Folha Letras: Esperança
09/03/2017 19:36 - Atualizado em 10/03/2017 13:12

Folha Letras
Anteriormente em Quando Nasce um Ser Humano

Jéssica desceu as escadas e encontrou Tango sorrindo e conversando sozinho com um movimento de cabeça concordando consigo mesmo enquanto tomava doses de cachaça, percebeu à mesa outro copo de dose cheio. A música clássica que entoava pelo ambiente agora tinha voz e era animada, Jéssica não conseguiu identificá-la, mas era agradável e o seu malfeitor se divertia escutando e levantando o copo entre uma dose e outra. Pelo reflexo do copo ele percebe a linda mulher, futura mãe de seu filho, fora do cativeiro, parada na escada olhando para ele. Com um gesto e um sorriso, convida-a para que se sente junto à mesa. Um pouco receosa ela caminha em sua direção, puxa a cadeira sem desprender-se do estado de alerta e senta em frente ao seu sequestrador.

— Hoje é o dia mais feliz da minha vida! Graças a você — diz Tango.

Com a garrafa de cachaça entornando pelo alvoroço entre uma dose e outra, ele enche o copo da jovem até transbordar.

— Vamos! Aproveite! Daqui uns dias você não poderá mais usufruir desse néctar divino!

Jéssica achou que o álcool poderia lhe anestesiar a mente de tudo o que estava acontecendo. Elevou o pequeno copo à boca, de uma golada só, bebeu toda a cachaça envelhecida. Sentiu as suas entranhas queimarem forte, abriu a boca para que o vento a socorresse, mas isso só piorou. Queimava sua boca, sua língua, sua garganta e seu estômago. Rapidamente sentiu um enorme calor vindo de dentro se expandir para o ambiente. A bebida era forte, apesar de queimar não deixava um gosto ruim, tinha um sabor agridoce, exótico, ela nunca havia provado daquele tipo de cachaça, provavelmente seria típica da região. A falta de álcool pelos dias que estava em cativeiro aguçou o sabor da bebida e a vontade de devorá-la. Ao descer seu copo vazio, Tango prontamente entornou a garrafa novamente, a música se agitara, para cada dose tomada por Jéssica, ele tomava três ou mais.

— Nós vamos ser uma ótima família — diz Tango, animado.

Ela apenas abaixa a cabeça para não precisar concordar, não sabia se já era o efeito do álcool, mas sentiu pena do homem à sua frente. Ao olhar para baixo flagrou sua própria mão acariciando o ventre.

— Eu serei o melhor pai do mundo. Aprendi com o meu tudo o que não se deve fazer e o que não se deve ser.

— O que você dirá para essa criança quando ela crescer?

O sequestrador fechou a cara no mesmo instante. Jéssica percebeu a besteira que fez ao perguntar, sentiu o efeito do álcool lhe atordoar a mente. Tango aproxima-se da jovem arrastando a cadeira para perto e segura em suas mãos, sussurrando bem perto de sua face.

— Eu direi as palavras mais lindas desse mundo. Eu lhe direi sobre o quão linda você é, sobre a vida, sobre o amor.

— O que você entende sobre o amor? Isso não é amar — replica Jéssica.

— Não existe amor sem sofrimento. O que estou fazendo é por amor, estou lhe dando uma nova vida.

— Eu não quero uma vida nova!

Tango percebe que ela começara a se exaltar, mas não desgruda a sua mão sobre a dela; já havia se acostumado com o jeito explosivo da mãe de seu futuro filho e gostava dessa maneira enérgica de agir, esperava que seu filho herdasse esse vigor também.

Jéssica sente nojo ao olhar para o homem ao seu lado, com a face bem próxima sentiu vontade de escarrar em sua cara por tamanha prepotência, mas ainda conseguia refletir, mesmo sob o efeito do álcool, e percebeu que essa atitude lhe traria uma série de problemas, até mesmo para o seu pai.

— Você não pode acreditar no que diz, como você quer ter uma família sequestrada?

— Eu não te sequestrei, só desejei passar mais tempo junto e esse foi o seu desejo também, caso contrário não teria ido me ver no restaurante. Além disso, depois de me dar o bebê, você poderá ir embora.

A jovem se lembra do restaurante e pensa como pôde ter, um dia, imaginado aquele homem sexy, interessante e com grande potencial para um relacionamento se não estivesse tão longe.

— Jéssica, reflita comigo. Você gostou de mim, eu vi isso em seus olhos no nosso primeiro encontro. Pela idade e circunstâncias de vida tenho certeza que já estava pensando em ter um filho e sei que te pressionavam com essa questão.

Assim que Jéssica ia se manifestar, Tango levantou a mão e a interrompeu para que lhe deixasse terminar sua fala.

— Eu sei dos seus problemas na sua cidade natal que lhe deixam indecisa quanto a ter ou não esse filho, até mesmo com alguém que não lhe dá todo o suporte que eu lhe ofereço. E eu tenho um grande problema com a igreja, que atrapalha os meus planos. Eu te libertei do seu problema, não lhe resta mais a indecisão, tudo o que tem de fazer é aproveitar e viver o presente. E ao te libertar do seu problema, eu me liberto do meu também, e nos damos uma família.

Tango enche os copos de cachaça esvaziando a garrafa, levanta o seu copo tremendo as mãos e a bebida entornando pelas bordas.

— Um brinde a nós dois!!

Bebe sozinho.

A jovem percebe que o sequestrador já enrola a fala, um sinal nítido de embriaguez.

De repente um estrondo fora da casa lhes chama a atenção!

O peito de Jéssica se enchera de esperança, finalmente nos encontraram! Pensa que a polícia chegara e era o momento de ir embora para casa.

Tango se assusta com o barulho, bêbado, faz um sinal para que Jéssica fique calada e vá para o quarto. Ela pensa em recusar, mas percebe a ferocidade do olhar embriagado de Tango; com aquele nível de álcool na mente, ele poderia fazer qualquer coisa.

— Se eu voltar e você ainda estiver aqui, seu pai morre. Se tentar passar por aquela porta, você morre junto com o seu pai.

Tango levanta-se trocando as pernas e caminha para fora da casa. Jéssica observa a porta aberta por ele, após passar por uma sala de televisão, continuidade da sala de estar onde estavam. Não consegue enxergar muita coisa mesmo com a porta aberta, apenas um pequeno corredor onde mal dava para ver a outra porta, que provavelmente era a saída daquele inferno.

Esbarrando pelas paredes e suando, Tango correu até a porta e sumiu da vista de Jéssica, pois a primeira porta se fechou carregando com ela todas as esperanças de viver novamente. Alcoolizada, sobe as escadas lentamente tentando escutar algo do que se passa fora, mas não é possível. Escuta apenas o zumbido dos ventos e a chuva que há pouco desabara com toda a sua força novamente. Pela frequência da chuva desde que chegara ao cativeiro, deduz que o cativeiro está localizado numa área florestal devido à probabilidade do índice pluviométrico ser elevado.

No caminho para o seu quarto acariciou novamente a porta de aço onde encostou sua cabeça sobre ela e a beijou suavemente. Eu vou tirá-lo daí. Queria dizer isso ao seu pai, que ele tivesse força e aguentasse mais um pouco, o seu tormento já estava prestes a terminar.

Entrou no quarto e se jogou na cama, embriagada de álcool, ódio, medo e incertezas. A cachaça entrou em seu organismo e anestesiou a sua mente, o seu corpo e lhe proporcionou a primeira noite tranquila e involuntária, pois esforçara-se para ficar acordada e saber qual o desenrolar do que acabara de acontecer, mas dormiu.

No meio da noite, Jéssica acorda com o barulho de uma batida violenta vindo da porta pela qual observara Tango se esvair. Jéssica se levanta, sente sua cabeça pesar por causa da ressaca, sua boca está completamente seca e não havia água no quarto. Mas nada disso importava, algo aconteceu lá embaixo, provavelmente alguma batida policial que irá resgatá-la. O seu peito se enche de esperança, finalmente conseguiria sair daquele inferno e tentar viver uma vida normal novamente.

Outro barulho estrondoso de porta batendo, o seu cativeiro está aberto!

(Continua...)

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