vejo que o caos ainda toma conta da rua. O fogo ainda clareia a noite. Como o homem se recusa a subir para trazer meu pedido, então preciso descer para pegar a comida. Aproveito para espiar os bombeiros, cercados pelos fofoqueiros que assistem ao derretimento do lado ímpar.
Do meu lado, nada de novo. Subo. Estou com fome. Sento no sofá e como metade da pizza de uma só vez. Depois, deixo o prato de lado e me espalho aqui mesmo. Acendo um cigarro. Controlo o fogo que queima lá fora entre dois dedos.
Pego no sono enquanto o fogo ainda não é problema meu.
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve quinzenalmente, aos sábados, no blog Extravio.
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente. www.ronaldojuniorescritor.com
**Este texto compõe a obra “poesia simulada: blefes, ironias e fake news", que está em pré-venda pelo site www.benfeitoria.com/poesiasimulada.