Hotel Flávio e o Centro Histórico: Anatomia de uma queda
Edmundo Siqueira 18/02/2024 23:53 - Atualizado em 19/02/2024 00:01
A Rua do Rosário, onde ficava o hotel, era, na verdade, um calçadão de pedras portuguesas. Havia um toldo na entrada que dava para a recepção, em formato de cilindro aberto, onde dois semicírculos ficavam dispostos lado a lado, sustentados por hastes de ferro pintadas de preto. Uma entrada clássica em um hotel histórico.


No calçadão, em frente ao hotel, um flamboyant dava sombra a alguns bancos, que rodeavam um pequeno canteiro. Entre a praça e o hotel, havia um corredor cultural, onde painéis em bronze mantinham uma exposição permanente e aberta sobre a escravidão, tão presente na história da cidade. As placas em bronze ficavam erguidas por pequenos muros brancos de alvenaria, com bordas marrons, um pouco mais largos que a arte, servindo de moldura. Vasos ornamentavam as laterais, e postes de iluminação de ferro fundido, estilo clássico, complementavam o local.
Todas as imagens deste artigo foram retiradas do grupo na rede social Facebook, "Recordando o passado de Campos dos Goytacazes", administrado por Cirley Serpa. As imagens foram postadas por colaboradores do espaço.
Todas as imagens deste artigo foram retiradas do grupo na rede social Facebook, "Recordando o passado de Campos dos Goytacazes", administrado por Cirley Serpa. As imagens foram postadas por colaboradores do espaço. / Reprodução


Ao redor do calçadão, além do hotel, havia um casario da mesma época, século XIX, alguns estabelecidos como comércio, outros como residências. Ao lado do hotel, um prédio um pouco mais baixo fazia companhia arquitetônica. De estilo colonial semelhante, ambos mantinham janelões na fachada, com estreitas sacadas de grades de ferro, servindo de parapeito. Com algumas diferenças: enquanto as janelas e portas do hotel eram retangulares, as do prédio vizinho tinham as extremidades superiores arredondadas, além dos detalhes da fachada que favoreciam a cor amarela no hotel, e azul real no vizinho.

O auge

Antes do corredor cultural, o hotel era a residência do Barão de Itaóca — João Pereira Bastos, advogado e último presidente da Câmara de Campos, ainda no Império. Os títulos de nobreza dos campistas estavam, invariavelmente, ligados à posse de terra e ao poder político. As questões hereditárias não eram consideradas nesses casos. A chamada “nobreza da terra” concedia status e destaque na sociedade, e era preciso construir casas imponentes para manter a aura de superioridade. Muitos solares foram construídos em Campos com esse intuito, e também era o caso do hotel.

À medida que Campos crescia, e a urbanização impunha suas vontades — e os “nobres” deixavam de existir com a República —, a lógica se inverteu, e o centro se popularizou. Embora ainda houvesse muitos excluídos, Campos se integrava. As grandes casas e solares ficaram custosas e inconvenientes para os proprietários. A casa do Barão se transformou em uma hospedaria, e foi chamada de Hotel Flávio.


Por sua localização central, e pelo protagonismo que Campos vinha tomando na região, o Hotel Flávio deu certo por um período. Além dos quartos, o hotel tinha restaurante e era utilizado para a realização de eventos. Importantes reuniões políticas foram ambientadas no hotel, e a vida social agitada do centro, com seus cafés, bancos, livrarias e comércios o tinham como referência.

O centro de Campos era o coração da cidade, onde pulsava não apenas o comércio, mas a vida econômica e social. Era ali que definiam-se preços de commodities, fechavam-se parcerias, marcavam-se eventos, tratava-se de assuntos citadinos e também da vida alheia. A tradição europeia de elegantes cafés foi abraçada por parte da sociedade campista, assim como Cine Teatros e livrarias tradicionais — perto do Hotel Flávio havia a emblemática Ao Livro Verde e o Teatro Trianon.

A queda


A decadência do Hotel Flávio foi diretamente proporcional à decadência do Centro. A Rua do Rosário, que abrigava o calçadão de pedras portuguesas, deu lugar a uma rua de asfalto, a Carlos de Lacerda. O charmoso prédio vizinho foi destruído, dando lugar a um estacionamento. Na esquina, uma construção estilo caixote contrasta. Os postes de iluminação de estilo clássico deram lugar a grandes, de cimento, sem vida. A fiação elétrica e de telefonia encobrem boa parte das charmosas sacadas estreitas dos janelões.

O corredor cultural foi completamente destruído, e outros tantos estacionamentos foram abertos no entorno, derrubando o patrimônio edificado. Sequer o flamboyant resistiu. Nas proximidades, os cafés sucumbiram, o Trianon se transformou em uma fria e burocrática agência bancária, a Ao Livro Verde deixou de ser a mais antiga livraria do Brasil ainda em funcionamento, fechando suas portas depois de 179 anos funcionando ininterruptamente.

A família tentou manter o hotel em funcionamento, mas o centro deixava de ser histórico a cada estacionamento aberto, e todo atrativo do entorno deixava de existir. A última reforma no Hotel Flávio aconteceu nos anos 1990. Em 2011, já anunciando sua queda derradeira, parte da estrutura apresentava risco de ruína. O Ministério Público notificou os proprietários, mas pouco foi feito. Em junho de 2018, todo o quarto andar do prédio ruiu.


Foi apenas em 2013 que o Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Campos dos Goytacazes (Coppam) decidiu tombar o Hotel Flávio. Embora sem efeito prático, a lei protegia a fachada do hotel, que não poderia sofrer alterações. Mas o abandono não respeitou a decisão do Coppam, até que no final de 2022 um incêndio de grandes proporções deixou o Hotel Flávio oco, restando apenas um grande retângulo de paredes com tijolos aparentes.

Antes do incêndio, em junho de 2018, uma reunião do Coppam, com o Hotel Flávio como pauta principal, enchia a sala onde o órgão estava sediado. Estiveram presentes os conselheiros, diversos jornalistas e espectadores da sociedade civil, inclusive o arquiteto representante da família proprietária do prédio. De forma sintomática, o representante do poder legislativo faltava. Falando em nome da família, o arquiteto disse que havia interesse em manter o hotel de pé, e que havia valor sentimental para eles.

Com o hotel necessitando de reformas estruturais, e o investimento não se justificando pela descaracterização do centro, a família toma uma atitude radical: doação total do hotel à prefeitura de Campos, sem qualquer ônus. Como tratava-se de um patrimônio histórico, de grandioso valor cultural, era plausível que a municipalidade abraçasse a doação e fizesse do Hotel Flávio um atrativo. Mas foi negado. A doação não foi aceita, e em 2019 o hotel foi posto à venda.

Depois de todos os sinais, reuniões infrutíferas e omissões do poder público, e depois de um incêndio consumir o restante que o descaso deixou, o simbólico Hotel Flávio foi demolido. Durante a segunda-feira de carnaval de 2023, retroescavadeiras avançaram sobre a fachada sem levar em consideração toda a história do hotel, e sem hesitar retirou mais um elemento do centro de Campos, o deixando ainda mais opaco, sem atrativo.

Há vagas

A julgar por casos semelhantes, o Hotel Flávio dará lugar a mais um estacionamento no melancólico centro de Campos. Embora ainda tenha algum movimento, justificando a oferta de vagas, as ruínas que se acumulam no centro poderão levá-lo ao total esvaziamento. Ironicamente, os apagamentos do patrimônio edificado poderá levar ao esquecimento do centro.
Em um centro sem razão de existir, onde os produtos comercializados em lojas físicas podem ser comprados virtualmente, em geral mais baratos, poderão sobrar vagas e faltar gente para estacionar os carros. Não há atrativo para quem valoriza a contemplação arquitetônica e a história, não há apelo comercial e não há motivo aparente para que moradores de outras localidades decidam frequentar o centro. Não há lazer, ou locais apropriados para descanso.

Mesmo a praça São Salvador, outro elemento histórico fundamental para a cidade, foi descaracterizada, onde um tapete de mármore simboliza perfeitamente a “modernização” imposta no centro. A queda do Hotel Flávio é apenas mais um exemplo, mais um patrimônio computado na conta da ignorância.

Qual será o próximo?

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