Não é nada
Edmundo Siqueira 15/10/2023 20:32 - Atualizado em 15/10/2023 20:34
Guernica, uma das obras mais famosas de Pablo Picasso (1881–1973), pintada a óleo em 1937, é uma "declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência". O quadro, além de ser um ícone da Guerra Civil Espanhola, é hoje um símbolo do antimilitarismo mundial e da luta pela liberdade do ser humano.
Guernica, uma das obras mais famosas de Pablo Picasso (1881–1973), pintada a óleo em 1937, é uma "declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência". O quadro, além de ser um ícone da Guerra Civil Espanhola, é hoje um símbolo do antimilitarismo mundial e da luta pela liberdade do ser humano. / Wiki
Acordou e olhou para o relógio. Sentiu preocupação. Olhou para os lados e viu que tinha tudo que havia de querer, mas ficou preocupado. As crianças ainda dormiam; a ausência de barulhos eletrônicos denunciava. Mas já havia gente acordada. Vindo da cozinha, e depois da sala, os sons abafados dos pratos sendo colocados em jogos americanos, e os estridentes e arranhados da louça.

Decidiu levantar, não sem antes tatear a lateral da cama em busca da esposa. Achou. Pensou em acordá-la. Desistiu. Levantou-se, pé ante pé. Sentiu preocupação novamente. O que está me preocupando? Parece pressentimento. Não. Nada de superstição. Deve ser alguma bobagem inconsciente, ou esses tempos malucos. Ou, deve ser da idade. Ah! Já sei o que é: Aquele médico que fui essa semana, que ela me arrastou, ali no prédio de consultórios da 13 de maio. Sabia que ia me prejudicar — mais que me ajudar.

Havia feito 60 há pouco. Uma ou outra enfermidade, mas nada de mais. Os médicos ajudavam, obviamente. Mas pensava, mesmo sabendo estar errado, que descobrir doenças era pior que tratá-las antes de ficarem crônicas. Sentou-se para o café já com todos acordados. Estava tudo como antes, na verdade como sempre: as meninas conversavam sobre os jogos, o mais novo queria cereal, o namorado que na sua casa já dormia, a seu contragosto, e falava sem parar querendo mostrar conhecimento que não tinha. Sua mais velha arrumou aquele tipo, que ele detestava; quieto. Sorvia mais uns goles de café, o ouvindo falar sobre geopolítica de botequim fazendo cara de intelectual. Como detestava aquele garoto pedante.

Se estava tudo como sempre, a preocupação ainda não tinha mostrado sua motivação real. Pegou o jornal que mantinha a leitura no modelo impresso, jogado por cima do muro, embalado em saco plástico transparente. Sempre vinha amassado, e ele resmungou alguma coisa inaudível. Leu de fio a pavio tentando descobrir se a preocupação estava ali. Mesmo que fossem as premonitórias. Achou que não estava, apesar de ter lido vários motivos para as duas formas. Enquanto lia sobre o atual conflito no Oriente Médio deu um sorriso de deboche lembrando do menino.

Como era domingo, o dia seguiu dentro do esperado, com as crianças indo e voltando, almoço barulhento, cinema programado à tardinha. Mas ela estava lá, insistia em perturbá-lo, como uma voz que não dizia nada que ele pudesse entender, era só uma sensação; uma inquietação. A mulher soube, ele contou. Não pôde guardar aquilo por muito tempo sozinho. Disse-lhe que era bobagem, que estava ficando velho e para parar de sandices. Embora ele quisesse obedecê-la, não se livrou do sentimento inquietante.

Mais para o fim do dia, o telefone tocou. Olhou para a tela, afastando para poder enxergar e viu que era sua irmã. Ah, aí está o motivo! Sabia que não estava preocupado à toa. Minha irmã nunca me liga, certamente aconteceu alguma coisa. Agora vou descobrir o motivo dessa aflição. Ele e sua irmã não se falam com regularidade. Divergências ideológicas e uma partilha difícil da herança, alguns anos antes daquela ligação, trataram de afastá-los.
Mas a ligação seria apenas para confirmar se iriam na formatura da caçula da irmã pois era preciso ter certeza, dado as limitações dos convites. Encerraram a ligação depois de tudo acertado, e definitivamente ele havia desistido de procurar entender sua preocupação constante naquele domingo. Aceitou que poderia mesmo ser uma bobagem, e seguiu com seu dia, que chegou ao final antes que ele percebesse, principalmente depois que aceitou aquele sentimento, que poderia ser mesmo só uma sandice, como disse a esposa.

Deitados, o casal preparava-se para os últimos minutos acordados do dia quando ela perguntou se o marido havia encontrado as motivações de sua preocupação. Respondeu negativamente, e disse que ela estava certa, não passava de um sentimento, que poderia ser da idade, afinal. “Não é nada”, ouviu dela. Ao ouvir aquilo, ele finalmente entenderia. Não era nada; era tudo.

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