Cana e desespero
Edmundo Siqueira 27/08/2023 20:12 - Atualizado em 27/08/2023 20:18
Quando ele nasceu, já faz muitos anos, tudo em volta era cana e desespero. Havia algumas casas no centro, e alguns comércios atuavam no salvamento de suprir as necessidades de quem tinha começado a viver em urbanidades, e aproveitar delas as amenidades. Mas havia muitas plantações de cana-de-açúcar, havia muito desespero das pessoas que eram forçadas a trabalhar nesses canaviais de gente gananciosa. A maioria deles, dos gananciosos, não eram gente daqui, que nasceu por perto. Vieram de cidades outras construídas ainda antes, lá depois do oceano. Chamavam de ouro branco o que era produzido aqui. Acho que é uma forma correta de chamar, por que a retirada do doce da cana recebe o mesmo pesar da retirada do ouro nos garimpos e minas. É preciso muita gente para fazer o amarelo do ouro ir parar em jóias, e o doce no pó branco.


Apesar de provocar dor, todos se favorecem do mesmo pó branco que sai das terras da planície, das áreas que o rio não toma conta. A riqueza fez as casas começarem a ficar mais vistosas, as ruas ganharam árvores bonitas e calçamento de pedra, e algumas placas são erguidas onde se vende roupa, livro, panela e lampião. As coisas melhoram lá no centro, parece que mais gente anda e as pessoas começam a ficar mais educadas umas com as outras. Mas em volta ainda é cana e desespero.

Ele foi colocado dentro de uma estrutura oca de madeira que cobria um cilindro de latão que girava em seu próprio eixo. A mãe, seja lá quem ela for, o colocou ainda bebê na boca de lata que ficava para a rua, e girou a manivela até que ele ficasse exposto para o outro lado. Depois de um tempo ele soube que a freira que o buscou no cilindro ficou surpresa, pois ele, ainda bebê e abandonado, não chorava. Talvez já tivesse tomado consciência da vida difícil que teria. Depois de ser recebido pelas freiras da Santa Casa, uma família do outro lado do rio decidiu ficar o bebê, que estava espertinho. Ele cresceu sabendo que não havia nascido daquelas pessoas, mas nunca soube quem o colocou nesse mundo violento, onde já foi obrigado a trabalhar nos canaviais das terras da usina, assim como seu pai de criação.


Quando iam ao centro, comprar sal e querosene, o que ele via não condizia com o outro cenário, do outro lado do rio. Era perto, separado apenas pela água turva e amarela do Paraíba, mas a distância de sua vida para a vida deles, do centro, era brutal. Quando a rua era mais lisa, com as pedras mais homogêneas, a carroça que o pai conduzia até o armazém ficava um pouco mais estável e ele podia ver as lojas e o casario do centro. Com as canelas nuas balançando para fora, pés calçados com borracha e um dos braços abraçados à grade de madeira, ele ficava maravilhado com aquela gente bem arrumada, de chapéu e terno, ou vestidos compridos escuros com colares de pérola, que atravessava a rua de um comércio ao outro, ou esperavam pelo bonde que ele só conhecia à distância e o percebia quando a carroça passava pelo trilho. Do assoalho, segurando no último fueiro, olhou para o homem que o criava guiando a carroça, e pensou em pedir para que parasse um pouco para que pudesse observar a rua. Desistiu. Não conseguiu vê-lo com nitidez; a imagem do homem curvado, de chapéu de palha e camisa de manga comprida, de botão, ficou caleidoscópica com o sol que brilhou por entre os beirais.
Quando finalmente pararam no secos e molhados da rua direita, não teve tempo de observar as coisas que ele gostava — o homem obrigava que ele o seguisse até o balcão. No interior do estabelecimento, o português anotava os pedidos do homem e ele olhava por cima da tampa de madeira que cobria uma vitrina com face de vidro. Enquanto os homens acordavam os preços e quantidades, ele viu um casal de crianças, mais ou menos da mesma idade, brincando. Não perceberam o olhar dele, mas caso vissem, perceberiam não inveja e tristeza, mas perplexidade.
Não entendia como haveria de ser a vida sem as dificuldades que passava. Viu que atrás do menino havia uma pequena pilha de livros, e algumas folhas de papel com rabiscos com tinta colorida. Ele tinha inclinação para as artes e para as linhas da arquitetura da cidade, não sabia bem o porquê, mas gostava de imaginar como aquelas casas e comércios bonitos eram criados a partir do primeiro tijolo. Queria entender como aquelas linhas e detalhes trabalhados nas paredes eram pensados. Pensou que a cidade, a urbanidade, trazia tantas oportunidades, e que daria para muitos ali naquele cotidiano. Ele não percebia, mas a cidade ia crescendo de forma desordenada, e as soluções buscadas iriam atender os que tinham poder e recurso para propô-las. E que os periféricos tinham lugar na urbanidade, mas mantinham-se periféricos e invisíveis.

Indo para casa, agora ao lado do homem que o criou, sabia que voltaria para a cana e o desespero. Mas já não era permitido o trabalho forçado e violento, e mesmo sem ele ter a menor noção, ares republicanos tentavam convencer os que ainda lutavam pela manutenção daquele sistema perverso. O desespero iria diminuir, e até a cana iria ser substituída. Mas ele não percebia.
PABLO PORCIUNCULA/AFP/JC

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]