Como se dia fosse, desligou o motor – faróis apagados, lua alta no escuro denso -, abriu a porta sem olhar se vinha um carro repentino e foi até a calçada como se dependesse daquilo.
Não ligava para a madrugada alta nem para as poucas horas até o início do expediente de entregas entre bairros. Levava, naquele turno extra, um envelope que não passara pelo centro de distribuição. Era uma carta pendente há muito.
Mas quem manda uma carta nestes tempos em que envelopes no correio trazem apenas dívidas, negativações, avisos de corte, notificações judiciais?
Depositou lentamente o envelope como se esperasse uma reação imediata, ouvindo o solene ruído do papel ao dar com o fundo metálico da caixa de correio. Estava feito, sem volta e talvez até sem o que esperar.
Dia seguinte, a cidade acordava com os baques das engrenagens a atritar os dentes em pleno asfalto, e o envelope foi tocado. Com alguma curiosidade, o lacre sutil foi rompido com a passagem das pontas dos dedos.
Dentro, uma folha em branco, mas não por completo: ao rodapé, constava uma assinatura, feita às pressas, com letra de forma, revelando um nome próprio, uma identidade até então resguardada em tantos anos. Agora, sabia quem era.
Olhando o papel em branco, chorou.
Afinal, antes mesmo de uma palavra lançada, pode ser o silêncio o grande responsável por dizer.
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Na ponta do nariz, a fina armação repousava sobre a quina das orelhas do homem. No início do dia, mascarados os cansaços da noite anterior, pequenas trincas quase invisíveis permeavam toda a xícara branca amarelada pelo café cotidiano: hábito tedioso a se repetir.
Ao lado da xícara, em cima da toalha plástica que grudava a mão num toque-instante, estava o aparelho substituto do velho jornal de domingo lido demoradamente ao longo de toda a semana, todos os dias, naquela mesma cadeira. Tudo enquanto a mulher ainda dormia um pouco mais.
A pequena televisão falava sozinha com a pia, a mesa e as cadeiras desocupadas enquanto o homem ali não estava mais para ouvir os acontecimentos futuros narrados quando já pretéritos.
Dentro do carro, ele cumpria trajetos não programados ao longo do dia, levando passageiros e reclamando da vida do trânsito do tempo do preço da gasolina do sujeito que, na sua frente, parou sem sinalizar e quase bateu.
Sentia seu peso espalhado pela cadeira como se estivesse em casa, fora das necessidades da rotina, usufruindo das décadas trabalhadas com as contas pagas. Mas precisava sair para ganhar o que o salário não pagava até o final do mês.
Da televisão, poderia ouvir a notícia de que a avenida principal, fechada em razão de um grande acidente, não seria aberta tão cedo. O lugar era próximo a ponto de a casa vibrar com a explosão que levou o posto os carros as bicicletas o cachorro passante os pedestres desavisados, fazendo voar a bomba de combustível que, visor esfacelado, ainda queria marcar o consumo instantes depois.
Ligou o rádio antes de virar a chave. Sem saber que seria a última, deu a partida. Saiu de sua garagem virando à esquerda. Manobrou o carro até entrar na fila. Andou de pouco em pouco até chegar na bomba. Pediu que o frentista completasse o tanque. Acelerou o coração quando ouviu o estrondo. Perdeu a consciência no clarão espontâneo. Deixou pra trás as necessidades as contas as memórias não vividas os minutos a mais na cama como dívida em aberto que o trabalho não permitiria quitar.
Já não havia carro nem homem nem celular nem óculos sobre o nariz quando ele se via sentado em casa – memória idealizada no devir– a expandir seus passos depois da explosão ocorrida enquanto abastecia seu carro. Sua breve retrospectiva não acontecida gerava imagens enquanto não podia se perguntar por que não dormira um pouco mais.
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados, quinzenalmente, no blog Extravio.
Ela fez a curva logo depois de descer a ponte. Através das décadas, o rio ainda se mantém a dividir a cidade em metades desiguais. Logo na descida, a igreja resiste – concreto e história – a narrar o povoamento nascido ao seu redor.
A atual situação desse espaço de terra teve início, eu bem lembro, com um visionário que alegava não compreender a função daquele tanto de prédio velho e inútil para a cidade. Esse terreno dá um estacionamento dos bons, garantia o homem à frente do seu tempo.
Espaço apropriado pela propriedade privada que se sobrepõe à memória pública. Muito eu posso relatar sobre o que vi, mas resolvi me ater à mulher que veio do outro lado do rio.
Mais adiante, na avenida principal, ela se deparou com um vazio que toma conta dos cantos: o que outrora historiava as esquinas agora é escampado sem chão. Nem os prédios mais robustos resistiram à inovação. A alegação era que o centro comercial estava à míngua porque as pessoas não tinham onde estacionar, mas ninguém percebia um sutil movimento: as pessoas preferem não ter que sair de casa, já que podem encontrar tudo num aplicativo.
A percepção disso, no entanto, chegou tarde: as construções já tinham sido demolidas – ou espontaneamente incendiadas - para dar lugar a modelos de negócio em espaço aberto, sem custos estruturais e com máxima automatização, nada que pudesse resolver a penúria do centro que recebia milhares de pessoas no início do século XXI.
Agora, raras são as pessoas por aqui. Ela, por exemplo, não viu um único passante a caminhar sob o duplo sol que invadia o céu refletido nas calçadas cinzas. Sem árvores, sem prédios, tudo cimentado para contar a história do que um dia nunca mais, dando espaço a um futuro movido pelo lucro em detrimento do passado.
Em tempos digitais, nada se faz de perto: não há comércio, agências bancárias ou escritórios nesses arredores. Nem teatros e templos foram poupados, restando apenas uma construção para cada necessidade presencial remanescente – o mínimo de contato humano possível.
As esquinas são inexplicáveis dobras no vazio a contrastar com os bairros distantes, por onde ainda perambulam pessoas. Aqui, porém, o antigo comércio deu lugar a um projeto de tudo abaixo para causar renovação, quase não poupando a igreja central. Shopping garagem, disseram que ficaria incrível no lugar. Sorte que o bispo embargou e conseguiu preservar a igreja – agora ilhada por estacionamentos.
A mulher – assim mesmo, inominada – manobrou o carro em uma das centenas de vagas ladeadas pelo centro histórico que se mantém nas placas turísticas obrigatoriamente colocadas. Isso porque a prefeitura certo dia decretou: artigo primeiro, cada estabelecimento pertencente à região definida como “novo centro histórico” deve afixar em sua entrada uma placa contendo as informações do imóvel demolido; artigo segundo, este decreto entra em vigor na data de sua publicação.
As tantas vagas, ironicamente, costumam ficar vazias, não havendo quem queira visitar esse espaço abandonado – estacionamentado – que nada tem a oferecer. Só um ou outro galpão se mantém erguido nas distâncias para distribuir os milhares de pacotes que chegam todos os dias para os bairros.
Ela estava ali na única função de buscar um produto em um desses galpões de distribuição após frustradas tentativas de entrega. Na saída do estacionamento – logo do lado de fora -, ela deu uma pausa para olhar a placa que falava de um prédio em estilo eclético datado do século XIX que ficava bem ali. Notei no olhar dela que o edifício tinha algo de afetivo para trazer à tona, talvez um parentesco, um nascimento, uma lembrança não vivida. Por isso ela sempre estaciona aqui, pela lembrança de um passado demolido.
Apagamento em cinza demarcado - vaga por vaga – a vagar pelos esquecimentos de quem nada é por não lembrar quem um dia foi: assim é o centro que conta a história pelo ouvir dizer porque, entre o velho e o histórico, priorizou-se o agora a urgir por interesses explorativos. Há quem veja lucro na destruição da memória – talvez por falta de lembrar quem um dia nunca foi.
Eu a acompanhei a cada curva espreitando pelas ruínas impalpáveis do que um dia chegou a ser mais que mera placa contando história. Notei a lágrima seca em sua bochecha quando voltou e releu a lápide de um edifício importante para ela. Inexplicável sensação de se identificar sem nada poder fazer.
Os antigos ainda me invocam enquanto lenda de um ser que vaga pelos descampados a estardalhar o ruído de destroços pela madrugada. Como parte das lendas que atravessam os imaginários, vago por esse vazio inumanizado pelo apagamento de seus traços e histórias. Por isso, sigo a guardar o que nem todos lembram e o que se forçam a esquecer.
Na derrubada aleatória do que se considera velho, a novidade pode ser apenas uma vaga (lembrança?) que não se deseja ocupar.
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
A luz entrava em penumbra pela fresta deixada na cortina do quarto, e todos ainda dormiam prostradamente – o casal e a pequena Yorkshire com um ano de amabilidade recém-completado.
Numa repentina vibração, a tela do celular se acendeu e começou a tocar uma ligeiramente aguda e repetitiva melodia acompanhada pela trepidação do aparelho apoiado na mesa de cabeceira.
Com isso, arregalaram-se as duas pequenas jabuticabas da cadelinha Jolie, que se encontrava delicadamente espalhada no meio do edredom. A questão era que a música – incapaz de despertar o casal de imediato – causava na pequena uma euforia inquietante, com pulos e lambidas e leves impulsos com a pata dianteira para acordar seus humanos.
Eles, sonolentos pelo excesso de trabalho que varara madrugada adentro, acabaram por acordar com a alegria do entusiasmo de Jolie, incapaz de conter os impulsos diante daquela música. Ela pulava pelo edredom e lambia a mão, o braço e o rosto deles, alternando a euforia entre um e outro até que alguém acordasse e fizesse cessar o som e a animação.
As horas passavam com a exatidão pontual de sempre, e Jolie se detinha em sua pequena cama, no sofá da sala ou mesmo brincando com seus humanos, mas sempre a melodia tornava a ecoar pelo ambiente – por qualquer ligação ou alarme -, trazendo novamente à tona a euforia da Yorkshire.
Nada a deixava tão feliz e inquieta, apenas a melodia – e banana, é claro. Aquela atitude, além de amável, era também digna de curiosidade: por que nenhuma outra melodia a deixava tão feliz? Seria necessário fazer experiências musicais a fim de descobrir.
Tentaram Chico Buarque, Tom Jobim, mas nenhuma reação surgia. Resolveram ouvir Marcelo D2, Paulinho Moska e Lenine, mas nada: ela dormia, inalterável. Chegaram até a se expor aos extremos pelo bem da experiência, indo do pagode ao heavy metal, mas somente a melodia do toque padrão do celular tinha tão peculiar efeito.
Então os humanos – esses seres esfaimados pela explicação e pela utilidade de tudo – resolveram ir mais a fundo, levando a tal melodia para um entendedor de música a fim de tentar desvendar o mistério.
Junto com eles, a pequena Jolie deu ao musicista – um humano que a fazia tremer de medo, uma vez que não convivia com ela - sua demonstração de afeto melódico enquanto ele ouvia atentamente aquela música que nada tinha de especial.
Ele até tentou explicar, apontando aspectos sonoros capazes de despertar tanta alegria na cachorrinha, como algumas notas agudas e o ritmo. Mas não conseguia dizer o porquê de outros sons similares não despertarem suas emoções.
Chegou a dizer que lera estudos sobre a relação entre a música clássica e o estado de relaxamento dos cães, mas, definitivamente, não era o caso: era exatamente o contrário, uma música causadora de euforia.
A questão, Jolie guardava para si, estava muito distante dos estudos feitos e das rasas explicações humanas. Aquela música, todos os dias executada, despertava nela uma reação performática incontível, e ela precisava expressar – performar – muitos sentimentos com sua euforia.
Tudo porque aquela fora a primeira música ouvida na manhã seguinte ao dia em que seus humanos a levaram para casa, na noite do dia dezesseis de dezembro.
A melodia era seu hino de descoberta do mundo a partir da nova família. Algo inefável para os humanos, mas simplesmente exprimível em sua espontaneidade.
*Conto publicado originalmente na antologia virtual “Meu amigo bicho” (2021), organizada por Welington Cordeiro e Cristiano Pluhar, com a colaboração de diversos autores.
**Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Centro de Campos dos Goytacazes, foto de 2018.
/
Ronaldo Junior
Não havendo paralelismo que encontrasse, ele firmava suas posições no cruzamento de realidades, na predisposição a incertezas e na crueza repentina das relações espontâneas.
Suas saídas cotidianas e intempestivas faziam de seu silêncio um esclarecimento sobre a personalidade abrupta que o dominava: buscava capturar momentos com a câmera de seu celular a fim de desenredar o que havia por trás dos transeuntes que faziam as horas úteis do Calçadão em seu ir e vir.
A mulher cheia de sacolas carregava o filho, aos tropeções, pelo braço. O vendedor gritava suas ofertas ao vento enquanto passava com seu passo pesado. O engravatado, cara amarrada, caminhava relutante sob o sol. O casal carregava, um de cada lado, a TV de 55 polegadas. A mulher, saltos ritmados na pedra portuguesa, caminhava lentamente até o banco.
Tudo acontecia na simultaneidade das pressas guiadas pelo compasso cronológico que dissipava todo o movimento tão logo o sol se pusesse. E ele permanecia sentado no banco fingindo digitar em seu telefone enquanto fotografava os passantes. Uma vez, quase tivera sua atuação descoberta quando um homem de meia idade – frequentador habitual da área – perguntara, do nada, o que ele fazia com a câmera aberta.
Mas uma desculpa qualquer bastara, sem maiores repercussões.
Chegava em casa após um dia inteiro de fotos de pessoas aleatórias para abrir uma a uma na tela do computador e criar narrativas – factuais? – sobre a vida das pessoas que por ele passaram ao longo do dia.
Preenchia sua realidade com ficções alheias, pois, saindo de si, era muitos. Não tinha nome que limitasse suas possibilidades, preenchendo-se dos que por ele passavam ao longo de tardes inteiras cercado por ruídos e cheiros e acontecimentos repentinos que tomavam sua atenção no relance do centro da cidade.
Em seu solitário perfil na rede social, alimentava-se de postar algumas das fotos com legendas que recriavam o inimaginável: mazelas, desejos, histórias pregressas e até genealogias epopeicas eram atributos dos personagens desconhecidos percorridos por sua aflição de viver vidas outras.
Flâneur da virtualidade, deixava-se vagar por outras vivências no passatempo de extraviar a sua própria pelos caminhos. Na multidão digital, encontrava sua extensão a perscrutar certezas pendulares na recusa plena de estar só.
De nada adiantava segui-lo. Seus rastros eram insuficientes para guiar um mero curioso pelo labirinto de seus pensamentos, pois cada elemento de sua personalidade fora esquartejado e espalhado categoricamente pelos cantos da cidade, na sola dos sapatos e na atenção dispersa dos passantes que não o percebem.
*Ronaldo Junior tem 25 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com