As marcas e a rotina da Covid-19
Folha1 23/01/2021 08:18 - Atualizado em 25/01/2021 08:11
  • Wilson Araújo, paciente recuperado

    Wilson Araújo, paciente recuperado

  • Cynthia Cordeiro, médica do CCCC

    Cynthia Cordeiro, médica do CCCC

“Uma das piores coisas da Covid se chama solidão. Sem contato com ninguém, sem celular. Minha roupa, meu celular, minhas coisas, tudo foi encaminhado lá para casa porque eles já iam me dar como morto.” O relato é do locutor e radialista Wilson Araújo, de 41 anos, uma das mais de 17 mil vítimas da doença em Campos. De um lado, pacientes lutam para sobreviver à infecção pelo Sars-Cov-2; do outro, médicos batalham para manter a rotina, a saúde e ajudar no tratamento do novo coronavírus, equilibrando o desgaste emocional, físico e o compromisso com a Medicina. Enquanto profissionais e infectados enfrentam cenas de caos em hospitais, campistas continuam a colaborar para a proliferação da Covid-19, com aglomerações e desrespeito às medidas protetivas, agravando ainda mais o quadro pandêmico da cidade, que soma mais de 600 mortos. “A população perdeu o medo. Medo de morrer e medo de matar”, avaliou Cynthia Cordeiro, uma das médicas da linha de frente do Centro de Controle e Combate ao Coronavírus (CCCC).
Locutor e radialista conhecido como W.A., Wilson teve a confirmação de infecção por Covid-19 em junho, quando apresentou os primeiros sintomas após entrar de férias no trabalho. Ele contou que, na empresa em que atua, todos os profissionais receberam Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e se protegiam para evitar a doença. Dois dias depois de iniciar o período de descanso, veio o mal-estar:
— Eu comecei a sentir febre. Fui à farmácia e comecei a tomar os medicamentos de gripe, mas a febre não passava. Eu saí de férias no dia 6 de junho e fui ao hospital no dia 10. Então, foram quatro dias com febre de 40ºC, o dia todo. Remédio nenhum passava a minha febre, nem aliviava. Até que tomei a atitude de ir à Unimed e fiz o exame para a Covid. Nem pensava nisso. Então, eu fiz tomografia, o exame do cotonete (Swab) e o de sangue. Os três deram positivo. O médico disse que eu tinha 25% do pulmão infectado e que minha situação não estava ruim. Ele me liberou e me mandou ficar em observação e, caso a febre não passasse, era para voltar lá.
Após a orientação médica, Wilson retornou para casa, mas o quadro agravou. No dia 12, ele precisou voltar ao hospital. Desta vez, foi necessária a internação porque a febre persistia.
— Peguei minhas coisas e não fui nem de carro. Chamei um Uber porque eu sabia que ia me internar. Ao chegar lá, fiz todos os exames de novo. Mais uma vez, os três deram positivos. Só que, em dois dias, de 25% do pulmão infectado, eu fui para 75%. E minha saturação (de oxigênio no sangue) baixou para 88%. Ela estava em 95%. Tive com o mesmo médico, entrei na sala dele, e ele, com os olhos bem vermelhos, quase chorando, disse que, se arrependimento matasse, ele estaria morto porque não tinha que ter me liberado naquele dia — contou.
Quando a febre cedeu, Wilson foi encaminhado para um quarto na unidade hospitalar. No dia seguinte, contou, ele se recorda de ter acordado, tomado um banho e o café da manhã, sentindo que logo receberia alta por ter apresentado melhoras. Mas a sensação estava bem distante do que foi vivido pelo locutor nos dias em que passou internado. Os fatos só foram explicados a ele posteriormente.
— Acordei e vi que estava em um quarto diferente, estava em uma UTI. A primeira coisa que perguntei foi que dia era, e a enfermeira disse: “hoje é sexta-feira”. Eu falei: “sexta-feira?”. Aí, me deu um nó na cabeça. Eu pensei: “na sexta, eu cheguei aqui”. Ela me disse que eu estava dormindo há cinco dias na UTI e começou a me contar a história. No domingo, três dias depois da internação, ela entrou no meu quarto e viu que eu estava me batendo, em cima da cama. Tocou a campainha, chamou a equipe médica, e eles me levaram para a UTI. Fui intubado, mas não me lembro de nada. Tudo que vou contar agora foi a partir do meu acordar — explicou Wilson.
O despertar dentro de uma UTI para Covid
Depois de acordar na UTI, Wilson soube que quase havia morrido. “O meu coração batia 37, não bombeava sangue mais. A saturação estava abaixo de 50%. No quinto dia, o médico responsável por mim disse para a equipe médica: ‘agora, é com ele. O estado dele é irreversível. Deixem o corpo dele agir. Fizemos tudo que podíamos fazer’”, detalhou.
Diante do quadro apontado pelo médico responsável por Wilson, o cardiologista Roberto Fiuza conversou com o colega e assumiu o paciente por ter conhecimento prévio sobre o estado de saúde. Com a mudança, o locutor, já no quinto dia de estado grave na UTI, começou a tomar novos medicamentos e reagiu.
— Voltei agressivamente, derrubando tudo, batendo em médico, muito agressivo. Repito, mais uma vez, que não lembro. Foi a enfermeira quem me disse tudo e, depois, o médico. Eu acordei e levei mais três dias sem dormir porque tive muita alucinação. Foram alucinações terríveis por causa das drogas que tomei para me manter vivo e sedado. Eu não piscava. Se eu piscasse, via coisas terríveis de alucinações. Foi muito ruim — contou.
Wilson lembrou que, em muitos momentos, pensou em desistir, mas a força veio da existência de sua família, principalmente da filha caçula. “Cheguei a conversar com Deus e pedir perdão pelos meus pecados, meus erros, e que Ele me recebesse em paz. Mas aí eu comecei a pensar na minha filhinha, de quatro anos, que ainda tinha três. O que ela perguntaria para a mamãe? ‘Cadê papai, que não chega?’ E o que a mãe diria? ‘Papai está viajando?’, ‘Está com papai do céu?’, e ela sem entender nada. Mas isso me deu esperança para lutar, para voltar para casa, e eu comecei a lutar ”, narrou.
Quando saiu da UTI, o locutor estava com 40% dos pulmões ainda comprometidos. Wilson precisou, então, de fisioterapia intensiva e, no dia 1º de julho, após 20 dias internado, sendo nove na UTI e cinco em estado grave, recebeu alta. “Eu saí do hospital todo machucado. Por 20 dias, eu dormi de barriga para cima. Por causa dos cateteres da minha perna, eu não conseguia virar de lado. Saí todo ferido. Depois, meus cabelos caíram devido, acho, ao forte medicamento. Mas o que são cabelos e costas feridas diante do que passei? Eu só agradeço a Deus por estar hoje aqui falando sobre isso”, afirmou.
Wilson destacou nunca ter menosprezado ou desconsiderado a gravidade da Covid-19 e pediu que a população mantenha os cuidados.
Exaustão e medo: como é a linha de frente
Oftalmologista formada há 20 anos, Cynthia Cordeiro abriu mão de sua especialidade ao ser convocada para a linha de frente do Centro de Controle e Combate ao Coronavírus (CCCC). Desde o início da pandemia, ela atua na unidade e é uma das coordenadoras do serviço. Para a médica, os dias têm sido mais exaustivos desde que os casos de infecção por Covid-19 começaram a crescer no município.
Segundo Cynthia, os profissionais vivenciam o temor de adoecer e levar o vírus para dentro de casa. Para atuar no hospital, os médicos utilizam EPIs e mantêm higienização constante, mas, mesmo assim, a preocupação é grande.
— O medo de adoecer, de quando será a nossa vez, nos ronda a todo instante. Somos médicos especialistas que foram relotados de suas especialidades para a linha de frente da Covid. Estamos lidando com uma doença desconhecida, que assola o mundo inteiro, fora de nossas especialidades, há 10 meses — pontuou.
Cynthia revelou que a lida diária com o paciente também é devastadora:
— Lidar com paciente também é exaustivo. Além da parte clínica, das dúvidas com relação aos testes, isolamento e ao tratamento que foi tão politizado, estamos lidando com pacientes angustiados, com medo de morrer e de adoecer seus familiares. Ter que comunicar ao paciente que será internado, avisar à família que não terá visita, que foi necessária a transferência para UTI ou ainda o falecimento do paciente é devastador.
A médica apontou que as perspectivas em curto prazo não são positivas.
— Infelizmente, nossa expectativa é piora dos números de casos, internações e óbitos para as próximas semanas. É como se vivêssemos em um uma bolha onde só nós enxergamos a gravidade das aglomerações. A população perdeu o medo. Medo de morrer e de matar. Infelizmente, a doença seguiu um caminho político no qual qualquer fala, aviso, orientação, discurso técnico perdeu seu valor — lamentou.
Cynthia pede que a população evita aglomerações e se proteja. “É a única forma de vencer a doença, até que a vacina seja um sucesso. Estamos vendo jovens com quadros graves e indo a óbito a despeito de qualquer tratamento. Estamos com hospitais lotados, equipes exaustas, profissionais de saúde afastados pela doença. A hora não é de festas, encontros, aglomerações. O momento ainda é de isolar para salvar vidas”, alertou.

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