Campos na história da ditadura
Aluysio Abreu Barbosa e Aldir Sales 03/08/2019 18:17 - Atualizado em 16/08/2019 14:18
“Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”. A semana começou com a polêmica declaração do presidente Jair Bolsonaro (PSL) ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que teve o pai – Fernando – preso e morto durante o período. E terminou com constatação do Ministério Público Federal (MPF) que Campos teria participação fundamental nesta página da história do país. A procuradoria concluiu, com base em depoimentos do ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) Cláudio Guerra e na análise de documentos, que os corpos de Fernando Santa Cruz e de outros 11 presos políticos foram incinerados nos fornos da usina Cambaíba entre 1973 e 1974. As primeiras referências de Guerra foram publicadas no livro “Memórias de uma Guerra Suja” e, posteriormente, geraram o inquérito do MPF.
Cláudio Guerra foi denunciado por ocultação e destruição de cadáveres pelo MPF. O inquérito, segundo o procurador Guilherme Virgílio, foi concluído no dia 26 de julho, três dias antes das declarações de Bolsonaro, porém, estava em segredo de Justiça. No entanto, assim que o livro saiu, um dos herdeiros de Cambaíba, o empresário Jorge Lyzandro, pediu que o Ministério Público Estadual (MPE) de Campos abrisse investigação. Em 10 de agosto de 2012, o promotor Marcelo Lessa concluiu: “desses supostos assassinatos ou ocultação de cadáver, não há o menor indício sério e idôneo de quem possam ter ocorrido em território campista”, como mostrou a coluna Ponto Final na última quarta-feira.
Ao Ponto Final, o inspetor de Polícia Civil José Bainha, da família dos proprietários do espólio de Cambaíba, destacou o inquérito do MPE que não encontrou indícios dos crimes e concluiu que o relato de Cláudio Guerra “parece ser um devaneio irresponsável (...) talvez para se promover e angariar alguns segundos de fama em rede nacional, o que até acabou conseguindo, infelizmente às custas da honra alheia”.
Para reforçar sua versão, José Bainha disse à coluna que os fornos da usina ficavam em frente a uma via pública, diante de um vilarejo com 200 casas. Ele afirmou que, no período da moagem, os fornos operavam 24 horas por dia, com 20 funcionários em cada turno de 12 horas. E que, no total, a usina tinha 300 funcionários, mais o movimento dos caminhões de cana. “Meu avô (o usineiro Heli Ribeiro Gomes, duas vezes deputado federal e vice-governador do antigo Estado do Rio) era um político importante e conhecido na cidade. Se isso tivesse acontecido, diante de tanta gente, não seria explorado na época?”, questionou.
Por outro lado, o MPF diz que a confirmação nominal dos corpos levados por Cláudio Guerra para incineração ocorreu em diversos depoimentos prestados à Procuradoria da República do Espírito Santo. Além da confissão, testemunhas e documentos confirmaram a autenticidade dos relatos.
Cláudio informou que sugeriu o forno da usina Cambaíba como forma de eliminação sem deixar rastros, dado que já utilizava a usina e seus canaviais para desova de criminosos comuns. Foi realizada em 19 de agosto de 2014 uma reconstituição no local, com a presença de Cláudio Guerra, com a confirmação de que a abertura dos fornos era suficientemente grande para a entrada de corpos humanos, de acordo com o MPF.
Documento oficial diz que Bolsonaro mentiu
A versão de que o corpo de Santa Cruz teria sido incinerado em Cambaíba não é a única. A Comissão da Verdade aponta também a possibilidade dele ter sido sepultado em vala comum, no Cemitério do Perus, em São Paulo. Após as declarações, Bolsonaro usou as redes sociais para dizer que Santa Cruz foi morto pelo grupo de esquerda da qual fazia parte. No entanto, o relatório secreto RPB 655 da Aeronáutica atesta que ele foi preso em 22 de fevereiro de 1974. Independente do destino do corpo, foi morto pela ditadura que o presidente nega ter existido.
Em meio a toda polêmica, o presidente ainda trocou os integrantes da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Felipe Santa Cruz entrou com ação para que Bolsonaro explique o que quis dizer e, na última quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal deu 15 dias para manifestação.
“Não há vestígios de corpos em Cambaíba”
O promotor estadual Marcelo Lessa vê com surpresa a conclusão do Ministério Público Federal (MPF) de que corpos foram incinerados na usina Cambaíba, durante a ditadura. Em 2012, ele decidiu pelo arquivamento da investigação das denúncias e diz que hoje reitera tal posição. Por conta do espaço, a entrevista foi editada. A íntegra pode ser conferida no blog Opiniões (opinioes.folha1.com.br), de Aluysio Abreu Barbosa, hospedado no Folha 1.
Folha da Manhã – Você decidiu pelo arquivamento da investigação das denúncias de queima de corpos de 12 presos políticos da ditadura militar nos fornos da usina, feitas pelo ex-delegado do Dops Cláudio Guerra no livro “Memórias de uma Guerra Suja”. Como viu o inquérito do MPF que teve conclusão em sentido oposto, de validar as denúncias?
Marcelo Lessa — Não cheguei a ver o inquérito, mas as notícias divulgadas por meio da imprensa sobre as conclusões do aludido inquérito, que, segundo o que li, teria resultado em denúncia em face do ex-delegado do Dops. Caso a informação esteja correta, recebo com surpresa, a uma porque tais crimes estão anistiados, a duas porque prescritos, a três pela própria competência da Justiça Federal na espécie, e a quatro pela materialidade de tais delitos (como se conseguiu demonstrá-la, tantos anos depois?). Ratifico o entendimento que adotei à época e que levou ao arquivamento do procedimento investigatório criminal que havia no âmbito do Ministério Público Estadual, o que, acredito, era a solução mais técnica (ainda que não exatamente a mais popular) na espécie.
Folha — A investigação que você conduziu foi instaurada a partir de notícia-crime do empresário Jorge Lyzandro, um dos herdeiros do espólio de Cambaíba, por conta das denúncias do livro. Por que você pediu o arquivamento sem ouvir Cláudio Guerra?
Marcelo — Por um razão muito simples: ele já havia escrito e publicado um livro inteiro sobre o assunto. Duvido que tivesse algo a acrescentar. Naquele momento, julguei que o que ele buscava era se promover e, neste caso, achei que não era o papel do Ministério Público contribuir para este tipo de promoção. Além do mais, segundo o entendimento que adotei e hoje reitero, tecnicamente não fazia sentido investigar um crime prescrito e anistiado.
Folha — No documentário “Forró em Cambaíba” (2013) você chegou a declarar sobre as denúncias de Cláudio Guerra: “Não vou bater palmas para maluco dançar”. Isso não é uma desqualificação a priori?
Marcelo — Não assisti ao documentário e, tanto tempo depois, não consigo me recordar o contexto em que teria sido dita esta frase. No entanto, dentro da resposta anterior, está explicada no sentido de que, se considero o crime anistiado e prescrito, ouvir o autor do livro no momento em que estava fazendo a divulgação, seria tão-somente garantir um espaço para fazer “merchandising”.
Folha — O caso voltou à tona após o presidente Bolsonaro, questionar a atuação da OAB na investigação da facada que recebeu de Adélio Bispo em Juiz de Fora (MG). E atacar o presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz. Na página 58 do livro de Guerra, ele conta como, em 1974, transportou o corpo do ex-militante de esquerda Fernando Santa Cruz, pai de Felipe, da Casa da Morte para ser incinerado. O que achou do episódio?
Marcelo — Não acho apropriado, como membro do MP e num momento de polarização político-ideológica sem precedentes como esse em que vivemos, fazer qualquer consideração crítica acerca de uma manifestação pública do presidente. Peço desculpa, portanto, por não responder concretamente à pergunta. No entanto, em termos gerais, tenho que nenhuma morte, de nenhuma pessoa, seja em que circunstância ocorra, deva ser objeto de deboche ou comentário irônico.
Folha — Na própria segunda, após a reação, Bolsonaro afirmou que Fernando Santa Cruz teria sido morto pelos integrantes da própria Ação Popular Marxista-Leninista, do qual fazia parte. Isso foi desmentido pela revelação do relatório secreto RPB 655, do Comando Costeiro da Aeronáutica, que atestou que ele foi preso pela ditadura em 22 de fevereiro de 1974. A verdade pode ser distorcida pela ideologia? Isso não é ainda mais grave no presidente da República?
Marcelo – Aqui, mais uma vez, peço desculpa por não responder diretamente, já que a pergunta se refere a uma fala do presidente. Agora, não posso deixar de reiterar que a verdade deve ser um compromisso de qualquer autoridade pública, doa a quem doer.
Folha — A Comissão Nacional da Verdade, que investigou esse e outros milhares de casos, deu duas possibilidades ao destino do corpo de Fernando: teria sido sepultado numa vala comum no Cemitério dos Perus, em São Paulo, ou incinerado em Cambaíba. Na sua experiência, acha possível se chegar a uma conclusão definitiva? Por quê?
Marcelo — Esse foi um dos fundamentos pelos quais arquivei aquele procedimento investigatório: a impossibilidade técnica, segundo os recursos investigatórios de que dispunha, para comprovar se um dia algum corpo foi de fato queimado nos fornos da usina. Pelo tempo e por todas as intempéries a que o local foi exposto, não creio ser possível determinar sinais ou vestígios de que corpos tenham passado pelo local, quanto mais identificar de quem eram.
Folha – Alguns, como você, alegam que os crimes cometidos pela ditadura, assim como pelos grupos de esquerda que fizeram oposição armada ao regime, ficaram para trás com a Lei da Anistia, de 1979. Outros, como os procuradores da República de Campos, alegam que o crime da tortura é imprescritível. Como fica essa discussão no plano jurídico?
Marcelo — Anistia e prescrição são institutos que não se confundem. Anistia é um ato de política legislativa que resolve “perdoar” a infração, conduzindo à extinção da punibilidade de seus autores. Foi o que ocorreu com a Lei da Anistia, “ampla, geral e irrestrita”, como se dizia nos anos 80. Anistia não se confunde com prescrição; uma coisa não impede a outra, e inclusive, ambas as figuras jurídicas podem se sobrepor, como na espécie se sobrepõem. A prescrição é a perda do direito de punir, por parte do Estado, em face do decurso do tempo. A tortura é um crime prescritível. Existem dois tipos de crimes imprescritíveis, na atual Constituição: o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra ordem constitucional e o estado democrático. A tortura não está, portanto, dentre os crimes imprescritíveis. O que a tortura é e, mesmo assim, nos termos da atual Constituição, é insuscetível de graça e anistia. Mas a Lei de Anistia de que estamos falando é anterior à atual Constituição. E, além disso, no caso concreto, o que investigava não era a tortura, que teria ocorrido na “Casa da Morte”, e, sim, o crime de ocultação de cadáver, que não se confunde com a tortura quando em vida, já que os cadáveres supostamente teriam sido transportados para serem incinerados em Campos. Eram cadáveres, segundo o livro; portanto, as pessoas já haviam sido mortas quando seus corpos eram trazidos para Campos. O crime, portanto, é outro (ocultação de cadáver), que não se confunde com a tortura daquelas pessoas, supostamente consumada, inclusive, em outra Comarca (Petrópolis).
Perguntas não respondidas pelo MPF
A equipe da Folha ofertou espaço para o procurador da República Guilherme Virgílio falar sobre o inquérito e esclarecer dúvidas. A assessoria de imprensa do MPF, no entanto, não respondeu sobre a possibilidade de entrevista e deixou os seguintes questionamentos sem resposta:
— Quantos depoimentos e de quem, caso seja possível revelar, além do Cláudio Guerra, foram utilizados para embasar a denúncia?
— Quais foram os documentos e quantos foram analisados também para chegar a essa conclusão?
— Houve relatos de alguém além do Cláudio Guerra que corroborou com a versão do ex-delegado do Dops? De quem ou de pessoas em quais funções?

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