Quedas e promessas
Edmundo Siqueira 30/09/2023 23:34 - Atualizado em 30/09/2023 23:41
Foto: Cintia de Medeiros Galvão / https:/trilhandomontanhas.com
O celular já não notificava as mensagens, programado assim para desacelerar, e em dias bons, sonos mais profundos já teriam iniciado àquela altura. Passava das duas da manhã e ela estava no computador desde cedo. Pescoço esticado, uma espreguiçada com os braços para cima, e em ato contínuo, o queixo apoia-se nas mãos, com os cotovelos na mesa, olhando para a tela onde o cursor piscava depois do ponto final. Se estava pronto ou não, ela saberia no outro dia, depois de revisar novamente.

O trabalho lhe satisfazia, mas cobrava de si mesmo uma ligação mais íntima com a natureza, e tentava se organizar para o esporte e alguma arte. Por vezes conseguia, com a escalada. Praticava na academia perto de casa, mas gostava mesmo do ar livre. Era ali, em cumes, vales e cumeeiras que fazia mais sentido o esforço físico, e o afastar-se de aulas e artigos. Naquele dia, havia conseguido. Não seria a primeira vez em áreas montanhosas, já se aventurava antes em falésias, mas fazia tempo. Queria se reconectar, ir onde os sentidos se faziam mais fortemente.

O laptop foi fechado depois das duas, mas acordou cedo para ir. O destino era uma Chapada no interior do Nordeste, e haveria um bom pedaço de chão para percorrer de jipe antes do trajeto ser feito apenas por botas. Deixaria para dormir na barraca. A saída para o pico seria no escuro, quando o tapete de estrelas fosse visto em todo seu esplendor, naquela região de pouquíssima luz artificial. Era preciso sair ainda de noite, o único jeito de escalar nas primeiras horas da manhã, nas bordas de saliências desuniformes feitas naturalmente e por processos erosivos.

Depois da checagem habitual, que ela repetia antes de sair, ergueu a mochila nos ombros, onde estavam água, os mosquetões, a cadeirinha e o capacete. Algum medicamento e uma tala, para imprevistos. Vestia uma calça cáqui de material resistente e uma blusa de botões e mangas compridas. Por baixo, roupas apropriadas para terrenos mais acidentados e subidas verticais. A sapatilha seria a substituta das botas antes da subida para o cume, e a mochila maior daria lugar à uma espécie de pochete onde os equipamentos seriam levados. Uma bolsa com magnésio em pó, essencial para aumentar a aderência e retirar a umidade das mãos, ficaria a tiracolo.

O peso nos ombros não seria problema quando carregado de materialidade. O contrário, o peso mental, usado na analogia, esse sim. Cordas, polias e o Baudrier pesam, mas ela ficava mais leve a cada passo de dança com a montanha. Fazia bem. Aquilo não era uma ode à natureza, e não era exatamente catártico. Era apenas um desanuviar de pensamentos que o trabalho exigia dela.

O sol começava a mudar a cor das coisas quando os pés dela encontraram a primeira fenda na pedra. As rochas esculpidas eram pontos de apoio, e a respiração ficava mais profunda. Havia medo, e a dor era inevitável. Mas o que seria da vida sem elas? Será que teríamos avançado a passos largos para o progresso sem essas expressões do corpo vivo? Sem conflitos internacionais estaríamos dispostos a viver na aldeia global que hoje se formou, ainda que contraditoriamente? Havia medo em Churchill, e a dor dos que morreram e dos que ficaram com os espólios da guerra não foram evitados, mas o pior foi evitado. Foi evitado? Acho que não. Estaríamos em uma sociedade justa, mesmo os passos largos dados? Talvez não. Há tanto de injustiça no mundo, e sequer a fome de nossos compatriotas conseguimos vencer. Não, não houveram vitórias. Mesmo no ensinamento da dor, e depois dele. Mesmo que ainda tenhamos medo, ainda temos que conviver com fantasmas de guerra. Crianças, meu Deus, crianças! Não vencemos; perdemos. A dor e o medo não foram o bastante.

O som das pequenas pedras desprendendo-se da parede irregular, pelo esfregar da sapatilha, interrompeu os pensamentos dela abruptamente, e um pico de adrenalina fazia cada célula do corpo ser usada para sobreviver. Poucos segundos até o dedão do pé direito encostar em outra saliência de pedra, mais abaixo, e a estabilização ser realidade novamente. Mas não sem alguns arranhões no cotovelo, e um suspiro longo, que lembraram-na que era preciso concentração.
Foco. Em um buraco na parede de contorno liso, enfiou os dois joelhos, com as pernas flexionadas, formando dois fortes pontos de apoio: um com a ponta dos pés, outro com a paleta. Sacudiu as mãos, agora livres das pontas de pedra que antes segurava, e outro mergulho no pó branco no interior da sacola de magnésio.

A subida, e agora a queda, para ela ser confrontada com seus próprios limites, com sua própria humanidade. A lição que a natureza lhe dava foi rapidamente relacionada com os pensamentos que a fizeram cair. Quedas, retomadas, arranhões e retrocessos violentos. Ela entendeu, e agradeceu o ensinamento antes de continuar a subida.
Havia esperança para retomar a escalada, mas o que fez ela continuar foram as promessas. Pessoais e coletivas que havia feito, antes. Era preciso continuar por elas, mais que pelas esperanças; essas, carentes de motivação, sendo naturalmente passivas.

Agora, com a determinação focada de sempre, e a velocidade de impulsos retomada, e com o esvaziar possível dos pensamentos, ela seguiu. Antes do cume, um último desafio: a ponta de pedra final estava distante, por um erro de percurso. Promessa e esperança. Foi para trás só para pegar impulso, e em um salto chegou ao outro ponto. No alto da Chapada, ofegante e com as mãos na cintura, a paisagem compensava, mas havia algo mais forte que fez o sorriso dela surgir, quase que involuntariamente. Promessas cumpridas. O que seria do mundo e da democracia sem elas?

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