Quinze anos depois
04/11/2023 | 01h17
FOTO DE MARCELO GONÇALVES / FLUMINENSE FC
Se, assim como eu, você torce pelo Fluminense ou tem alguma simpatia pelo clube, este não é um sábado qualquer. Quatro de novembro guarda uma conexão direta com o dia dois de julho de 2008, pouco mais de quinze anos atrás.
 
Naquele ano, quando o time tricolor jogou sua primeira final da Copa Libertadores da América, eu tinha doze anos de idade, e o futebol era mais uma emoção inconsciente do que uma compreensão racional – não que hoje tenha mudado muito, mas o tempo me permite olhar o atual momento de forma diferente, sem dúvidas.
 
Na época, o fator social tinha um peso para mim: o que os onze jogadores do Fluminense faziam em campo impactava diretamente no meu dia seguinte, na escola, quando os assuntos eram focados na rodada do campeonato, e eu era zoado – ou me colocava na posição de zoar os rivais – de acordo com a atuação do time. Tudo acontecia como se eu e meus amigos fôssemos os responsáveis por vestir a camisa, entrar em campo, acertar passes e fazer gols.
 
Hoje, sem fatores sociais que me lembrem da adolescência – e isso não é um convite para virem me zoar depois de qualquer jogo -, sinto que muito permaneceu em mim nesses anos: o frio na barriga pelo início da partida, o sonho do título e a intuição de que é chegada a hora de ver meu time levantar essa taça.
 
Há quinze anos, durante a segunda partida da final, na fatídica noite de julho de 2008, eu acompanhava o jogo enquanto minha temperatura era monitorada de perto pelos meus pais, uma vez que eu estava febril – sem qualquer sintoma infeccioso aparente, com exceção da partida contra a LDU.
 
O Fluminense ganhava o jogo, numa noite iluminada de Thiago Neves, e minha temperatura seguia alta. Bastou que, já nos pênaltis, o atacante Washington perdesse a cobrança para que eu começasse a suar, restabelecendo minha temperatura corporal. O antitérmico, pasme, foi o apito final, apesar do resultado. Ainda agora é muito viva a imagem do goleiro adversário agarrado na rede do Maracanã, entre uma e outra cobrança de pênalti, como se lançasse sobre ela algum poder sobrenatural.
 
Neste sábado, apesar da lembrança, a sensação é outra, mas certamente é difícil ver prazer na partida de hoje. É jogo brigado, tenso do primeiro ao último apito. O exaurimento só virá quando tudo passar. Por enquanto, ficam as comparações, superstições, provocações e as tantas justificativas que tentamos encontrar para explicar a magia do futebol.
 
Quem vai ganhar, não sei. Só penso que o Flu tem mais time e joga em casa, mas vai precisar quebrar a retranca e a catimba dos argentinos, que jogam pelos pênaltis desde as oitavas de final. Se a história se repetirá ou se o dinizismo encontrará a glória, só saberemos depois das 19h.
 
Agora com a serenidade que esses quinze anos me permitiram ter, posso dizer que, feliz ou frustrado pelo placar do jogo, o resultado não vai alterar a história escrita pelo Fluminense na competição. O título é sonhado, mas ver tudo que o time construiu diz muito sobre o seu futuro e resgata muito de seu passado glorioso.
 
Para mim, fica a convicção de que, mais tarde, esses jogadores – do mais experiente ao mais novato - vão honrar os outros tantos que já vestiram a camisa tricolor, tendo a chance de lavar a alma dos que estiveram em campo naquela noite de 2008.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Uma desculpa e uma reflexão
29/09/2023 | 11h37
Fonte: Pixabay.
Meses passados desde a última publicação aqui no blog, volto com a sensação de novidade de quem perdeu a prática do que faz. Escrevo enquanto aguardo as últimas notas do curso de Letras serem publicadas no sistema, apesar de já ter comemorado o fato de que tudo acabou – pra ser bem exato, na última quinta, por volta das 20h, logo após uma análise comparativa do “Ensaio sobre a cegueira”, do Saramago.
 
Foi um último semestre intenso e, por isso, em branco no que se refere à criação de textos e a leituras não acadêmicas, o que serve de justificativa acanhada para o meu sumiço repentino deste espaço, “extraviando” minhas ideias para outros rumos.
 
Acontece que, enquanto eu escrevia os parágrafos anteriores, ainda sem saber ao certo o caminho que este texto poderia tomar, notei uma incongruência no meu relato: um (quase ex) aluno do curso de Letras acabou de justificar sua pausa na escrita em razão do curso, que é focado justamente em Língua Portuguesa e suas Literaturas.
 
Fato é que, em parte, é coisa minha esse negócio de suspender meu processo criativo enquanto me ocupo com a seriedade dos compromissos paralelos. Mas, para além das razões pessoais, sinto que foram raros os momentos de verdadeiro estímulo criativo ao longo da graduação, algo que, ao olhar em retrospecto, me surpreende.
 
Você pode pensar: é claro que não há esse tipo de estímulo, já que não é um curso voltado para a escrita e seus processos criativos, mas ao estudo analítico da língua e da literatura. Tudo bem, concordo.
 
Mas, sem qualquer pretensão de atribuir esse desestímulo ao curso de Letras do IFF, digo que não foram poucas, desde que entrei no curso, as vezes em que ouvi colegas falarem sobre a perda do prazer da leitura ou mesmo relatarem um bloqueio na escrita literária em razão do curso.
 
Reitero: não tem nada a ver com a qualidade da instituição nem com a abordagem dos gabaritados profissionais que compõem o colegiado de Letras: tendemos a desprestigiar a criatividade nos diversos níveis de ensino, independentemente de idade, curso ou instituição. Tanto é que raramente uma resposta criativa, capaz de revelar a ambiguidade de um enunciado avaliativo, vai ser pontuada por um professor que busca a gloriosa e objetiva resposta correta.
 
Isso diz pouco sobre o curso que fiz, mas fala verborragicamente sobre nossos processos pedagógicos de maneira geral. E é por isso que lamento por ter escrito, dentro das disciplinas do curso, apenas um poema para cada dez análises ensaísticas solicitadas pelos professores.
 
Os pragmáticos que chegaram aqui ao acaso podem dizer – cenho franzido e óculos na ponta do nariz – que escrever poemas não aprova ninguém em um concurso público e que dissertação de mestrado não se escreve em versos. Mas o que pouquíssimos vão dizer é que não se forma um profissional sensível apenas com a frialdade dos textos acadêmicos.
 
Me dói, portanto, constatar o que ouvi de alguns colegas, que se viram obrigados a substituir o prazer da leitura pela obrigatoriedade, assim como o estímulo criativo por respostas fundamentadas nos autores A ou B, pois é fato que a profissão e a academia tendem a nos afastar de certos processos empíricos – por razões óbvias, mas não menos lamentáveis.
 
Desses quatro anos, contudo, levarei os tantos ensinamentos e os grandes amigos que o curso de Letras me proporcionou. E digo que só aprofundei a imensa admiração que tenho pelo campus Campos Centro do Instituto Federal.
 
Por aqui, vou retomando a prática de experimentar com palavras, algo que eu espero jamais perder.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Jogo de palavras
13/05/2023 | 11h03
Fonte: Pixabay
A constância dos barulhos que cortam aquele asfalto – em caminhões carros motos bicicletas passos – faz da avenida vários pedaços cíclicos do mesmo lugar, sempre outro sob as mecânicas de cada instante, sempre o mesmo na alma de uma rua atravessada de rotinas.
 
O sinal fechava, e a fila de carros se amontoava até quase alcançar a segunda esquina, a perder de vista. Era um vermelho demorado para os que esperavam, mas também uma pausa forçada no meio do dia. Os pedestres se adiantavam para atravessar a extensão da faixa e n f i l e i r a d a enquanto os motoristas aproveitavam para mexer no celular.
 
Naquele momento de suspensão, surgia um menino que, de carro em carro, mostrava uma pequena caixa para os motoristas. A grande maioria, vidro fechado, sequer olhava para o lado. Outros, porém, desprendiam os olhos do celular e acabavam espantados não apenas pela pouca idade do garoto, mas pelo que ele oferecia.
 
Quanto é?, um curioso perguntou. O que é pra você?, o moleque devolveu.
 
Em diversos tamanhos e fontes e cores, palavras de jornais e revistas formavam um pequeno bolinho de papel que forrava todo o fundo da caixa levada debaixo do braço e aberta para poucos olhos.
 
Acompanhando o menino, um homem recitava poemas entre os carros com sua voz densa enquanto se esquivava das motos que cortavam caminho. Via o pequeno repetir seus passos de décadas naquele semáforo: dando aos motoristas a possibilidade momentânea de descobrir o valor das palavras e da liberdade de tê-las. Desde os primeiros anos, o garoto aprendia e ensinava que palavra não é algo que se usa de graça, nem algo que necessariamente se compra com dinheiro.
 
Não era um doce, nem uma bugiganga, mas uma palavra, banal e corriqueira como esta.
 
Cê vai querer uma só ou vai levar um jogo?, ele perguntava, oferecendo possibilidades numa frase inteira. Os motoristas que o conheciam já abriam um sorriso, mas os que só estavam de passagem torciam o nariz e até debochavam. E o menino seguia seu caminho enquanto ouvia o companheiro recitar versos.
 
Palavra, como os passantes habituais chamavam o homem, deu origem ao apelido do menor, Palavrinha. E o semáforo não tinha apenas o vermelho fatigante de parar os carros, mas também a possibilidade de expressar em gestos o que nem sempre as palavras conseguem dizer.
 
*Esta crônica faz parte da série “Cenas urbanas”.
**Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Aguardando a vez
28/04/2023 | 12h08
Fonte: Pixabay
Braços cruzados, falatório nos passos que correm ao lado, calor esfumaçante trincando o asfalto, e eles todos ali, reunidos na calçada, diante da vidraça do banco à espera da abertura das portas.
 
Lá dentro, uma pequena multidão ainda mais antecipada já disputa o privilégio de ser um dos primeiros a acessar a porta giratória para, deixando seus perigosos pertences num acrílico, obter a atenção de um engravatado que inicia o dia já cansado pelo acúmulo de trabalho - o Whatsapp pipocando no bolso.
 
As conversas, ali fora, alternam os interesses entre a aposentadoria - queria ver se os políticos recebessem essa miséria -, o alto preço dos alimentos - o que eu recebo não dá pra duas compras num mês, tudo só piora - e o calor que faz lá fora - parece que o verão não foi embora.
 
Quando os primeiros começaram entrar – entre giros e solavancos e uma voz robótica dando boas-vindas -, os passos sincronizados chegaram para a frente, no sentido da entrada, na ânsia pela atenção da menina do "posso ajudar?", a fim de tentar resolver o problema no caixa eletrônico mesmo.
 
Entre aquele amontoado de gente, estava Felipe - cabelos grisalhos, bigode penteado, óculos escuros, sapato de calçar escondido sob a calça social marfim e camisa verde abotoada até o pescoço -, que cismava em puxar papo com quem estava ao redor.
 
Mesmo com preferência pela idade, ele estava na fila comum, cercado dos passantes e dos esfuziantes clientes do banco que tinham hora marcada.
 
Mais uma leva de pessoas entrou, e Felipe se esquivou, passando a vez sob a justificativa de estar aguardando seu neto, que entraria com ele, mas tinha ido logo ali.
 
Ele não parava, porém, de puxar assunto. Era o preço da carne, era o gol do Germán Cano, era o tempo que não lhe parecia tão firme, era a onda de violência que assola o país, era o fato de o tempo da juventude ser muito melhor.
 
Não chegava nunca o neto, e ele seguia passando a vez e tagarelando até chegar o meio da tarde, cansar e ir embora para casa ler o jornal do dia.
 
Na solidão da viuvez, buscava mesmo a companhia aleatória de quem estava ali pela necessidade da fila, com os ouvidos abertos para ouvir suas histórias e pontos de vista. Queria mesmo era guardar seu lugar enquanto participante daquele mundo vivo fora de casa, observando pessoas e pressas no centro da cidade.
 
*Esta crônica faz parte da série “Cenas urbanas”.
**Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Algumas maneiras de esquecer
21/04/2023 | 05h56
Fonte: Pixabay
Mesmo que você não tenha reparado, tenho que justificar meu silêncio neste blog nas últimas semanas, e ele tem a ver com o tema deste texto.
 
Muita gente me diz que, aos 27 anos, estou no tempo de abraçar todas as oportunidades que me aparecem e me permitir errar. O que quase ninguém inclui no meio desses clichês motivadores é que fazer tudo pode gerar um tumultuado e confuso vazio.
 
Daí a justificativa prometida: a alternância entre trabalho e estudo, intercalada pela dedicação a projetos futuros, acabou por capturar um tanto da liberdade em que mergulho a pena para escrever – deixo aqui essa imagem avoenga para que você me leve a sério.
 
Sem o tempo para me dedicar a observar o passar da vida, simplesmente a deixo passar e vou – pingue-pongue – de um compromisso para o outro pensando no que virá a seguir. E a escrita, enquanto registro do que me passa ao redor, fica represada aqui em algum canto.
 
Como eu escrevi certo dia num instapoema: “a afoiteza do fazer por vezes nos tira a natureza do olhar”. E eu acabo me esquecendo disso ao deixar que essa multidão me atropele na rotina desenfreada do aproveitar a juventude enquanto ainda existe.
 
Isso porque ter que lembrar as tantas necessidades é também esquecer de olhar pela janela e criar uma ficção aleatória sobre o homem que passa na calçada. E, ainda, é esquecer que, por trás dos problemas, existe um momento de contemplação que nos permite, aí sim, lembrar o que importa.
 
Talvez o retorno – de pouco mais de um ano – do isolamento social tenha causado esse excesso de vontade de viver e fazer que tanto afoga os dias, mas é certo que, se não for incluído na lista de afazeres um momento para o não fazer, podemos simplesmente esquecer sua importância.
 
Tudo isso para dizer que, após esse longo período, estou de volta para colocar na página em branco tudo que ela permitir, mas também para dizer que, entre as tantas formas de esquecer, está o excesso do lembrar.
 
E assim, nas entrelinhas da lista de tarefas, vou esquecendo e lembrando enquanto alterno entre rotina e espontaneidade, sobretudo por concluir que devo, no meio das horas corridas, sempre me esforçar para esquecer quando estiver fazendo de tudo para lembrar.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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A romantização do papel
03/03/2023 | 01h28
Fonte: Pixabay
É fato que sempre está em curso uma mudança na forma como lidamos com as informações. O livro, por exemplo, ganha novos suportes, formatos e maneiras de ler ao gosto de quem aprecia.
 
Como cantava Belchior,
 
 
E eu ousaria mudar o verso: “uma nova mudança já está a acontecer”. Pois a vida é isso, mudança em curso, e sempre tem quem torça o nariz porque bom mesmo era no meu tempo – eu sei, ainda vou falar essa frase daqui a alguns anos, é questão de tempo.
 
Parte dessa mudança ressalta em mim e em muitas outras pessoas o apego pelo livro impresso – seu projeto gráfico, seu cheiro, suas fragilidades e suas cores -, e eu admito que até cheguei a relutar antes de comprar um Kindle por achar que não me adaptaria.
 
A relutância ficou para trás nos primeiros dias, e hoje eu já quase não consigo ler sem acompanhar o andamento da leitura em porcentagem – teria até que me reacostumar para voltar ao método de contagem por páginas.
 
Com o passar do tempo, percebo que o problema não está na mudança do suporte ou mesmo do hábito, mas no tratamento que damos a essas transformações. O uso exagerado das tecnologias cria problemas, mas a absoluta relutância em aceitá-las gera uma espécie de anacronismo utópico.
 
Há quem diga que não larga os papéis porque o contato com a folha tem um apelo sinestésico que, na verdade, pode estar ocultando uma compulsão por acumular papel impresso – observe se não é o seu caso e procure um especialista.
 
Não nego que também sou desses que fica romantizando a relação com livros impressos, já que tenho minha coleção e sempre gostei, desde criança, de jornais, revistas e livros. Mas chega um momento em que você percebe que o espaço físico da sua casa é limitado para comportar mais exemplares e você pensa em alternativas para isso, afinal, nem todo mundo tem uma biblioteca como a do Umberto Eco – exceto no Kindle.
 
Então criei o hábito de ler numa tela, o que progrediu para o hábito de escrever em telas – como agora mesmo estou fazendo – e provavelmente evoluirei para a quase absoluta abolição do papel na minha rotina.
 
Isso alcançou, é claro, meus hábitos de estudante e, em minha segunda graduação, já quase não levo mais papéis na mochila – apesar de ainda andar com canetas para papéis que possam repentinamente aparecer solicitando grafia -, o que não deve ser entendido como desinteresse, ao contrário: faço anotações em (quase) todas as aulas por meio digital, o que desperta a rabugice de professores que cismam em não aceitar que o mundo está mudando, e a sala de aula está indo junto.
 
Chego a ouvir piadocas dos que julgam a ausência de papel nos meus materiais como algo de desdém na minha postura discente. Eu, porém, vejo no pretenso conservadorismo desses professores-juízes algo de antiquado que me lembra Monteiro Lobato escrevendo sobre o Modernismo.
 
Isso porque, não sendo por limitação material que impeça o acesso a equipamentos e à internet, beira a insensatez ser analógico nos dias atuais, uma vez que materiais e métodos avaliativos podem ser veiculados com muito mais facilidade no meio digital. Vejo, portanto, certa hipocrisia na relutância dos profissionais que negam o tecnológico em face da vazia didática sensorial do papel impresso.
 
Não estou aqui pregando que livros e materiais didáticos impressos sejam incinerados – até porque, além de ser um amante dos livros físicos, acho uma balela essa história de que a internet vai matar o livro, uma vez que a única ocorrência será a mudança de suporte, que já está acontecendo.
 
Na contramão dos sommeliers de celulose, continuo apreciando livros e textos – sejam digitais ou impressos -, mas menosprezando em absoluto a postura de quem se reivindica dono dos hábitos puros da humanidade.
 
Sinto nessas pessoas notas de um tradicionalismo amarelo-desbotado, mas há algo que me faz questionar: até hoje, nenhum desses professores analógicos me solicitou o envio de cartas como forma de entrar em contato ou enviar trabalhos, pois – pasme – todos têm e-mail e Whatsapp.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Reality de confinamento
21/01/2023 | 01h01
Fonte: Pixabay.
Como não se fala em outra coisa, quero aproveitar este espaço para refletir com vocês sobre o papel desse ato que abre oficialmente o ano de 2023.
 
Milhares de pessoas se mobilizaram desde o ano passado para chegar neste momento. Se inscreveram para participar, viajaram por muitos quilômetros para tentar vagas e até abandonaram suas rotinas em prol de um sonho.
 
Pode parecer loucura, mas existe toda uma mobilização a fim de gerar entretenimento para todos que assistem daqui de fora.
 
Há quem classifique como ficção, considerando que aquelas pessoas não podem agir daquele jeito no cotidiano, mas há também quem considere realidade toda aquela barbárie simulada regida pela discórdia e pela vaidosa vontade de aparecer.
 
Tudo isso extravasa o entretenimento quando reparamos que tem a ver com algo básico para o ser humano: o poder. Pessoas se expõem, se submetem a situações degradantes, longe de suas famílias e lares, unicamente pela utopia de acreditar que podem mais que outras.
 
O ideal, que muitas vezes se perde no meio de tantas informações, é perceber a dimensão humana dos envolvidos, notar como ocupam seus espaços, lutam por sobrevida, se relacionam com os demais e reagem com comida escassa, sem internet e sob constante pressão.
 
Eles sempre quiseram isso, mas agora chegam a relutar diante das adversidades, não havendo mais retorno ao que eram antes. Não dá pra simplesmente apagar toda a exposição das intimidades reviradas, das personalidades exibidas em rede nacional. Tudo fica registrado de alguma forma.
 
A humanidade é curiosa quando desnudada ao vivo por câmeras – olhos milhões – espalhadas pelos lugares mais específicos, sob ângulos inacreditáveis.
 
A única conclusão possível é que todas aquelas pessoas, confinadas por tempo ainda incerto, sairão de lá marcadas para o resto da vida pelo que fizeram enquanto todo mundo estava olhando. Canceladas ou endeusadas, levarão nas costas o legado da exposição de quem verdadeiramente são. Daqui de fora, seguimos acompanhando cada passo cientes de que eles todos mereceram entrar lá, já que imploraram pelo confinamento na porta de quartéis Brasil afora.
 
Diferente do BBB, só podemos acompanhar a primeira fase desse reality por meio das lives apocalípticas e das câmeras jornalísticas, já que a grande final tem confinamento reforçado e conta apenas com câmeras de vigilância interna. Mas o reality está longe de acabar: ainda há vagas para fazer parte do grande elenco dos atos antidemocráticos. Os nomes estão sendo divulgados todos os dias, e eles prometem dar um show de audiência.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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A vida que acontece entre dois cortes de cabelo
17/12/2022 | 09h44
Fonte: Pixabay.
Tenho sempre a impressão – e estou convicto do quão insólita ela é - de que os dias se passam abalizados pelos cortes de cabelo.
 
Você pode estar pensando: “ah, esse texto é só uma enrolação aleatória para fugir dos clichês de final de ano”, mas não é apenas isso. Se trata de uma filosofia oculta, à espreita, pronta para ser desenredada pelo primeiro filósofo de esquina capaz de notar suas vertentes axiológicas.
 
Isso porque a visita ao barbeiro funciona como uma espécie de limiar que inaugura um novo tempo para além do mero aparar dos pelos que me alargam a testa e já me faltam no cocuruto. Então o homem com a tesoura e o pente deixa de ser um profissional comum para se tornar, na verdade, uma espécie de guardião desse limiar que permite inaugurar uma nova aventura.
 
Estou viajando? Talvez. Mas este texto tem uma razão de ser, e ela parte do fato de eu sempre me colocar a refletir quando preciso ir ao barbeiro. E aqui vão meus motivos.
 
Tal estado de espírito se inaugura porque reluto ao corte: eu seria capaz até de aderir a uma coleção de chapéus para adiar essa situação. Primeiro, pelo claro fato de ser uma inconveniência sair de casa com a finalidade única de sentar numa cadeira e deixar que uma tesoura fique zanzando pela minha cabeça. Segundo, por sentir uma estranheza na relação que une dois completos desconhecidos que se encontram periodicamente para... um corte de cabelo!
 
Partindo dessa lamúria cabeleireirística, passei a compreender que o corte, além de algo íntimo – apesar de feito despudoradamente à luz do dia -, é também simbólico pelo gesto de se despir de algo inerente a si para dar espaço a outro ciclo, o que é consumado na varredura dos chumaços que ficam pelo chão.
 
Desde quando criança, tenho esse peculiar incômodo sobre a barbearia, as relações sociais que se criam nela e o fato de alguém estar a todo tempo controlando os movimentos mecanizados do meu pescoço sob a ameaça de um objeto cortante. Mas permaneço a precisar dos serviços, afinal, mesmo que hoje me falte cabelo em algumas áreas do coco, contraditoriamente as áreas cranianas em que ele ainda me sobra insistem em se tornar ambiente de trabalho do barbeiro.
 
Qual a jornada do herói, penso a exoneração capilar como o encerramento de uma trajetória para dar início a outra aventura marcada especificamente pelo monstro do limiar – o barbeiro – e pelo mentor que me guiará nesse início de trajetória – posso aludir a algum papeador que esteja na cadeira ao lado pronto para lançar um não solicitado conselho de vida.
 
Como para qualquer pessoa, abrir ciclos é sempre desgastante, daí tanta relutância minha para um rotineiro aparar de fios. Daí tamanho estranhamento quando me deparo com pessoas que se sentem tão à vontade no barbeiro que são capazes de passar horas nos ambientes cada vez mais gourmetizados que as barbearias estão virando – tudo para ocultar a amolação que é essa obrigação de se sentar na cadeira e fazer um breve e desinteressante comentário sobre o calor que está fazendo.
 
Para exemplificar a dificuldade das relações sociais na barbearia, preciso dizer que, quando conheci o atual responsável pelo exaurimento dos meus ciclos capilares, ele puxou papo falando sobre como é bom andar de bicicleta. Detalhe: eu não sei andar de bicicleta – calma, isso é tema para outro texto -, o que fez com que o assunto, já fadado ao fracasso, minguasse antes mesmo de nascer, mas com a desgastante necessidade de eu explanar o porquê de não saber me equilibrar em um eixo com duas rodas. Seria preferível um comentário sobre o calor lá fora, sem dúvidas.
 
Fato é que sempre acabo cedendo e me rendo à necessidade da tesoura para cortar o cabelo que ainda me resta e dar início a um novo ciclo – marcado por fios que insistem em parar de crescer toda vez. E todo o resto é intervalo enquanto o corpo humano faz seu silencioso processo de multiplicação para ser aparado e repetir tudo novamente. E disso somos feitos: intervalos de vivências entre uma ida e outra.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Para além das Academias de Letras
10/12/2022 | 02h19
Foto extraída da página da Academia Campista de Letras no Facebook.
 
Por ocasião da posse de Adriano Moura na Academia Campista de Letras – em sessão solene ocorrida na última terça-feira -, passei a refletir sobre a importância das nossas instituições culturais no panorama municipal e, mais ainda, qual o papel delas quanto a reunir significativas vozes do nosso tempo em um espaço de debate plural e significativo.
 
Começo por dizer que me parece ter ocorrido, durante um certo tempo, um afastamento de intelectuais em relação às nossas duas Academias de Letras – para citar apenas as principais instituições que têm por enfoque a literatura. Digo isso por notar que, historicamente, tanto a Academia Campista de Letras (1939) quanto a Academia Pedralva Letras e Artes (1947) passaram por crises para manutenção de suas atividades.
 
Segundo relatos de companheiros que compartilham comigo tais espaços, sei que a ACL chegou a ter seus trabalhos interrompidos durante algum tempo, ao passo que a Pedralva, sem parar suas atividades até hoje, enfrentou um esvaziamento similar no início deste século. Tais acontecimentos já somam alguns anos – ou mesmo décadas -, mas a questão que proponho aqui passa por pensar a importância dessas instituições e o impacto de seu esvaziamento para a cultura local.
 
A título de justificativa, quando mencionei, num parágrafo acima, o termo “intelectuais”, não o fiz como forma de insinuar que as Academias possuem o poder místico de transformar qualquer indivíduo em intelectual – nem que todos os seus membros assim se consideram -, mas como sinônimo de pessoas que são verdadeiras referências em suas áreas de atuação.
 
Antes de prosseguir com a discussão, vale a reflexão que várias pessoas já me trouxeram: Campos possui tamanha representação literária a ponto de possuir mais de uma instituição para abrigar seus escritores? Respondo que sim e que não: sim, porque o município possui, desde o século XIX, uma profusão de intelectuais, obras e veículos de imprensa relevantes, além do fato de suas Academias de Letras terem raízes absolutamente distintas que justificam suas existências; não, porque vejo com ressalvas o fato de escritores que não encontram assento nas instituições já existentes quererem fundar suas próprias entidades culturais e fingir que elas possuem a mesma importância para o cenário local.
 
Dito isso, volto para a temática inicial: por que os intelectuais se afastaram das instituições durante certo tempo? Palpito: os espaços acadêmicos podem parecer ambientes de mero desfile de vaidades para fazer cafuné no próprio ego, além de, a depender do ponto de vista, parecerem espaços em que não se produz nada de relevante cultural e academicamente.
 
Esses argumentos, além de precipitados, são reducionistas a ponto de desconsiderar a história das nossas instituições e dos nomes que por elas passaram, mas trazem à tona o intrigante fato de ser esse um estereótipo aceito por muitos que se negam a frequentar tais espaços, apesar de possuírem relevância intelectual para contribuir com ideias e ações relevantes.
 
Todas essas questões se renovam em minha mente quando Adriano toma posse na ACL, dada a relevância de sua obra literária, universitária e teatral. Ouço de muitos que a chegada dele é tardia e tenho que concordar. Mas devo apontar igualmente que nossas instituições precisam, cada dia mais, enfatizar suas histórias e se mostrar disponíveis para contribuir com a defesa das expressões artístico-culturais do nosso município.
 
De nada vale nos fecharmos em nossas reuniões para compartilharmos ideias e escritas com companheiros de Academia se não alcançamos a população e não integramos as expressões advindas dela no escopo da instituição. Esse trabalho feito num cômodo fechado em quase nada contribui com as reais finalidades de uma instituição cultural.
 
Para tanto, as históricas Academias de Campos possuem o constante desafio de enfatizar seus objetivos constitutivos para seguir escrevendo a história, cabendo aos acadêmicos – e eu me incluo nesse dever – apresentar socialmente suas contribuições e estimular a participação da comunidade para fazer valer o honroso título que possuem. Isso se mostra possível, como vem sendo feito, por meio do diálogo com o poder público, com universidades e com instituições culturais correlatas que se juntam na história recente – como o Instituto Histórico e Geográfico de Campos, a Associação de Autoras e Autores Campistas e a Academia de Letras do Brasil Seção Campos.
 
Penso, portanto, que as instituições culturais campistas devem se dedicar ao cumprimento constante da função social que possuem enquanto guardiãs da memória de um município que foi berço de veículos como o Monitor Campista e de intelectuais como José do Patrocínio, José Candido de Carvalho e tantos outros nomes ainda vivos e que ainda estão por vir. Logo, a importância cultural das Academias é de salvaguardar nossas manifestações culturais e defender a expressão literária campista, o que passa pelo estímulo para surgimento de novos autores e de ações para garantir espaço para cada um, além da constante observância do acesso à cultura e à educação.
 
Para isso, é preciso que outras importantes vozes da literatura campista se juntem aos atuais acadêmicos para entender que as instituições - para além dos egos e interesses individuais – são espaços que precisam ser ocupados para debater formas de salvaguardar nossa memória e, com ela, nossa identidade.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Agora, mais do que nunca, vai!
19/11/2022 | 02h53
Brasil joga contra a seleção da  Colômbia  na arena Castelão em Fortaleza (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Brasil joga contra a seleção da Colômbia na arena Castelão em Fortaleza (Marcello Casal Jr/Agência Brasil) / Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Contrariando as frustrações políticas e futebolísticas promovidas pela seleção brasileira na última década, não tenho dúvidas de que estamos prontos para a embriaguez utópica e alienante desta Copa do Mundo.

2018, pelo menos pra mim, foi uma Copa sem registro na memória, o que é absolutamente normal para quem vivia o luto do 7 a 1 misturado com a perda da camisa canarinho pra um pessoal com quem eu não desejava – e ainda agora não desejo – ser associado.

Então meu intervalo entre a última Copa e esta é um tanto maior, o que é ótimo para deixar no passado as lástimas e reapropriar os símbolos, que vêm junto com as esperanças – apesar de uma lateral (extrema) direita um tanto duvidosa.

Não vou ficar enrolando pra dizer que, como é repetido desde 2006, neste ano o hexa vem. Pronto. Ilusões fazem bem, ainda mais em tempos tão excruciantes.

Eu já preparei a camisa amarela, completei o álbum desde setembro e estou tentando fazer uma agenda para ver os jogos – de verdade, sentar e assistir, sem papos paralelos e interrupções que possibilitem quebrar a energia da vitória.

Uma coisa é certa: se ganharmos, eu já estarei esperando a sétima estrela em 2026, mas, se perdermos – hipótese absurda - , eu seguirei esperando a sexta sem problema algum.

O que eu realmente sinto é que precisamos de algo para suturar as feridas remanescentes de um corte profundo e tentar deixar para trás tudo que fez mal nesses tempos estúpidos. Precisamos da embriaguez coletiva que minimiza as diferenças e concentra o fanatismo no futebol – ao menos por um mês.

Ou seja, só reclamo do Daniel Alves para não perder a tradição de dizer que o técnico da seleção errou – algo me diz que isso dá sorte -, mas já estou aqui torcendo pelo hexa com a mesma crença ingênua de quem acreditou numa vitória sobre a Alemanha em 2014. Mas agora vai!

*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Sobre o autor

Ronaldo Junior

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Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.