"Choro e quero beber a água do choro"
Aluysio Abreu Barbosa 05/05/2017 13:37 - Atualizado em 06/05/2017 16:17
Augusto dos Anjos
Augusto dos Anjos / Reprodução
Em 2002, quando do centenário de publicação de “Os Sertões”, empreendi uma expedição a Canudos, no sertão da Bahia. Após escrevi num caderno especial publicado na Folha que a obra prima de Euclides da Cunha (1866/1909) foi a primeira em nossa literatura a cessar com a importação de modelos da Europa, realinhando ao interior do Brasil as atenções desde o seu descobrimento voltadas às novidades que chegavam pelo litoral. E se a encipoada prosa euclideana plantou em terra seca as sementes do Modernismo, “fazendo brotar (Graciliano) Ramos e (Guimarães) Rosas em meio a (Glauber) Rochas”, caberia não por coincidência ao seu leitor atento e de primeira hora fazer o mesmo em nossa poesia, substituindo a partir dela o interior de um país pelo seu próprio enquanto homem.
Fruto da mesma decadência do senhor de engenho nordestino em choque com os avanços à luz da ciência prometidos pela ainda recém-nascida República positivista, que na virada dos séculos 19 ao 20 apresentara a fatura de 30 mil vidas humanas perdidas na Guerra de Canudos (1896/97), o paraibano Augusto dos Anjos (1884/1914) publicou em vida um único livro — não ao acaso intitulado “Eu” (1912). Classificado muitas vezes como simbolista e vivendo num tempo em que o parnasianismo dominava a poesia brasileira, Augusto tem sua condição de precursor do Modernismo defendida com afinco por gente como o poeta contemporâneo Ferreira Gullar (1930/2016):
— Não apenas o nível de complexidade a que Augusto conduz a expressão verbal, como também o rompimento com a concepção literária acadêmica, o situam como precursor da poesia que se fará no Brasil depois do movimento de 22 (…) Pode-se dizer que, ao longo do processo poético brasileiro até Augusto dos Anjos, quase sempre o poeta ocultou o homem. Talvez por isso mesmo, mas não só por isso, é que, na obra do poeta paraibano, o homem aparece de maneira tão escandalosa, a exibir seus intestinos, seu cuspo, sua lepra, seu sexo, sua miséria. A poesia de Augusto dos Anjos é fruto da descoberta dolorosa do mundo real, do encontro com uma realidade que a literatura, a filosofia e a religião já não podiam ocultar. Nasce do seu gênio poético, do seu temperamento especial, mas também de fatores culturais que a determinaram.
Esse pendor do poeta pelo escatológico, esse decantado “mau gosto”, assim como o cientificismo datado e muitas vezes reducionista da sua linguagem, têm contribuído para afastar leitores mais sensíveis à superfície, muito embora sua obra tenha conquistado ao longo dos anos uma popularidade incomum para poetas no Brasil, notadamente em seu Nordeste natal. Pelos mesmos motivos que a mineira Itabira fez de Drummond (1902/87) um poeta da memória, o engenho Pau D’Arco, no atual município paraibano de Sapé, onde Augusto nasceu e se criou, nunca deixaria de bater ponto em seus versos, mesmo depois de vendido em consequência da decadência financeira da família — igual em tempo, espaço e motivo a de tantas outras numa elite nordestina rural, patriarcal e ferida de morte com o avanço do capitalismo sobre o interior do país.
Em sentido contrário, Augusto foi também um homem ilustrado do seu tempo, formado em 1907 na Faculdade de Direito do Recife, onde teve o pensamento moldado na famosa “Escola do Recife”, movimento filosófico baseado no materialismo e no evolucionismo europeu, que alcançou grande força a partir de Tobias Barreto (1839/89). Influenciado pela teoria de evolução de Charles Darwin (1809/82), pela sociologia positivista de Auguste Comte (1798/1857), pelo pessimismo materialista de Arthur Schopenhauer (1788/1860), pelo liberalismo clássico de Herbert Spencer (1820/1903), pela monera primeva de Ernst Haeckel (1834/1919), o poeta passou a encarar a morte como fato material e toda a existência, como consequência amoral de um simples, mas inexorável processo químico.
Se seu Nordeste não conhecia as conquistas científicas ou os avanços sociais e econômicos dos quais essas filosofias eram frutos, elas foram abraçadas como explicação racional ao desmoronamento do seu mundo pré-industrial. Diante da miséria localizada das famílias tradicionais falidas, dos caboclos e negros famintos pela seca, o niilismo que aprendera nos livros foi aceito como justificativa de uma tragédia universal. Diferente dos modernistas que cantariam a ciência com louvor e esperança, Augusto enxergou nela apenas a aceleração rumo ao Nada.
Diante d’Ele, questionando sua existência de Hamlet-Severino, como nunca ninguém fizera nestas terras de Vera Cruz, o poeta esculpiu paralelepípedo em verso muito antes de Chico Buarque, contou as telhas do teto sob a luz da lua minguante, chorou e bebeu a água do choro:
Tristezas de um quarto minguante
Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste…
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!
 
 
Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!
 
 
O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 quilos no epigastro…
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.
 
Diabo! Não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.
 
Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!
 
Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!
 
Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6ª feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!
 
A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!
 
— Uma, duas, três, quatro… E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: — Uma…
Mas novamente eis-me a perder a conta!
 
Sucede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida — aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura!
 
— A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse…
Começo a ver coisas de Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!
 
Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.
 
Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa…
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!
 
Então dois ossos roídos me assombraram…
— “Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram”.
 
Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro…
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.
 
Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos — vis raízes adventícias —
No algodão quente de um tapete persa.
 
Por muito tempo rolo no tapete.
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!
 
A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo…
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!
 
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
 
Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
 
Côncavo, o Céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.
 
Babujada por baixos beiços brutos,
No húmus feraz, hierática, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.
 
De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.
 
Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!
Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, numa última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!
 
Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!
Pau d’Arco, maio, 1907

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