pobre quando não tá apanhando tá jurado
- Atualizado em 08/08/2019 10:36
Pobre quando não tá apanhando, tá jurado.
Cândida Albernaz
Papai costumava falar que pobre quando não tá apanhando, tá jurado. Criança, ria da frase que não entendia e mais tarde passei a achar um exagero. Hoje, penso que ele tinha razão.
Era um homem humilde que se orgulhava de sempre ter conseguido sustentar sua família, é verdade que com muita dificuldade, com o seu trabalho.
Depois que Dalviana nasceu, nome escolhido por ele que quis homenagear sua avó e a de minha mãe, as coisas lá em casa ficaram difíceis. Foi um período em que mamãe havia perdido o emprego de arrumadeira e na fábrica de vassouras em que ele trabalhava, muitos estavam sendo demitidos. Passamos semanas fazendo uma só refeição por dia. Mamãe chorava toda hora e eles discutiam constantemente.
Ele que sempre foi um homem calmo, começou a se irritar com facilidade e foi nessa época que levei a primeira surra. Nunca antes havia encostado a mão em qualquer dos cinco filhos.
Contava que apanhara muito do pai, que fazia questão de usar o cinto com o lado da fivela para bater. Dizia que por diversas vezes não sabia o motivo do castigo recebido. Jurara a si próprio não fazer o mesmo com os filhos.
Quando houve um assalto na fábrica, todos comentavam que deveria ter sido alguém que trabalhava ali. Não havia arrombamento e quem entrou conhecia o lugar. Funcionários foram interrogados e meu pai se exaltou, dizendo não admitir que duvidassem dele. O problema é que naquela semana ele era o responsável pela chave do setor onde o dinheiro arrecadado sexta e sábado ficava guardado até segunda-feira.
Numa noite, logo após este depoimento, não apareceu em casa. Fomos eu e meu irmão mais velho procurar por ele. Nossa mãe estava nervosa e com mau pressentimento. Quando passamos num terreno baldio ali por perto, ouvimos um gemido. Corremos para lá e encontramos papai com a cara desfigurada. Não conseguia andar e tivemos que levá-lo no colo. Um vizinho que saía para o trabalho na feira àquela hora da madrugada foi quem ajudou.
Nunca mais foi o mesmo. O fígado e os rins foram atingidos com repetição e ele se tornou um homem de saúde frágil. Não pôde mais trabalhar, e a aposentadoria que recebia não dava para nada.
Tivemos que arranjar emprego, apesar da pouca idade e não ganhávamos bem pelo mesmo motivo. Vi aquele homem forte envelhecer da noite para o dia e seus olhos passaram a fitar o chão com insistência. As histórias que nos contava perderam o sentido e quase não falava. Pelo que conheci dele, sentia vergonha das pessoas, não tanto pela surra, mas pela dúvida que nunca ficou esclarecida. Não se envolvera naquele assalto, mas não pôde provar.
Jurei vingança e numa tarde eu e meus amigos, cercamos o filho do dono da fábrica e batemos muito nele. Dias depois o garoto reconheceu um de nós, que quando foi pego, soltou a língua. Sem que meus pais soubessem o motivo, fui para a casa de uma tia em outra cidade e fiquei lá por uns meses. Quando pensei voltar, soube que dois amigos apareceram mortos. Ninguém descobriu quem matou.
Minha mãe, que não era boba nem nada, mandou que ficasse na casa de sua irmã por mais tempo. Dizia que orava por mim, mas era só o que podia fazer.
Algum tempo passado, papai piorou, e talvez não durasse muito mais. Voltei para casa. Eles precisavam de ajuda, e eu, vê-lo.
Quando me viu a sua frente, as lágrimas escorreram. Disse sentir saudades, mas que não deveria ter retornado.
Foi enterrado uma semana depois.
Na saída do cemitério, atrasei um pouco mais fazendo uma oração. Todos iam à frente.
Senti um golpe na cabeça, e a última coisa de que lembro, era dos olhos de meu pai, puros e crentes nas pessoas.
 

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Candida Albernaz

    [email protected]

    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".