Caso do Bar Bodega: os deslizes do jornalismo
paulavigneron 04/11/2016 13:57
Diariamente, fatos relacionados a crimes são amplamente noticiados em veículos de comunicação, sejam televisivos, radiofônicos, impressos ou online. Grande parte das matérias se refere à editoria de polícia, conforme intitulam os jornalistas. No entanto, apesar da suposta facilidade na apuração desse tipo de notícia, muitos erros (que deveriam ser punidos devido à extensão do prejuízo) dos jornais brasileiros podem ser encontrados nessas histórias, nas quais bandidos e policiais são as principais atrações.
A ausência de apuração mais cuidadosa e aprofundada, vinculada ao pouco tempo dedicado a cada pauta, leva a imprensa a falhas grotescas e, muitas vezes, irreversíveis para as vítimas do “quarto poder”. Livros de jornalistas que se entregaram a um exercício de distanciamento para análise mais imparcial sobre a profissão possibilitam às novas gerações o conhecimento acerca das leviandades cometidas outrora.
Um dos repórteres que trabalhou para reverter crimes de informação cometidos pela imprensa é Carlos Dorneles. Jornalista da TV Globo, Dorneles dedicou-se a buscar os fatos sobre o crime do Bar Bodega, em São Paulo, na década de 90. O autor do livro Bar Bodega – um crime de imprensa, lançado em 2007, revirou os materiais jornalísticos produzidos e publicados na época, teve acesso aos inquéritos e apresentou aos brasileiros a verdadeira história da noite em que foram assassinados dois jovens de classe média no estabelecimento, que pertencia aos atores Luiz Gustavo, Cássio e Tato Gabus Mendes.
Na época, a Polícia Civil do Estado de São Paulo acusou erroneamente um menor de idade, chamado Cléverson, de ser o líder do bando que matou um dentista e uma estudante no bar. Após roubarem, os cinco bandidos (incluindo uma mulher, responsável por dar cobertura dentro de um táxi dirigido por ela) fugiram. Antes da partida, no entanto, um deles se envolveu em uma discussão com o dentista, de 26 anos, e o agrediu e matou. Do lado de fora do Bodega, outro assaltante atirou em direção à janela. A bala atingiu a estudante de odontologia, de 23 anos.
A classe média paulistana e a imprensa, revoltadas com o crime, fizeram pressão na polícia para que o caso fosse imediatamente solucionado. Diante da dificuldade de encontrar os assaltantes, agentes incriminaram o adolescente Cléverson que, à época, tinha 17 anos. Ele havia sido apreendido por assalto, dias depois do caso Bodega, e foi confundido por um policial. O menor, ao afirmar que não conhecia o bar e não sabia das mortes, foi brutalmente agredido e torturado pelos militares e civis, sedentos pela confissão do suposto assassino.
À medida que era violentado, Cléverson citou nomes de colegas e conhecidos do bairro onde morava, em São Paulo. Valmir da Silva, Valmir Martins, Luciano, Natal, Jailson, Benedito, Marcelo Nunes e Marcelo da Silva foram detidos após terem sido apontados pelo adolescente. No entanto, nenhum dos jovens tinha participação no crime do Bar Bodega. Enquanto os meninos tentavam se defender, eram cruelmente torturados pela polícia, que coagia o grupo a dar detalhes do caso.
A cada novidade, a imprensa, acrítica e despreparada para noticiar o caso, comparecia em massa para apresentar, posteriormente, à sociedade o resultado das investigações da polícia. Com manchetes sensacionalistas, matérias televisivas e radiofônicas exageradas, aliadas a perguntas para pressionar os detidos e apoio ao ideologicamente frágil movimento Reage São Paulo, o jornalismo brasileiro cometeu um dos mais grotescos erros registrados na história recente da imprensa: acusou, sem provas concretas, e com base apenas na versão da polícia, nove pessoas inocentes, cujas vidas foram seriamente prejudicadas pela cobertura midiática equivocada.
Após a reviravolta do caso, provocada pelo promotor Eduardo Araújo da Silva, o desfecho do caso do Bar Bodega foi mudado. Os verdadeiros assaltantes foram presos e os registros da imprensa, encerrados. No entanto, as consequências da acusação, causadas principalmente pelo jornalismo, foram imutáveis. Situação semelhante ocorreu no caso Escola Base, também nos anos 90, no qual pais de alunos, o motorista de uma Kombi, donos de um colégio infantil e uma sócia, todos de São Paulo, foram erroneamente acusados de abuso sexual – erro este reforçado pela imprensa do país.
Carlos Dorneles volta a buscar os meninos apontados como assassinos depois de 10 anos do fim das investigações. Os relatos resultaram na segunda parte de Bar Bodega – um crime de imprensa. Falta de oportunidades, discriminação, dificuldade financeira devido ao preconceito e as mudanças causadas na família devido à sucessão de erros da polícia de São Paulo e da imprensa são apresentadas no livro.
Apesar de bons elementos para ampliar as histórias dos nove suspeitos, o jornalista perdeu a chance de uma abordagem mais profunda da situação em que viviam os homens no ano de 2006. Apenas a vida do protagonista Cléverson é detalhada no trecho, tornando secundários os demais dramas vividos pelos outros oito rapazes e deixando soltos importantes detalhes que poderiam compor a maior obra jornalística sobre o crime cometido pela imprensa e pela polícia no caso do Bar Bodega.

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