Aposentadoria
18/03/2023 | 22h47
Fonte: Pixabay.
Na ponta do nariz, a fina armação repousava sobre a quina das orelhas do homem. No início do dia, mascarados os cansaços da noite anterior, pequenas trincas quase invisíveis permeavam toda a xícara branca amarelada pelo café cotidiano: hábito tedioso a se repetir.
 
Ao lado da xícara, em cima da toalha plástica que grudava a mão num toque-instante, estava o aparelho substituto do velho jornal de domingo lido demoradamente ao longo de toda a semana, todos os dias, naquela mesma cadeira. Tudo enquanto a mulher ainda dormia um pouco mais.
 
A pequena televisão falava sozinha com a pia, a mesa e as cadeiras desocupadas enquanto o homem ali não estava mais para ouvir os acontecimentos futuros narrados quando já pretéritos.
 
Dentro do carro, ele cumpria trajetos não programados ao longo do dia, levando passageiros e reclamando da vida do trânsito do tempo do preço da gasolina do sujeito que, na sua frente, parou sem sinalizar e quase bateu.
 
Sentia seu peso espalhado pela cadeira como se estivesse em casa, fora das necessidades da rotina, usufruindo das décadas trabalhadas com as contas pagas. Mas precisava sair para ganhar o que o salário não pagava até o final do mês.
 
Da televisão, poderia ouvir a notícia de que a avenida principal, fechada em razão de um grande acidente, não seria aberta tão cedo. O lugar era próximo a ponto de a casa vibrar com a explosão que levou o posto os carros as bicicletas o cachorro passante os pedestres desavisados, fazendo voar a bomba de combustível que, visor esfacelado, ainda queria marcar o consumo instantes depois.
 
Ligou o rádio antes de virar a chave. Sem saber que seria a última, deu a partida. Saiu de sua garagem virando à esquerda. Manobrou o carro até entrar na fila. Andou de pouco em pouco até chegar na bomba. Pediu que o frentista completasse o tanque. Acelerou o coração quando ouviu o estrondo. Perdeu a consciência no clarão espontâneo. Deixou pra trás as necessidades as contas as memórias não vividas os minutos a mais na cama como dívida em aberto que o trabalho não permitiria quitar.
 
Já não havia carro nem homem nem celular nem óculos sobre o nariz quando ele se via sentado em casa – memória idealizada no devir– a expandir seus passos depois da explosão ocorrida enquanto abastecia seu carro. Sua breve retrospectiva não acontecida gerava imagens enquanto não podia se perguntar por que não dormira um pouco mais.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados, quinzenalmente, no blog Extravio.
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A romantização do papel
04/03/2023 | 14h00
Fonte: Pixabay
É fato que sempre está em curso uma mudança na forma como lidamos com as informações. O livro, por exemplo, ganha novos suportes, formatos e maneiras de ler ao gosto de quem aprecia.
 
Como cantava Belchior,
 
 
E eu ousaria mudar o verso: “uma nova mudança já está a acontecer”. Pois a vida é isso, mudança em curso, e sempre tem quem torça o nariz porque bom mesmo era no meu tempo – eu sei, ainda vou falar essa frase daqui a alguns anos, é questão de tempo.
 
Parte dessa mudança ressalta em mim e em muitas outras pessoas o apego pelo livro impresso – seu projeto gráfico, seu cheiro, suas fragilidades e suas cores -, e eu admito que até cheguei a relutar antes de comprar um Kindle por achar que não me adaptaria.
 
A relutância ficou para trás nos primeiros dias, e hoje eu já quase não consigo ler sem acompanhar o andamento da leitura em porcentagem – teria até que me reacostumar para voltar ao método de contagem por páginas.
 
Com o passar do tempo, percebo que o problema não está na mudança do suporte ou mesmo do hábito, mas no tratamento que damos a essas transformações. O uso exagerado das tecnologias cria problemas, mas a absoluta relutância em aceitá-las gera uma espécie de anacronismo utópico.
 
Há quem diga que não larga os papéis porque o contato com a folha tem um apelo sinestésico que, na verdade, pode estar ocultando uma compulsão por acumular papel impresso – observe se não é o seu caso e procure um especialista.
 
Não nego que também sou desses que fica romantizando a relação com livros impressos, já que tenho minha coleção e sempre gostei, desde criança, de jornais, revistas e livros. Mas chega um momento em que você percebe que o espaço físico da sua casa é limitado para comportar mais exemplares e você pensa em alternativas para isso, afinal, nem todo mundo tem uma biblioteca como a do Umberto Eco – exceto no Kindle.
 
Então criei o hábito de ler numa tela, o que progrediu para o hábito de escrever em telas – como agora mesmo estou fazendo – e provavelmente evoluirei para a quase absoluta abolição do papel na minha rotina.
 
Isso alcançou, é claro, meus hábitos de estudante e, em minha segunda graduação, já quase não levo mais papéis na mochila – apesar de ainda andar com canetas para papéis que possam repentinamente aparecer solicitando grafia -, o que não deve ser entendido como desinteresse, ao contrário: faço anotações em (quase) todas as aulas por meio digital, o que desperta a rabugice de professores que cismam em não aceitar que o mundo está mudando, e a sala de aula está indo junto.
 
Chego a ouvir piadocas dos que julgam a ausência de papel nos meus materiais como algo de desdém na minha postura discente. Eu, porém, vejo no pretenso conservadorismo desses professores-juízes algo de antiquado que me lembra Monteiro Lobato escrevendo sobre o Modernismo.
 
Isso porque, não sendo por limitação material que impeça o acesso a equipamentos e à internet, beira a insensatez ser analógico nos dias atuais, uma vez que materiais e métodos avaliativos podem ser veiculados com muito mais facilidade no meio digital. Vejo, portanto, certa hipocrisia na relutância dos profissionais que negam o tecnológico em face da vazia didática sensorial do papel impresso.
 
Não estou aqui pregando que livros e materiais didáticos impressos sejam incinerados – até porque, além de ser um amante dos livros físicos, acho uma balela essa história de que a internet vai matar o livro, uma vez que a única ocorrência será a mudança de suporte, que já está acontecendo.
 
Na contramão dos sommeliers de celulose, continuo apreciando livros e textos – sejam digitais ou impressos -, mas menosprezando em absoluto a postura de quem se reivindica dono dos hábitos puros da humanidade.
 
Sinto nessas pessoas notas de um tradicionalismo amarelo-desbotado, mas há algo que me faz questionar: até hoje, nenhum desses professores analógicos me solicitou o envio de cartas como forma de entrar em contato ou enviar trabalhos, pois – pasme – todos têm e-mail e Whatsapp.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Há vagas
18/02/2023 | 15h00
Fonte: Pixabay.
Ela fez a curva logo depois de descer a ponte. Através das décadas, o rio ainda se mantém a dividir a cidade em metades desiguais. Logo na descida, a igreja resiste – concreto e história – a narrar o povoamento nascido ao seu redor.
 
A atual situação desse espaço de terra teve início, eu bem lembro, com um visionário que alegava não compreender a função daquele tanto de prédio velho e inútil para a cidade. Esse terreno dá um estacionamento dos bons, garantia o homem à frente do seu tempo.
 
Espaço apropriado pela propriedade privada que se sobrepõe à memória pública. Muito eu posso relatar sobre o que vi, mas resolvi me ater à mulher que veio do outro lado do rio.
 
Mais adiante, na avenida principal, ela se deparou com um vazio que toma conta dos cantos: o que outrora historiava as esquinas agora é escampado sem chão. Nem os prédios mais robustos resistiram à inovação. A alegação era que o centro comercial estava à míngua porque as pessoas não tinham onde estacionar, mas ninguém percebia um sutil movimento: as pessoas preferem não ter que sair de casa, já que podem encontrar tudo num aplicativo.
 
A percepção disso, no entanto, chegou tarde: as construções já tinham sido demolidas – ou espontaneamente incendiadas - para dar lugar a modelos de negócio em espaço aberto, sem custos estruturais e com máxima automatização, nada que pudesse resolver a penúria do centro que recebia milhares de pessoas no início do século XXI.
 
Agora, raras são as pessoas por aqui. Ela, por exemplo, não viu um único passante a caminhar sob o duplo sol que invadia o céu refletido nas calçadas cinzas. Sem árvores, sem prédios, tudo cimentado para contar a história do que um dia nunca mais, dando espaço a um futuro movido pelo lucro em detrimento do passado.
 
Em tempos digitais, nada se faz de perto: não há comércio, agências bancárias ou escritórios nesses arredores. Nem teatros e templos foram poupados, restando apenas uma construção para cada necessidade presencial remanescente – o mínimo de contato humano possível.
 
As esquinas são inexplicáveis dobras no vazio a contrastar com os bairros distantes, por onde ainda perambulam pessoas. Aqui, porém, o antigo comércio deu lugar a um projeto de tudo abaixo para causar renovação, quase não poupando a igreja central. Shopping garagem, disseram que ficaria incrível no lugar. Sorte que o bispo embargou e conseguiu preservar a igreja – agora ilhada por estacionamentos.
 
A mulher – assim mesmo, inominada – manobrou o carro em uma das centenas de vagas ladeadas pelo centro histórico que se mantém nas placas turísticas obrigatoriamente colocadas. Isso porque a prefeitura certo dia decretou: artigo primeiro, cada estabelecimento pertencente à região definida como “novo centro histórico” deve afixar em sua entrada uma placa contendo as informações do imóvel demolido; artigo segundo, este decreto entra em vigor na data de sua publicação.
 
As tantas vagas, ironicamente, costumam ficar vazias, não havendo quem queira visitar esse espaço abandonado – estacionamentado – que nada tem a oferecer. Só um ou outro galpão se mantém erguido nas distâncias para distribuir os milhares de pacotes que chegam todos os dias para os bairros.
 
Ela estava ali na única função de buscar um produto em um desses galpões de distribuição após frustradas tentativas de entrega. Na saída do estacionamento – logo do lado de fora -, ela deu uma pausa para olhar a placa que falava de um prédio em estilo eclético datado do século XIX que ficava bem ali. Notei no olhar dela que o edifício tinha algo de afetivo para trazer à tona, talvez um parentesco, um nascimento, uma lembrança não vivida. Por isso ela sempre estaciona aqui, pela lembrança de um passado demolido.
 
Apagamento em cinza demarcado - vaga por vaga – a vagar pelos esquecimentos de quem nada é por não lembrar quem um dia foi: assim é o centro que conta a história pelo ouvir dizer porque, entre o velho e o histórico, priorizou-se o agora a urgir por interesses explorativos. Há quem veja lucro na destruição da memória – talvez por falta de lembrar quem um dia nunca foi.
 
Eu a acompanhei a cada curva espreitando pelas ruínas impalpáveis do que um dia chegou a ser mais que mera placa contando história. Notei a lágrima seca em sua bochecha quando voltou e releu a lápide de um edifício importante para ela. Inexplicável sensação de se identificar sem nada poder fazer.
 
Os antigos ainda me invocam enquanto lenda de um ser que vaga pelos descampados a estardalhar o ruído de destroços pela madrugada. Como parte das lendas que atravessam os imaginários, vago por esse vazio inumanizado pelo apagamento de seus traços e histórias. Por isso, sigo a guardar o que nem todos lembram e o que se forçam a esquecer.
 
Na derrubada aleatória do que se considera velho, a novidade pode ser apenas uma vaga (lembrança?) que não se deseja ocupar.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Subordina
04/02/2023 | 14h00
Arte: Ronaldo Lobão sobre aquarela ENTITY_quot_ENTITYOs calceteirosENTITY_quot_ENTITY, de Debret
Colônia. A relação de dependência que se estabelece vai para além dos meros tratados e leis, alcançando as gentes os jeitos as falas os sentires. Este texto, em português, é produto de um cruento processo de apagamento por imposição. Apagamento pelo brutal gesto de ser dependente no âmago a ponto de pedir permissão para ser e não ser enquanto existe um imperador além-mar para ditar o que é brasil. Estas palavras – gramática colonialista a colocar o pronome posposto – partem da fissura encravada na carne originária, do inculcamento da crença forçada em um deus que domina antes de amar. Do acaso mais nefasto, as mãos que dominaram a máquina do mundo resolveram também dominar o certo pelo errado, o sagrado qual profano, as vivências por realidades. Mas em nada o globo limado por deus pôde conter o engenho humano extenso e expresso a corromper a máquina do mundo em sua veloz e interesseira dominância. Daí esta língua esta gente este constante lidar com o mundo sob a megalômana mania de ser dono de tudo. No falso status de um reino que concentrava a riqueza na pequena dobra da península e devastava as terras todas que fazia de quintal. O superador das léguas marítimas - herói camoniano – se veste, antes, em seu panteão de dominador para ser do colonizado o próprio gigante Adamastor. Do fundo do oceano para a terra firme, é o colono o monstro insuperável a rondar sobre a terra dita descoberta – mundo só havia se pisado pelas diminutas pernas do gigante europeu. Independentes apesar de subalternos, escravos apesar de soberanos, nascidos apesar de inconstituídos: brasil apesar de ainda não.
 
*Texto integrante do livro digital "Prosas descolonizadas", que pode ser lido gratuitamente aqui. Conheça a coleção "História poética" aqui.
**Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Registro meu agradecimento ao jornalista Matheus Berriel pela matéria publicada na Folha da Manhã no dia 01 de fevereiro de 2023 sobre a coleção "História poética". Acesse o texto aqui.
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Reality de confinamento
21/01/2023 | 14h01
Fonte: Pixabay.
Como não se fala em outra coisa, quero aproveitar este espaço para refletir com vocês sobre o papel desse ato que abre oficialmente o ano de 2023.
 
Milhares de pessoas se mobilizaram desde o ano passado para chegar neste momento. Se inscreveram para participar, viajaram por muitos quilômetros para tentar vagas e até abandonaram suas rotinas em prol de um sonho.
 
Pode parecer loucura, mas existe toda uma mobilização a fim de gerar entretenimento para todos que assistem daqui de fora.
 
Há quem classifique como ficção, considerando que aquelas pessoas não podem agir daquele jeito no cotidiano, mas há também quem considere realidade toda aquela barbárie simulada regida pela discórdia e pela vaidosa vontade de aparecer.
 
Tudo isso extravasa o entretenimento quando reparamos que tem a ver com algo básico para o ser humano: o poder. Pessoas se expõem, se submetem a situações degradantes, longe de suas famílias e lares, unicamente pela utopia de acreditar que podem mais que outras.
 
O ideal, que muitas vezes se perde no meio de tantas informações, é perceber a dimensão humana dos envolvidos, notar como ocupam seus espaços, lutam por sobrevida, se relacionam com os demais e reagem com comida escassa, sem internet e sob constante pressão.
 
Eles sempre quiseram isso, mas agora chegam a relutar diante das adversidades, não havendo mais retorno ao que eram antes. Não dá pra simplesmente apagar toda a exposição das intimidades reviradas, das personalidades exibidas em rede nacional. Tudo fica registrado de alguma forma.
 
A humanidade é curiosa quando desnudada ao vivo por câmeras – olhos milhões – espalhadas pelos lugares mais específicos, sob ângulos inacreditáveis.
 
A única conclusão possível é que todas aquelas pessoas, confinadas por tempo ainda incerto, sairão de lá marcadas para o resto da vida pelo que fizeram enquanto todo mundo estava olhando. Canceladas ou endeusadas, levarão nas costas o legado da exposição de quem verdadeiramente são. Daqui de fora, seguimos acompanhando cada passo cientes de que eles todos mereceram entrar lá, já que imploraram pelo confinamento na porta de quartéis Brasil afora.
 
Diferente do BBB, só podemos acompanhar a primeira fase desse reality por meio das lives apocalípticas e das câmeras jornalísticas, já que a grande final tem confinamento reforçado e conta apenas com câmeras de vigilância interna. Mas o reality está longe de acabar: ainda há vagas para fazer parte do grande elenco dos atos antidemocráticos. Os nomes estão sendo divulgados todos os dias, e eles prometem dar um show de audiência.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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De um dia pro outro
31/12/2022 | 14h01
Fonte: Pixabay.
Ver excessivamente prejudica o imaginar por falta de fechar os olhos.
 
Sem dar conta de todo o acontecido, a memória deixa de lado as parcas informações deixadas à mostra.
 
Mas o que fica na memória profunda não se revê pelas retinas, faz parte delas, que se entranham pelas cores do amanhecer cotidianamente esquecido.
 
Há muito mais para pensar além da lembrança individualista, há muito de construção para além - para antes - da pessoa formada ao par de olhos e sensações, há muito ao redor para ser só memória dos sentidos.
 
A parede estala com o calor excessivo. A chuva nela escorre e respinga como se banal, minando aos poucos a concretude cimentícia dos materiais.
 
Assim é a insistência dos estímulos, que em pancadas graduais invade o teatro da memória - essa ficção do acontecido seletivamente guardado - e dissimula o que ladeia as nuances da narrativa.
 
-Que horas são?
 
-Falta um minuto para a meia noite.
 
Mas também nada se faz em um minuto. Depende mesmo de um ano inteiro para alcançar o que só se verá no minuto final do ciclo seguinte.
 
Tudo passa num relance. E tudo começa no instante seguinte, como mágica. Ou como constante continuar sentindo pela fresta do muro que tende a virar ruína. O passar de um minuto muda tudo e muda nada, depende se é passagem, se é passado ou se é possibilidade.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Como subverter as obrigações de fim de ano
24/12/2022 | 14h00
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Não vou tentar adivinhar nada, mas existe uma chance enorme de você estar lendo este texto prestes a encontrar pessoas com as quais não gostaria de estar.
 
Vou localizar o leitor extemporâneo: hoje é 24 de dezembro, e este é o dia ideal para as mais diversas inconveniências familiares.
 
Tudo começa com um comodismo: vamos todos para a casa da fulana porque lá passamos todos os natais. Chegando, você encontra de costume uma tia intransigente que cisma que você é criança, um comentário absolutamente desnecessário vindo da sua avó, piadocas aleatórias próprias de um fim de festa, um primo que você sequer lembrava que tinha, dezenas de passas no arroz e um álbum do Roberto Carlos tocando repetidamente.
 
A problemática da história parte não apenas desse conjunto, mas justamente do motivo de você não poder, sob pena de "pesar o clima na família", deixar de estar presente ou mesmo dizer o que realmente pensa a respeito daquilo tudo.
 
É isso: a necessidade, o ter-que, a impossibilidade de optar por comer as sobras frias do almoço à meia noite enquanto assiste a um vídeo besta no YouTube.
 
Estando isso fora de cogitação, proponho uma inversão de papéis capaz de gerar nos outros o incômodo que te faz não querer estar com eles: seja o semeador das inconveniências antecipando o que fariam contra você.
 
Primeiro, já chegue fazendo a piada do pavê para que sintam em você a energia subversiva. Depois, informe para a sua avó que, apesar de mais "cheinho" do que no natal passado, você vai repetir o prato de arroz com salada de batata. Em seguida, esclareça para a sua tia que demonstrações de afeto forçadas só expõem o quão importante foi não ter te procurado o ano inteiro. Por fim, não deixe de criar um apelido carinhosamente vexatório para cada um de seus familiares, a fim de fazê-los sentir as nuances de cada brincadeira desnecessária que fizeram ao longo dos últimos anos.
 
E, na primeira oportunidade, se furte de ir aonde você não se sente afetivamente acolhido, lembrando que família é aquela que você não procura por obrigação, mas por sentimento.
 
Feliz Natal!
 
*Esta crônica faz parte da série “Manual de desutilidades”, que tem como finalidade trazer reflexões críticas sobre questões cotidianas, brincando com o pragmatismo dos manuais de instruções – mas sem a pretensão de instruir ninguém.
**Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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A vida que acontece entre dois cortes de cabelo
17/12/2022 | 14h00
Fonte: Pixabay.
Tenho sempre a impressão – e estou convicto do quão insólita ela é - de que os dias se passam abalizados pelos cortes de cabelo.
 
Você pode estar pensando: “ah, esse texto é só uma enrolação aleatória para fugir dos clichês de final de ano”, mas não é apenas isso. Se trata de uma filosofia oculta, à espreita, pronta para ser desenredada pelo primeiro filósofo de esquina capaz de notar suas vertentes axiológicas.
 
Isso porque a visita ao barbeiro funciona como uma espécie de limiar que inaugura um novo tempo para além do mero aparar dos pelos que me alargam a testa e já me faltam no cocuruto. Então o homem com a tesoura e o pente deixa de ser um profissional comum para se tornar, na verdade, uma espécie de guardião desse limiar que permite inaugurar uma nova aventura.
 
Estou viajando? Talvez. Mas este texto tem uma razão de ser, e ela parte do fato de eu sempre me colocar a refletir quando preciso ir ao barbeiro. E aqui vão meus motivos.
 
Tal estado de espírito se inaugura porque reluto ao corte: eu seria capaz até de aderir a uma coleção de chapéus para adiar essa situação. Primeiro, pelo claro fato de ser uma inconveniência sair de casa com a finalidade única de sentar numa cadeira e deixar que uma tesoura fique zanzando pela minha cabeça. Segundo, por sentir uma estranheza na relação que une dois completos desconhecidos que se encontram periodicamente para... um corte de cabelo!
 
Partindo dessa lamúria cabeleireirística, passei a compreender que o corte, além de algo íntimo – apesar de feito despudoradamente à luz do dia -, é também simbólico pelo gesto de se despir de algo inerente a si para dar espaço a outro ciclo, o que é consumado na varredura dos chumaços que ficam pelo chão.
 
Desde quando criança, tenho esse peculiar incômodo sobre a barbearia, as relações sociais que se criam nela e o fato de alguém estar a todo tempo controlando os movimentos mecanizados do meu pescoço sob a ameaça de um objeto cortante. Mas permaneço a precisar dos serviços, afinal, mesmo que hoje me falte cabelo em algumas áreas do coco, contraditoriamente as áreas cranianas em que ele ainda me sobra insistem em se tornar ambiente de trabalho do barbeiro.
 
Qual a jornada do herói, penso a exoneração capilar como o encerramento de uma trajetória para dar início a outra aventura marcada especificamente pelo monstro do limiar – o barbeiro – e pelo mentor que me guiará nesse início de trajetória – posso aludir a algum papeador que esteja na cadeira ao lado pronto para lançar um não solicitado conselho de vida.
 
Como para qualquer pessoa, abrir ciclos é sempre desgastante, daí tanta relutância minha para um rotineiro aparar de fios. Daí tamanho estranhamento quando me deparo com pessoas que se sentem tão à vontade no barbeiro que são capazes de passar horas nos ambientes cada vez mais gourmetizados que as barbearias estão virando – tudo para ocultar a amolação que é essa obrigação de se sentar na cadeira e fazer um breve e desinteressante comentário sobre o calor que está fazendo.
 
Para exemplificar a dificuldade das relações sociais na barbearia, preciso dizer que, quando conheci o atual responsável pelo exaurimento dos meus ciclos capilares, ele puxou papo falando sobre como é bom andar de bicicleta. Detalhe: eu não sei andar de bicicleta – calma, isso é tema para outro texto -, o que fez com que o assunto, já fadado ao fracasso, minguasse antes mesmo de nascer, mas com a desgastante necessidade de eu explanar o porquê de não saber me equilibrar em um eixo com duas rodas. Seria preferível um comentário sobre o calor lá fora, sem dúvidas.
 
Fato é que sempre acabo cedendo e me rendo à necessidade da tesoura para cortar o cabelo que ainda me resta e dar início a um novo ciclo – marcado por fios que insistem em parar de crescer toda vez. E todo o resto é intervalo enquanto o corpo humano faz seu silencioso processo de multiplicação para ser aparado e repetir tudo novamente. E disso somos feitos: intervalos de vivências entre uma ida e outra.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Para além das Academias de Letras
10/12/2022 | 14h01
Foto extraída da página da Academia Campista de Letras no Facebook.
 
Por ocasião da posse de Adriano Moura na Academia Campista de Letras – em sessão solene ocorrida na última terça-feira -, passei a refletir sobre a importância das nossas instituições culturais no panorama municipal e, mais ainda, qual o papel delas quanto a reunir significativas vozes do nosso tempo em um espaço de debate plural e significativo.
 
Começo por dizer que me parece ter ocorrido, durante um certo tempo, um afastamento de intelectuais em relação às nossas duas Academias de Letras – para citar apenas as principais instituições que têm por enfoque a literatura. Digo isso por notar que, historicamente, tanto a Academia Campista de Letras (1939) quanto a Academia Pedralva Letras e Artes (1947) passaram por crises para manutenção de suas atividades.
 
Segundo relatos de companheiros que compartilham comigo tais espaços, sei que a ACL chegou a ter seus trabalhos interrompidos durante algum tempo, ao passo que a Pedralva, sem parar suas atividades até hoje, enfrentou um esvaziamento similar no início deste século. Tais acontecimentos já somam alguns anos – ou mesmo décadas -, mas a questão que proponho aqui passa por pensar a importância dessas instituições e o impacto de seu esvaziamento para a cultura local.
 
A título de justificativa, quando mencionei, num parágrafo acima, o termo “intelectuais”, não o fiz como forma de insinuar que as Academias possuem o poder místico de transformar qualquer indivíduo em intelectual – nem que todos os seus membros assim se consideram -, mas como sinônimo de pessoas que são verdadeiras referências em suas áreas de atuação.
 
Antes de prosseguir com a discussão, vale a reflexão que várias pessoas já me trouxeram: Campos possui tamanha representação literária a ponto de possuir mais de uma instituição para abrigar seus escritores? Respondo que sim e que não: sim, porque o município possui, desde o século XIX, uma profusão de intelectuais, obras e veículos de imprensa relevantes, além do fato de suas Academias de Letras terem raízes absolutamente distintas que justificam suas existências; não, porque vejo com ressalvas o fato de escritores que não encontram assento nas instituições já existentes quererem fundar suas próprias entidades culturais e fingir que elas possuem a mesma importância para o cenário local.
 
Dito isso, volto para a temática inicial: por que os intelectuais se afastaram das instituições durante certo tempo? Palpito: os espaços acadêmicos podem parecer ambientes de mero desfile de vaidades para fazer cafuné no próprio ego, além de, a depender do ponto de vista, parecerem espaços em que não se produz nada de relevante cultural e academicamente.
 
Esses argumentos, além de precipitados, são reducionistas a ponto de desconsiderar a história das nossas instituições e dos nomes que por elas passaram, mas trazem à tona o intrigante fato de ser esse um estereótipo aceito por muitos que se negam a frequentar tais espaços, apesar de possuírem relevância intelectual para contribuir com ideias e ações relevantes.
 
Todas essas questões se renovam em minha mente quando Adriano toma posse na ACL, dada a relevância de sua obra literária, universitária e teatral. Ouço de muitos que a chegada dele é tardia e tenho que concordar. Mas devo apontar igualmente que nossas instituições precisam, cada dia mais, enfatizar suas histórias e se mostrar disponíveis para contribuir com a defesa das expressões artístico-culturais do nosso município.
 
De nada vale nos fecharmos em nossas reuniões para compartilharmos ideias e escritas com companheiros de Academia se não alcançamos a população e não integramos as expressões advindas dela no escopo da instituição. Esse trabalho feito num cômodo fechado em quase nada contribui com as reais finalidades de uma instituição cultural.
 
Para tanto, as históricas Academias de Campos possuem o constante desafio de enfatizar seus objetivos constitutivos para seguir escrevendo a história, cabendo aos acadêmicos – e eu me incluo nesse dever – apresentar socialmente suas contribuições e estimular a participação da comunidade para fazer valer o honroso título que possuem. Isso se mostra possível, como vem sendo feito, por meio do diálogo com o poder público, com universidades e com instituições culturais correlatas que se juntam na história recente – como o Instituto Histórico e Geográfico de Campos, a Associação de Autoras e Autores Campistas e a Academia de Letras do Brasil Seção Campos.
 
Penso, portanto, que as instituições culturais campistas devem se dedicar ao cumprimento constante da função social que possuem enquanto guardiãs da memória de um município que foi berço de veículos como o Monitor Campista e de intelectuais como José do Patrocínio, José Candido de Carvalho e tantos outros nomes ainda vivos e que ainda estão por vir. Logo, a importância cultural das Academias é de salvaguardar nossas manifestações culturais e defender a expressão literária campista, o que passa pelo estímulo para surgimento de novos autores e de ações para garantir espaço para cada um, além da constante observância do acesso à cultura e à educação.
 
Para isso, é preciso que outras importantes vozes da literatura campista se juntem aos atuais acadêmicos para entender que as instituições - para além dos egos e interesses individuais – são espaços que precisam ser ocupados para debater formas de salvaguardar nossa memória e, com ela, nossa identidade.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Agora, mais do que nunca, vai!
19/11/2022 | 14h53
Brasil joga contra a seleção da  Colômbia  na arena Castelão em Fortaleza (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Brasil joga contra a seleção da Colômbia na arena Castelão em Fortaleza (Marcello Casal Jr/Agência Brasil) / Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Contrariando as frustrações políticas e futebolísticas promovidas pela seleção brasileira na última década, não tenho dúvidas de que estamos prontos para a embriaguez utópica e alienante desta Copa do Mundo.

2018, pelo menos pra mim, foi uma Copa sem registro na memória, o que é absolutamente normal para quem vivia o luto do 7 a 1 misturado com a perda da camisa canarinho pra um pessoal com quem eu não desejava – e ainda agora não desejo – ser associado.

Então meu intervalo entre a última Copa e esta é um tanto maior, o que é ótimo para deixar no passado as lástimas e reapropriar os símbolos, que vêm junto com as esperanças – apesar de uma lateral (extrema) direita um tanto duvidosa.

Não vou ficar enrolando pra dizer que, como é repetido desde 2006, neste ano o hexa vem. Pronto. Ilusões fazem bem, ainda mais em tempos tão excruciantes.

Eu já preparei a camisa amarela, completei o álbum desde setembro e estou tentando fazer uma agenda para ver os jogos – de verdade, sentar e assistir, sem papos paralelos e interrupções que possibilitem quebrar a energia da vitória.

Uma coisa é certa: se ganharmos, eu já estarei esperando a sétima estrela em 2026, mas, se perdermos – hipótese absurda - , eu seguirei esperando a sexta sem problema algum.

O que eu realmente sinto é que precisamos de algo para suturar as feridas remanescentes de um corte profundo e tentar deixar para trás tudo que fez mal nesses tempos estúpidos. Precisamos da embriaguez coletiva que minimiza as diferenças e concentra o fanatismo no futebol – ao menos por um mês.

Ou seja, só reclamo do Daniel Alves para não perder a tradição de dizer que o técnico da seleção errou – algo me diz que isso dá sorte -, mas já estou aqui torcendo pelo hexa com a mesma crença ingênua de quem acreditou numa vitória sobre a Alemanha em 2014. Mas agora vai!

*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Sobre o autor

Ronaldo Junior

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Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.