Sete décadas
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 02 de julho de 2017
Sete décadas
Arthur Soffiati
Já vivi setenta anos dentro do atual processo de globalização, que estimo em 600 anos. Portanto, vivi mais de 10% desse tempo, embora não pareça. Nasci em 1947, dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Há setenta anos, atravesso a era nuclear e eletrônica da globalização. No ano do meu nascimento, Gandhi promoveu a independência da Índia, pretendendo para ela um retorno a um tempo pré-ocidental para o país. Perdeu. Com todos os problemas sociais que o país enfrenta, a Índia é um país nuclear em ascensão econômica. Em 1947 também, a Inglaterra dividiu a Palestina em duas áreas: 56% para os judeus e 44% para os palestinos. No ano seguinte, os judeus proclamariam unilateralmente a criação do Estado de Israel, originando a profunda injustiça que perdura ainda hoje na região. Foi também proclamada a Doutrina Truman, que inicia a guerra fria, e foi criado o Fundo Monetário Internacional. Ano rico em problemas futuros.
Dez anos depois, minha família estava de volta ao Rio de Janeiro. Depois de um ano morando no Cosme Velho, meu pai se transferiu para Padre Miguel, a fim de ficar mais perto da unidade militar em que servia. Com dez anos de idade, eu ainda não acompanhava o que acontecia no Brasil e no mundo. Mais tarde, aprendi que a União Europeia começou em 1957, com o Tratado de Roma. Lembro apenas que eu cursava, com muito atraso, o segundo ano primário, numa escola de cujo nome não lembro. Apenas lembro que ela ficava numa rua sem calçamento muito enlameada quando chovia. Lembro ainda de uma porca com uma ninhada de filhotes formando um semicírculo para enfrentar um cachorro, ao lado de um bambuzal.
Vinte anos mais tarde, meus pais foram morar em São Fidélis. Passei a residir com minha avó materna e um primo em Copacabana quase Ipanema. Rua Bulhões de Carvalho, edifício Santa Basilissa. Depois de duas tentativas frustradas, prestei serviço militar no 8° Grupo de Artilharia de Costa Motorizado, no Leblon. Hoje, ele não mais existe. Aos finais de semana, eu ia ao Arpoador. Num dia, ao voltar da praia e ensaiar um banho de chuveiro, meu primo pôs para rodar um disco recém-saído. Tratava-se de “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles. Às primeiras notas, deixei o banheiro e fui me deliciar com as músicas. De imediato, pressenti que aquele disco marcaria época. Em 1967, foi deflagrada também a Guerra dos Seis Dias, entre Israel e países árabes. A injustiça se agravou.
Trinta anos depois de nascer, eu estava já estava morando em Campos, de onde nunca mais saí. Eu já havia casado e tinha um filho. Minha mente estava confusa. Eu era um dentre muitos perturbados pela globalização. Por mais que eu lesse e me esforçasse para compreender o meu tempo, meus esforços eram baldados. Mas, nesse ano, comecei a me encontrar ao participar da fundação do Centro Norte Fluminense para Conservação da Natureza, ONG que marcou época na luta em defesa do ambiente e dos pescadores. Poucos entendiam o movimento, mas eu me descobria no ativismo e no estudo. Esse ano representou um divisor de águas na minha vida. Deixei de ser um mero professor que via o mundo de sua sala para sair às ruas e ao campo.
Aos quarenta anos, eu era professor da Universidade Federal Fluminense e continuava meu ativismo ecologista. As pressões internas para que eu cursasse pós-graduação aumentavam. Ingressei no mestrado da Universidade Federal do Rio de Janeiro com uma proposta muito estranha aos professores. Eu queria abordar o norte-noroeste fluminense pela ótica da história ambiental, eco-história como a denomino. Era uma proposta atrevida para pesquisadores que não viam nada além das sociedades humanas. Tive dificuldades, mas concluí o mestrado em 1996. Logo em seguida, ingressei no doutorado da mesma instituição com a mesma proposta. Agora, eu tinha mais confiança em mim, mas a dificuldades aumentaram. Concluí o doutorado com 54 anos.
De volta ao meu cotidiano em Campos, dividi meu tempo entre aulas, pesquisas e ativismo. Por mais que eu me dedicasse a estudar a história do mundo e da região em que vivo, confesso que minha compreensão era pequena. Sempre que eu entendia ter descoberto a chave de ambos os enigmas, eis que eles me atiravam ao chão novamente. Mas me ergui sempre e agradeci os tombos. Eles me ensinavam a penetrar nas frinchas da realidade. Assim, aos 60 anos, eu estava às voltas com a grande enchente de 2007, logo depois seguida pela enchente de 2008. Trabalhei ativamente junto ao Ministério Público, entendendo que ele era meu melhor aliado. De fato, em 2008, tive a oportunidade de participar ativamente da detonação dos diques de invasão da lagoa Feia.
Hoje, em 2017, aos 70 anos, começo a entender o mundo e a região melhor que antes. Sei que aprenderia muito mais se vivesse mais 50 anos com vigor físico e lucidez. Mas a natureza é ingrata. Estou mais perto da morte que do nascimento. Dos 17 aos 40 anos, tive medo de viver. Agora, tenho medo de morrer. Talvez mais pena do que medo.

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    Aristides Soffiati

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