A Fada ou a Bruxa da Lagoa de Cima?
Fernando da Silveira 15/08/2019 15:40 - Atualizado em 26/08/2019 13:47
“Prensado entre o Itaoca e a Cordilheira,
O lago duas vezes se arredonda,
Em torno da reborda montanheira.
E a sua água faz eterna ronda”.
— Barbosa Guerra.
 
Vivia cercada de mães d’água, curupiras e boitatás, por isso tudo sabia sobre estes entes misteriosos, mas não sabia que era — ela, tão criança ainda — uma Fada (assim eles a chamavam), que enfeitiçara dois jovens da Pedra encantados com a cor de jambo maduro de sua pele a emoldurar o imã de indescritíveis olhos verdes.
Os seus caramujos mágicos, que traziam para as praias lacustres o mistério do ruído do mar, nada lhe disseram sobre a atração que exercia sobre os moços da Cidade dos Campos dos Goytacazes. Nem que eles — não tanto pelo espírito de aventura, mas pelo precoce cansaço do barulho estridente dos bondes rangendo pelos trilhos presos nas ruas de macadame — encontraram refrigério no suave murmurar das águas da Lagoa de Cima, terna e levemente acariciadas pelo perfumoso vento das matas que as alimentavam.
Como poderia adivinhar que os dois rapazes, que estavam inicialmente ansiosos para se embalar ao som da orquestra das cachoeiras do Imbé a entoar, com todos os seus instrumentos, a música virginal das florestas intocadas, mudaram de projeto? Como a trêfega menininha do seu tempo de criança poderia perceber que eles, esquecidos do intento inicial, renderam-se às brilhantes águas dormentes do “lagão” encantado? E que a sua figurinha de caboclinha enxuta, aos olhos deles, dominava a paisagem deslumbrante... Mais que isso: dava um toque amorável à suave temperatura do clima de sonho que passaram a fruir.
Jamais atinaria a razão de suas constantes visitas à Lagoa de Cima, nem o porquê dos sucessivos convites para com eles pescar. Na displicência da puberdade sem abismos, como poderia divisar nos seus semblantes o fogo da contida paixão que os devorava? Afinal, era uma paixão de poetas, muda paixão toda feita de silêncios e renúncias... Mas o tempo, avançando mais e mais, desenhou, já agora nas entranhas da adolescente, a malícia instintiva de fêmea altamente sensual. Como não notar que era para a dupla de admiradores a Rainha da Lagoa de Cima? Como não perceber que era fortemente desejada, quando um dos moços da Cidade, entrando em borbulhante sarabanda, balbuciou compassadamente nos seus ouvidos uma doce quadrinha bem típica do folguedo da região?
 
Ai! Mana Chica!
Rosto cor de colhereira.
Teus dentes são milho branco.
Teus cabelos cachoeira.
Como, ao participar da cantante, bela e singular Mana Chica, que sacode, nas noites estreladas, as margens de sua mirífica Lagoa de Cima, não entender que era atingida em cheio também, embora ao longe, pelos olhos cúpidos do outro moço por ela enfeitiçado? Como não se sentir toda poderosa? Tantas vezes, quase desfaleceu, na inenarrável vertigem do poder de fêmea sobre eles e do adivinhado gozo...
Com o desenrolar do tempo, a inquieta adolescente, mesmo sem perceber, tornou-se uma jovem extremamente ladina, como se Lilith, a mulher demoníaca de Adão, tivesse tomado conta de sua alma. Se era o rico troféu que os dois moços disputavam, por que a bela mulher, pois se sentia de fato uma bela mulher, não criar situações para abrir caminhos mais amplos na Cidade dos Campos dos Goytacazes? Afinal a Lagoa de Cima não cabia mais nos seus sonhos. Por que não buscar novos horizontes? E tudo conseguiu pelo fervoroso empenho dos dois rapazes. Eles já estavam em Niterói, um havia ingressado no curso de medicina, enquanto o outro perpassava brilhantemente pelos bancos acadêmicos de futuro lidador de direito, mas com os olhos voltados para as relações internacionais. E de forma tão reluzente que as fronteiras do Brasil iriam, adiante, se tornar acanhadas para o moço enamorado. Lá da capital da Velha Província, ambos, através de suas abastadas e influentes famílias, abriram-lhe os caminhos de constantes êxitos existenciais.
Como foi vertiginoso ir das benesses do ensino gratuito no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora e do ensino público do Instituto de Educação Aldo Muylaert, onde obteve o diploma de professora, à condição de docente da rede estadual de ensino. Para tanto, teve que se submeter às provas da Carreira Inicial, realizadas em Niterói. Foi para onde se deslocou com uma centena de colegas, como passageira do célebre Trem das Campistas, aguardado todos os anos ansiosamente por jovens niteroienses e cariocas ávidos de aventuras. Na ocasião, integrou o pequeno grupo de doidivanas que aproveitava a oportunidade da total liberdade desfrutada por alguns dias num centro maior, para se entregar às maiores loucuras, driblando, assim, os seus dois benfeitores, que a esperaram inutilmente na estação e que estavam dispostos a cercá-la de gentilezas.
Foi aí que Lilith terminou de sufocar dentro dela a lírica mocinha da Lagoa de Cima. Daí desdenhar o amor, mais feito de alma do que de carne, dos seus primeiros benfeitores. E foi assim ao longo de sua vida. Por onde passou, deixava um rastro de luz a atrair tresloucadas figuras, que se esfacelavam sob o impacto de claridade mortal. Mas o suceder dos anos é pérfido também. Tão perverso que ela sentiu na carne a desolada ponderação do poeta Izimbardo Peixoto:
O tempo, que tudo apaga,
É para mim aleivoso.
Se estou triste, ele para,
E corre, se sou ditoso.
Verificou, abismada, que ficara velha, sem um companheiro para com ela dividir as apreensões e dores do outono. Uma criatura feia, sem filhos, sem sonhos, sem esperança. E sem passado também, tal o vazio do sexo sem amor. Como sofria, ao ser solenemente ignorada, ela que teve o mundo aos seus pés... Quanta tristeza a envolvia ao perceber no semblante de um velho médico, que a cumprimentava formalmente, um surdo rancor. Sim, percebia um surdo rancor naquele homem de fronte encanecida que, na mocidade foi seu incondicional admirador e incansável benfeitor. E, recém-formado, voltou apressado à Santa Terrinha com o intuito de desposá-la. E ela, por estar se relacionando com um filho de usineiro, que a ia levar à Europa, simplesmente o desprezou... Agora, quando o encontra, tem a impressão de ver desenhado nos seus lábios a palavra Bruxa. E que numa careta a repete insistentemente: Bruxa, Bruxa, Bruxa.
Não sabe ela, porém, que o outro admirador e benfeitor dos seus verdes anos ainda guarda a sua imagem de menina-moça no coração. Alheio ao que aconteceu, perde longas horas, no seu gabinete de trabalho, a lembrar dos momentos vividos na Lagoa de Cima. E a Fada dos sonhos de outrora irrompe soberana em sua saudade. De uma forma tão nítida que chega a ela associar o mais terno e romântico poeta campista. Não é por uma mera coincidência — diz ele com os seus botões — que a inesquecível Fada nasceu na então freguesia de Santa Rita da Lagoa de Cima, berço de João Antônio de Azevedo Cruz, o doce poeta que, mesmo na hora da morte, não deixou escapar a visão romântica do mundo. Tão romântico era o autor de Amantia Verba, que ao morrer numa noite de lua cheia, pediu aos que lhe cercavam o leito, que abrissem as janelas para que a pudesse contemplar. E ao divisá-la, venceu todos os limites geográficos, indagando: Não parece o luar de Verona? Quem sabe, se o Velho Diplomata, ao lembrar dos últimos momentos de Azevedo Cruz, também se entrega ao sonho vendo a sua Fada esperando-o no Céu?
Sim, a Bruxa não atina nem de leve que ainda permanece Fada na lembrança de alguém que nunca a deixou de amar. Tão distantes estão, pelo tempo, como pela geografia, que jamais a Megera, que se tornou, poderá imaginar ser ainda lembrada como a mocinha das noites estreladas, na Lagoa de Cima. Em longínquas terras cobertas de neve, um Velho Diplomata, que apesar da compulsória ainda presta serviços ao Itamarati, ao dela se recordar com a sua feição de menina-moça, sempre declama baixinho o soneto Calma Silentia Lunae de Azevedo Cruz:
 
“Lembra-te? Era ao crepúsculo, à noitinha...
Uma estrela, outra mais, e a Esfera inteira
Toda fulgiu de luminosa poeira,
Como ao toque de mágica varinha!
 
E a Lua, então, a eterna mensageira
Dos namorados, confidente minha
E tua, a macilenta e feiticeira
Face erguendo entre as serras, vinha, vinha...
 
Vestia o luar o dorso das montanhas,
Lembrando as nuances bíblicas, estranhas,
Das soturnas paisagens do Tabor!
 
E em coro, a angélica harmonia,
Doce, diluída, flébil, erradia,
Do nosso grande e imaculado amor”.  
 
Não era ela a Fada benfazeja que o arrastava para contemplar a lua refletida no espelho de cristal da Lagoa encantada?

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