Cravos e músicas como armas: a Revolução de Abril
14/04/2024 | 16h51
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Quando ouviram a música “Grândola, Vila Morena” tocar no rádio, os revolucionários portugueses entenderam como uma senha. Era isso que estava acordado entre os conspiradores: às 22h55, o poema musicado de Zeca Afonso deveria ser reproduzido em ondas curtas e a revolução teria início. E teve.

O que iniciou-se em Portugal naquele 25 de abril de 1974, após ser reproduzida a música que viria a se tornar o hino da revolução — “Grândola, Vila Morena” —, mudaria não apenas o país, mas principalmente romperia com a lógica colonialista que imperava há alguns séculos por lá.
Portugal ainda mantinha colônias na África e na Ásia quando o século XX iniciou, e assim como o Brasil fez em 1822, até então sua maior colônia, os países africanos e asiáticos tentavam suas independências, principalmente em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique. Esses conflitos ficaram conhecidos como “Guerra Colonial”.

As guerras coloniais custavam caro a Portugal. As baixas eram constantes, os campos de batalha levavam os jovens portugueses (estima-se que cerca de 90% da população masculina jovem do país havia morrido, ou estava inválida) e a guerra corroía a economia. O reino estava ameaçado, e a coroa que havia fugido de Napoleão e se instalado no Brasil, estava novamente com medo.

As ambições coloniais portuguesas não apenas saqueavam o próprio país como atrapalhava os interesses, também coloniais, dos britânicos. Até que em 1890 o Reino Unido deu um ultimato: ou Portugal retirava as tropas de algumas colônias e paravam os avanços, ou entraria em guerra com a superpotência inglesa. Com a crise crescente no reinado português, sem representatividade e sem dinheiro, o pior aconteceu, e em 1º de fevereiro de 1908, D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe são assassinados.

A monarquia ainda tentou ficar de pé por mais dois anos, mas era evidentemente insustentável. A República era o caminho óbvio naqueles tempos, e em 5 de outubro de 1910 ela foi implantada em Portugal. Mas democracia e republicanismo não são soluções mágicas, e as questões financeiras continuavam difíceis, além das negociações políticas seguirem extremamente desgastadas. Para piorar — e muito —, em julho de 1914 eclode a Primeira Guerra Mundial e não era possível deixar Portugal de fora.

Em guerra, socialmente destruído, sem juventude, sem recursos e com um governo não representativo, só restou um caminho para Portugal: o autoritarismo ditatorial. O exército tomou o poder em 1926, nomeando o ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar, então professor da Universidade de Coimbra, a Presidente do Conselho de Ministros, e deu-se início a uma ditadura militar. Em um regime autoritário de corporativismo de Estado, com partido único e sindicatos estatais, com afinidades diretas com o fascismo, Portugal tentava, pelo menos, colocar as finanças em dia.

A Revolução dos Cravos
Cenas da Revolução de 25 de Abril  em Portugal.
Cenas da Revolução de 25 de Abril em Portugal. / Reprodução

Ao contrário do Brasil, o fim da ditadura em Portugal não foi negociado. Revolucionários armados e militares dissidentes do governo derrubaram o regime ditatorial do Estado Novo (mesmo nome dado a Era Vargas no Brasil, também uma ditadura), e implantaram uma democracia.

Comemorações do 25 de Abril - A Revolução dos Cravos
Comemorações do 25 de Abril - A Revolução dos Cravos / Reprodução
A Revolução dos Cravos (em ato simbólico, cravos eram colocados nas bocas dos fuzis), também chamada de Revolução de Abril, teve seu início em 25 de abril de 1974, e exatos dois anos depois, uma nova Constituição, de forte orientação socialista, foi promulgada. Grândola, Vila Morena virou hino, e a população deu amplo apoio ao movimento.


Entre os líderes da Revolução estavam também os militares, principalmente o Movimento das Forças Armadas (MFA), composto na sua maior parte por capitães que tinham participado na Guerra Colonial. Com apoio de oficiais milicianos, e da maioria da população (apenas quatro civis mortos e quarenta e cinco feridos em Lisboa), o regime ditatorial estava deposto. O resto é história.

O povo, os cravos, a música e as armas

O que aconteceu em Portugal não se repetiu no Brasil. Embora houvesse movimentos armados revolucionários por aqui, todos foram violentamente sufocados e um regime de censura, torturas, mortes e desaparecimentos foi a tônica de uma ditadura que durou mais de 20 anos.

A escolha pelo conflito armado e pelas revoluções são sempre as últimas alternativas para enfrentar um regime autoritário e violento. Não podem ser consideradas como parte do processo civilizatório, assim como não podem as ditaduras. Ambas são deturpações civilizacionais que devem ser evitadas a qualquer custo.

A Revolução dos Cravos foi repleta de simbolismos, e o 25 de abril é comemorado ainda hoje no país. Conta-se que uma mulher, Celeste Caeiro, que trabalhava num restaurante na Rua Braamcamp, em Lisboa, andava pelas ruas da capital com um ramo de cravos brancos e vermelhos nas mãos. Ao ser avistada por um soldado, este lhe pediu um cigarro. Como ela não tinha, decidiu colocar no cano de sua arma um cravo. Depois, outros floristas repetiram o gesto.

Não é possível romantizar revoluções armadas, muita gente morreu durante o processo e as consequências de regimes ditatoriais e lutas armadas são sempre sangrentas. Ademais, Portugal, Europa e o mundo continuam instáveis e guerras continuam a acontecer; e o povo ainda não é o que "mais ordena". Mas Portugal mostrou que música e cravos são armas poderosas.

Zeca Afonso, autor da música Grândola, Vila Morena.
Zeca Afonso, autor da música Grândola, Vila Morena. / Reprodução
“Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, Vila Morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade”

Esse é um trecho de “Grândola, Vila Morena”, de autoria de Zeca Afonso. A música, ainda hoje considerada perigosa, embalou e deu alma à Revolução.
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Os 98 anos de histórias de Mário Barreto Menezes
14/04/2024 | 16h20
Mário Barreto Menezes
Mário Barreto Menezes / Arquivo Pessoal
Marcamos de tomar um café na última vez que nos encontramos, na fila de banco, em São Francisco de Itabapoana. Pouco depois, infelizmente, soube que o encontro não seria mais possível. Confesso que “vamos tomar aquele café” saiu mais na força do hábito naquele dia; não marcamos, nem definimos nada com dia e lugar. E também não seria aquela a primeira promessa automática que faria a ele.


Em minha defesa, queria que o café fosse tomado à três: eu, ele e meu pai. E era mais difícil conciliar as agendas. Era uma desculpa esfarrapada, eu sei, principalmente aos olhos de hoje, depois de sua morte aos 98 anos, na última terça-feira.

Conheci Mário Barreto Menezes por intermédio de meu pai (por isso queria que estivesse presente no café não-marcado), durante o lançamento de seu livro intitulado “São Francisco de Itabapoana”. O livro era uma homenagem à terra que Seu Mário era devoto, e que conhecia como poucos. Enquanto aquele senhor simpático autografava a obra, meu pai me soprou no ouvido que estávamos diante de um profundo conhecedor da história, não apenas de São Francisco, mas de toda a região; o que não demorei para confirmar.

Apresentações curtas, livro debaixo do braço, alguns apertos de mão, e fomos embora. A partir daquele dia, Seu Mário se tornou um amigo e uma fonte de conhecimento — empírico e historiográfico. Mário Menezes foi servidor do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e por dever de ofício e por amor tinha uma enormidade de informações, que iam desde a topografia do Norte Fluminense até os dados sociais e econômicos.

Mas era o amor pela história o que tínhamos em comum, mais que tudo. E eu gostava de fazer com que ele me contasse qualquer passagem de sua vida, nos encontros que tivemos depois daquele lançamento de livro. Seu Mário escreveu mais algumas obras e era colaborador de jornais de São João da Barra, Campos e São Francisco. Foi citado em algumas teses acadêmicas, como fonte, personagem e divulgador da história oral de uma gente que se adaptou a viver em uma planície alagadiça.

Mário nos deixou numa terça-feira modorrenta, enquanto dormia. Até o último suspiro era dono de uma lucidez invejável e praticante de um humor ácido e veloz; e carismático que só. Estava sempre disposto a contar sobre a segunda grande guerra, as mudanças do mundo, o começo da urbanização de Campos, a vida na roça, os elementos culturais materiais e imateriais da região, ou qualquer outro assunto relacionado com história, cultura, arte, literatura e geografia. Até os mais chatos, das ciências exatas, ele sabia conversar e ensinar, como poucos.

Se tivesse chance de completar um centenário, Seu Mário ia gostar. A esposa, filhos, netos e amigos que deixou certamente gostariam de soprar as 100 velas acima de seu bolo. Mas, nos 98 anos que esteve neste plano, ele nos ensinou muitas coisas, e a principal delas foi que o conhecimento compartilhado não morre jamais.
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O X da questão: heroísmo fake, homens de capa preta e o autoritarismo
10/04/2024 | 21h13
Imagem gerada por IA - criação própria


Na definição de herói está alguém que executa ações excepcionais com bravura e coragem, e resolve situações extremas com ética e moral inabaláveis. É uma figura idealizada, sempre. O heroísmo real não se manifesta de forma concentrada, tampouco é possível que um indivíduo, ou mesmo um grupo, seja capaz de ser a reserva moral do mundo.

O Brasil costuma idealizar heróis e salvadores da pátria. O “pai dos pobres” serve ao ideário do progressista ingênuo, assim como o “capitão” cai como uma luva ao conservador moralista com memória afetiva do tempo dos militares.

Na história recente, homens de capa preta fizeram boa parte do país acreditar que os heróis estavam no judiciário, e ainda ontem um bilionário foi alçado ao panteão dos defensores da liberdade.

A lógica que idolatra esses personagens é a mesma, em ambas as ideologias polarizantes. Alguém com poder assume uma posição e defende uma ideia que confirma que aquele lado está certo, e que as convicções pessoais e coletivas podem ser reafirmadas sem medo, pois há um herói que as sustente.

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Joaquim Barbosa, ex-ministro do Supremo, foi um desses heróis do país que vestia capa preta (a toga de magistrado). Aliando imagem, símbolo e discurso — necessários a qualquer construção mitológica —, Barbosa foi visto como um redentor, alguém que iria vingar o país contra os corruptos. Em uma foto, durante o julgamento do Mensalão, o ex-ministro aparecia andando de costas, com a toga acompanhando seu movimento, formando uma capa preta de super-herói. Era algo como o Batman limpando as ruas de Gotham City.


Depois de Barbosa, um juiz federal nascido em Maringá, no Paraná, liderava uma operação batizada de Lava Jato, onde era o responsável pelo julgamento em primeira instância dos crimes de colarinho branco envolvendo um grande número de políticos, empreiteiros e empresas, como a Petrobras e a Odebrecht.

Mas Sérgio Moro não precisou de uma capa preta. Em 2016, em Brasília, um boneco inflável de 12 metros trazia o rosto do juiz no corpo do Super-Homem, com o peito estufado e os punhos cerrados sobre a cintura. Na base, também inflável, que sustentava o boneco, estava escrito: “Herói do Brasil”.

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Hoje senador, Sérgio Moro aceitou ser ministro do ex-presidente Bolsonaro, após agir com comprovada parcialidade no julgamento que levou à prisão o seu principal opositor. Além de abandonar a imparcialidade, necessária a qualquer julgador, o caminho jurídico que levou Lula à prisão foi semeado por nulidades processuais e extrapolação das prerrogativas de um juiz que foi elevado ao posto de herói nacional do dia para a noite.


No último domingo (7), o empresário Elon Musk, dono da rede social X (antigo Twitter), protagonizou um embate direto com o ministro Alexandre de Moraes, do STF. Em publicação no seu perfil, afirmou que Moraes deveria renunciar ou sofrer impeachment. Moraes, horas depois, incluiu o empresário no inquérito do Supremo que investiga a existência de milícias digitais antidemocráticas.

A partir daí, dois novos heróis foram criados: de um lado o empresário bilionário, dono de Big Tech, colocado em um patamar de salvador da liberdade, estaria lutando contra a “ditadura do judiciário” brasileiro. Do outro, o ministro destemido, que impediu um golpe e garantiu a democracia brasileira, aparece com a toga preta esvoaçante, debaixo do Brasão da República, sendo visto como o vilão que se converteu à herói, alguém que tem legitimidade para agir extrapolando alguns limites em nome da democracia.

Os contornos desses “heróis” brasileiros invariavelmente são autoritários. Debaixo de capas e poder econômico, agem em interesses corporativos, incompatíveis com o heroísmo real.

Embora o caso do duelo de titãs entre Elon Musk e Alexandre de Moraes evidencie que há (ou deveria haver) o ordenamento jurídico e a Constituição acima dos caprichos virtuais de um bilionário excêntrico, e a certeza que a toga precise, de fato, se fazer prevalecer, não se trata de uma disputa de heróis para saber quem é mais virtuoso. E novamente, se reduz aos individualismos algo que deve ser nacional.

Os egos feridos parecem ser o X da questão, e a confirmação de verdades ideológicas polarizantes parecem fabricar os “heróis” atuais. Em um mundo cada vez mais autoritário, o vilão é sempre o outro.
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Conclusão do caso Marielle: as sombras coletivas, os bodes expiatórios e o ódio à vítima
07/04/2024 | 23h09


Há um conceito nas ciências sociais que procura explicar o que acontece quando um povo — que pode ser de uma mesma nação ou etnia, ou mesmo representado em configurações mais específicas — cria pontos de convergência de sentimentos reprimidos, e concentram o ódio e o preconceito nesses pontos focais. São as chamadas “sombras coletivas”.

O surgimento das sombras coletivas normalmente é precedido por momentos de fragilidade social extrema: uma grave crise financeira ou conflitos de massa. E essas sombras ganham contornos reais quando são direcionadas para os culpados dessa fragilidade. Ou, pelo menos, de quem se pretende culpar, uma vez que essas ondas de ódio coletivo não precisam de racionalidade ou mesmo do entendimento real das responsabilidades; basta que algo ou alguém consiga canalizar as energias negativas.

É quando esse grupo projeta seus próprios aspectos sombrios nesse elemento criado ou identificado como a origem do mal. E assim, evita-se que o grupo encare internamente essas sombras, não confronte suas negatividades. Esse movimento de negação e expiação do mal, conseguem muitas vezes unificar o grupo, e refletir as frustrações individuais de seus componentes.
A psicologia nos ensina que essas projeções são individualizadas através de arquétipos — elementos da psique pré-racional que criam representações que passam a existir no inconsciente coletivo — como o herói, o salvador, o tolo, o governante, o rebelde e tantos outros. Todos facilmente identificados quando a história de um povo é contada. Os movimentos sociais mais importantes estão sempre ligados a algumas dessas figuras e forças arquetípicas.

Embora pareça algo técnico e distante, esses conceitos explicam como algumas figuras são alçadas ao poder, e carregam uma massa fiel de seguidores que não precisam de justificativas reais ou racionais para aceitar o líder e seus desígnios. Há certamente uma forte carga religiosa em muitos casos, mas elas sempre trazem em sua base esses conceitos sociais, que permitem, inclusive, que o líder seja visto como alguém ungido ou escolhido por Deus para liderar esse grupo de pessoas.

A história é repleta de líderes assim, há exemplos em matizes ideológicas distintas, e até antagônicas. Napoleão, Hitler, Stalin, Saddam, Mao Tsé-tung, Imperatriz Cixi, e tantos outros exemplos, nos mostram que esses líderes conseguiram personificar as projeções reprimidas na cultura, ou no coletivo das sociedades que viveram. Eles não apenas falam e fazem o que os liderados esperam, como tem a liberdade e a representatividade para falar e fazer o que se queria falar e fazer, coletivamente. Mesmo que inconscientemente.
A imagem do aperto de mão entre o presidente americano, Richard Nixon, e o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Mao Tsé-Tung, torna pública, após uma viagem planejada em absoluto segredo no auge da Guerra Fria, a aproximação entre os dois países. O objetivo dos EUA era frear a influência soviética sobre a China (O Globo).
A imagem do aperto de mão entre o presidente americano, Richard Nixon, e o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Mao Tsé-Tung, torna pública, após uma viagem planejada em absoluto segredo no auge da Guerra Fria, a aproximação entre os dois países. O objetivo dos EUA era frear a influência soviética sobre a China (O Globo). / Foto: AP/21-2-1972


É difícil conceber, por exemplo, que a sociedade alemã apoiou o extermínio de judeus, muitos deles antes seus vizinhos e conhecidos, até serem desumanizados pelo movimento nazista. Hitler concentrava e personificava a sombra coletiva da Alemanha arruinada no pós primeira guerra, e estava legitimado para agir em nome do povo. Embora alguns negassem a existência dos campos de concentração, ou fechassem os olhos para outras atrocidades, parte significativa da sociedade alemã — há pouco mais de 80 anos, portando extremamente recente no tempo histórico — dava ao líder sombrio o poder necessário para cometer assassinato em massa de um grupo étnico transformado em alvo das projeções de ódio da sociedade, transmutados em bodes expiatórios.
Em 1938, pelo Acordo de Munique, as potências europeias davam à Alemanha nazista o direito de anexar partes da Checoslováquia — que não assinou o documento final. Na foto, o premier britânico, Neville Chamerlain, cumprimenta Adolf Hitler (O Globo)
Em 1938, pelo Acordo de Munique, as potências europeias davam à Alemanha nazista o direito de anexar partes da Checoslováquia — que não assinou o documento final. Na foto, o premier britânico, Neville Chamerlain, cumprimenta Adolf Hitler (O Globo) / Foto: 30-9-1938


Quanto mais primitivo o nível de consciência da sociedade, mais se acredita em salvadores da pátria, ou em líderes ungidos. Esse nível de consciência pode diminuir ou aumentar pelos níveis de educação e cultura de uma sociedade, mas também é afetado pelas crises, e os líderes carismáticos que conseguem perceber esses momentos e personificar as sombras coletivas, transformam-se, invariavelmente, em ditadores.

O bode expiatório

A figura do “bode expiatório” existe tanto na Torá, livro sagrado do judaísmo, como na Bíblia, livro máximo do cristianismo, em Levítico. A ideia central é a mesma: um animal, no caso um bode, é sacrificado em uma cerimônia de expiação — de purificação dos pecados. Segundo a tradição judaica, durante as cerimônias hebraicas do Yom Kippur dois bodes eram separados para sacrifício.

O primeiro era queimado em holocausto (oferta queimada, sacrifício pelo fogo) em um altar, junto de um touro. O segundo bode era deixado ao relento no deserto, depois do sacerdote colocar a mão sobre sua cabeça, como forma de transmitir todos os pecados de seu povo para o animal; abandonado, e lavando todos os pecados consigo, o bode era ofertado no deserto ao anjo caído Azazel.

O bode expiatório, de William Holman Hunt.
O bode expiatório, de William Holman Hunt. / Reprodução
O ritual que envolve os bodes no judaísmo e no cristianismo, duas das maiores religiões monoteístas do mundo, mostram que a expiação é necessária socialmente. É preciso que se crie um elemento que concentre os sentimentos que não queremos ver em nós mesmos, e quando coletivamente esses sentimentos ficam insustentáveis, “bodes” são eleitos e apedrejados pelo ódio reprimido.

As redes sociais criam bodes expiatórios todos os dias, e não é incomum ver comentários repletos de ódio e preconceito em publicações dos mais variados assuntos. Linchamentos virtuais são cometidos sem que se tenha conhecimento significativo da situação apresentada, em um claro movimento de manada.

O bode, representado aqui como a figura que concentra as sombras coletivas, permite que um grupo social concentre seu ódio, e não apenas permite que se camufle as imperfeições internas, como oferece a esse grupo uma maior unidade.

O historiador, antropólogo e filósofo francês, René Girard, falecido em 2015 nos EUA, chama os indivíduos que elegem bodes expiatórios para concentrar ódio e violência de “selvagens grosseiros”. Segundo o antropólogo, essas pessoas precisam constantemente “apropriar-se de quaisquer vítimas para poderem se livrar de seus fardos violentos”. Nas obras de Girard, o “mecanismo do bode expiatório” muitas vezes se aplica quando “a vítima pertence a uma minoria étnica ou racial”, sendo ela, a vítima, o sujeito destinado a um mecanismo de exterminação da violência social.

Os desejos miméticos

Outro conceito utilizado nas ciências sociais trata da imitação e do desejo que as pessoas carregam, invariavelmente, em copiar comportamentos ou ideias de outras. Um objeto não é desejável se outra pessoa não desejá-lo anteriormente, ou não utilizar esse objeto como forma de destaque social.

Em outras palavras: um carro de luxo só se torna devidamente cobiçado coletivamente quando se transforma em um objeto de desejo coletivo, e passa a ser utilizado por figuras proeminentes da sociedade. Esses desejos miméticos, ou de imitação, são potencializados pela propaganda, pelo cinema, pela televisão e, mais recentemente, pelas redes sociais.

Embora os desejos miméticos produzam consumo e desenvolvimento, em certa medida, quando o que se deseja se torna impossível aos indivíduos médios, ou certos comportamentos apenas são aceitos por determinadas pessoas, os membros da comunidade têm seus desejos miméticos reprimidos, e quando somados às regras e normas sociais, produzem um sistema que castra as vontades e produz ódio e violência.
James Dean, ator americano nascido nos anos 1930, ainda é considerado um ícone cultural da moda, e representa o arquétipo do rebelde. Sua imagem vende ainda hoje, e é copiada pelo desejo mimético.
James Dean, ator americano nascido nos anos 1930, ainda é considerado um ícone cultural da moda, e representa o arquétipo do rebelde. Sua imagem vende ainda hoje, e é copiada pelo desejo mimético. / Reprodução


Os indivíduos, ao controlarem suas vontades, produzem internamente violência, e esse estado violento pode resultar em conflitos constantes e com potencial para fugir do controle. Então, para que essa violência canalizada e estimulada não produza confrontos entre os próprios sujeitos, entre determinados grupos, surge o mecanismo do bode expiatório.

Os bodes da TV aberta no Brasil

No início dos anos 1990, programas policialescos tinham altos níveis de audiência, e apresentadores como Gil Gomes e Luiz Alborghetti, utilizavam-se da violência como apelo. Concentrados na idéia de que “bandido bom é bandido morto”, esse programas traziam os detalhes de operações policiais e evidenciavam as violências cometidas pelos agentes da lei.

Os telespectadores, muitos submetidos a um estado de violência constante nas cidades e abandonados pelo sistema de proteção estatal, conseguiam ter aliviados seus sentimentos reprimidos pela violência presenciada na TV. Sentiam-se vingados, e com a sensação que “alguém está fazendo alguma coisa” ou mostrando para eles algo que eles queriam fazer e não podiam.

Sem se preocupar com preceitos constitucionais estabelecidos no Brasil desde 1988, como a presunção de inocência, o direito de imagem, a ampla defesa e o contraditório, esses programas promoviam o julgamento público de indivíduos que apresentavam, sistematicamente, as mesmas características físicas e sociais.

Em 2015 aconteceu o ápice de proliferação desse tipo de programa, e muitos apresentadores foram alçados a cargos públicos eletivos. Foi o caso de Wagner Montes, falecido em 2019, apresentador do programa “Balanço Geral”, da Rede Record, e “Cidade Alerta”, que elegeu-se como deputado estadual pelo Rio de Janeiro. Com o bordão “escracha!”, Montes criou um quadro em seus programas chamado de “esquenta a caldeira”, onde os mortos em operações policiais eram colocados para serem encaminhados ao que ele denominava de “inferno”.

Nesse mesmo período, o apresentador Sikêra Júnior, do programa da Rede TV!, “Alerta Nacional”, popularizou o termo comumente usado pelas milícias do Rio: “CPF cancelado”. Sikêra apresentava um quadro semelhante ao antes exibido por Wagner Montes, chamado de “pote do demo”, onde bonecos simbolizando os corpos mortos pela polícia eram colocados para serem queimados, em claro processo de expiação.
Quadro "pote do demo", com o apresentador Sikêra Júnior.
Quadro "pote do demo", com o apresentador Sikêra Júnior. / Reprodução


Sikêra e Montes usavam o culto à morte, um tipo peculiar de humor macabro e principalmente, traziam à exibição pública de massa um leque de bodes expiatórios, que regularmente pertenciam ao mesmo grupo social e racial, e invariavelmente vindos de um mesmo local periférico.

Marielle Franco, assassinada no Rio, com seu motorista Anderson Torres.
Marielle Franco, assassinada no Rio, com seu motorista Anderson Torres. / Instituto Marielle Franco
Marielle e o bode na sala


Em 14 de março de 2018, aproximadamente às 21:10h, no cruzamento da Rua
Joaquim Palhares com a João Paulo I, no bairro Estácio, no Rio de Janeiro, o ex-policial militar Ronnie Lessa, acompanhado do também ex-policial Élcio Queiroz e mais dois comparsas, dispararam tiros contra o carro onde estavam a ex-vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. Ambos morreram no local.

A morte de Marielle, pelas circunstâncias e perfil da vítima — que além de preta e periférica, tinha uma atuação contra as milícias do Rio de Janeiro —, ganhou destaque nacional e se transformou em uma das apurações policiais mais acompanhadas do país.

Em um extenso relatório de 479 páginas, finalizado no último 24 de março, a Polícia Federal deu como concluída a apuração do crime, e apontou os executores e os mandantes. Como uma das principais motivações, o relatório apontou uma disputa de terras, onde um grupo da Câmara Municipal do Rio, liderado por Chiquinho e Domingos Brazão, buscava uma área para fins comerciais, enquanto Marielle tentava a utilização das mesmas terras para fins sociais, de moradia popular.

Se a ideia dos mandantes era que Marielle deixasse de ser um obstáculo após sua morte, o tiro saiu pela culatra. Além de terem sido presos, a investigação da morte da vereadora se transformou em um problema para os negócios da milícia carioca. Marielle representou ali dois tipos de bode: o expiatório e o que permanece na sala, como algo que atrapalha as negociações.

Embora vítima e atuante contra um grupo criminoso, Marielle foi considerada culpada. De perfil social, racial e de gênero prontos para serem odiados por integrantes de grupos de extrema-direita, a morte da vereadora canalizou ódios coletivos e foi constantemente alvo de ridicularização e de movimentos que buscavam culpar a vítima pelo crime, onde, na posição de bode expiatório, mereceu ser sacrificada por ser detentora de “pecados” não aceitos por determinado grupo.

No ápice desses movimentos, durante as eleições de 2018, uma placa de rua, nomeada em homenagem a Marielle, foi rasgada ao meio pelas mãos de Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, então candidatos a deputado federal pelo PSL. Apesar do ato violento e de ódio à vítima, ambos foram eleitos.
Daniel Silveira e Rodrigo Amorim posam novamente com placa quebrada de Marielle Franco.
Daniel Silveira e Rodrigo Amorim posam novamente com placa quebrada de Marielle Franco. / Reprodução/rede social


Em 2022, em 8 de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a mesma dupla reeditou a foto, dessa vez no gabinete de Amorim, onde exibiram com orgulho a placa destruída, com uma das metades emoldurada. Na imagem era possível ver, ao fundo, um fuzil e um quadro com o senador Flávio Bolsonaro, filho do ex-presidente Bolsonaro, acusado de envolvimento com as milícias.

Mal em todos

A trajetória do caso Marielle Franco reflete vividamente a complexidade das sombras coletivas e do mecanismo do bode expiatório em nossa sociedade. Marielle, uma voz incômoda para muitos interesses poderosos, foi transformada em alvo de ódio e violência, e mesmo imperfeita como qualquer pessoa, foi vítima.

Ao ser assassinada de forma brutal, Marielle se tornou um bode expiatório para aqueles que preferem desviar o olhar de suas próprias sombras e responsabilidades. Sua morte não apenas evidenciou a face sombria de nossa sociedade, mas também revelou a necessidade urgente de confrontarmos essas realidades obscuras que permitem a perpetuação do ódio e da injustiça.

É fundamental reconhecer que todos nós carregamos em nós a capacidade para o mal e que, ao invés de procurarmos bodes expiatórios para nossas frustrações e sombras coletivas, devemos nos enxergar como iguais, buscando compreender e confrontar nossas próprias imperfeições.

Do contrário, nunca conseguiremos tirar os bodes da sala.
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Com que Caio eu vou?
01/04/2024 | 21h44
Noel Rosa
Noel Rosa / Reprodução
No samba “Com que roupa?”, de Noel Rosa, o compositor está às turras com seu guarda-roupa depois de receber um convite. Se achando maltrapilho, o eu lírico do samba disse estar “pulando como sapo” para conseguir um novo terno, uma roupa nova para vestir.


Em Campos, quase uma década depois do samba de Noel, os políticos estão decidindo com que roupa se apresentarão nas eleições que se avizinham. Alguns tentam as vestes do bolsonarismo, outros buscam vestimentas petistas.

Entre esses personagens políticos está Caio Vianna — que assumiu o mandato de deputado federal por ocupar a terceira suplência do PSD —, principal herdeiro político de seu pai, Arnaldo Vianna, que foi prefeito de Campos no final dos anos 1990 e ainda carrega boa avaliação de parte do eleitorado campista.

Em 2020, Caio foi candidato à prefeitura, e no segundo turno teve mais de 110 mil votos, ficando com 47,60% da preferência do eleitorado. Nesta segunda-feira (1), o prefeito do Rio, Eduardo Paes, cumpre um acordo que fez com o presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar, e disse que Caio “volta definitivamente para Campos”, uma vez que seu secretário de Cultura, Marcelo Calero, primeiro suplente do PSD, volta à Câmara Federal.

Apesar de ter sido um ferrenho opositor de Wladimir Garotinho em 2020, Caio Vianna está apoiando a pré-candidatura do atual prefeito de Campos para a reeleição. À Folha, Caio disse que Eduardo Paes irá se “arrepender, e muito, da forma como conduziu” o rearranjo na Câmara.

A questão é saber com que roupa Caio virá nessas eleições.

No mesmo dia que perdeu o mandato, acompanhou Wladimir em inaugurações na praia de Farol de São Tomé, e degustou um prato de costela com aipim, aderindo a uma das estratégias de marketing do prefeito, que constantemente publica suas refeições em eventos políticos.

Os 110 mil votos conseguidos para o executivo, e os mais de 36 mil recebidos para deputado, mostram que Caio, inegavelmente, tem voto em Campos. Caso decida vestir a roupa de apoiador de Wladimir, certamente conseguirá atrair eleitores, embora também carregue rejeição.

Se optar pelo bermudão e havaianas das praias cariocas, ou pela camisa de linho em Búzios, e se distanciar da eleição em Campos, deixa, pelo menos, de ser um adversário relevante para o prefeito.

Wladimir parece ganhar votos com qualquer roupa que Caio venha, desde que tenha seu rosto e seu futuro número de campanha estampados nela. E a fatura certamente será cobrada se a vestimenta der certo.

Após o samba com Eduardo Paes ter dado “praga de urubu”, como cantou Noel, Wladimir reforça o convite para compor o enredo campista. Resta saber com que roupa Caio irá.
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A 'Natália da direita' resolverá?
31/03/2024 | 10h00
Pesquisas apontam tendências. Mesmo se a oposição em Campos tomar para si uma atitude negacionista, e não acreditar no favoritismo de Wladimir apontado em todas até aqui, a presença do prefeito no mundo virtual deixa os opositores em uma situação desconfortável.

Porém, na eleição, quando o jogo é colocado em campo para valer, o resultado pode sempre surpreender.

No meio político, ir ao segundo turno contra o candidato da máquina, ou o favorito, é a vitória que se busca alcançar, porque é sempre uma “eleição nova”, uma chance de virar o jogo quando apenas duas alternativas se apresentam.

Para acontecer o segundo turno, é preciso que se tenha candidatos com resultados que se aproximem, com percentuais próximos de votos. Isso vale tanto para uma eleição polarizada como pulverizada. Se apenas um dos nomes se sobressair a um percentual alto, que o distancie muito dos outros, inviabiliza o segundo turno. É matemática.

O cenário de Campos, a preço de hoje, é confortável para a reeleição do atual prefeito. O papel da oposição é fazer com que o jogo jogado mude os placares na casa de apostas. E para isso, coloca em campo novos nomes com potencial para jogar duro.

No último pleito, o campo progressista de Campos deu à Professora Natália o papel de revelação. Em sua primeira disputa, seus 11.622 votos conferiram a ela um papel de destaque em uma cidade de perfil conservador. Ela teve menos de 1 ponto percentual de diferença para o prefeito da ocasião que tentava a reeleição, Rafael Diniz.

O segundo turno aconteceu pela soma dos votos deles (10,13%) com os resultados de mais de dois dígitos vindos de outros dois candidatos: Dr. Bruno Calil (13,17%) e Caio Vianna (27,71%).

No pleito que se avizinha, a delegada licenciada da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), Madeleine Dykeman, é a aposta de Rodrigo Bacellar, principal nome da oposição e presidente da Alerj. Com uma carreira brilhante na Polícia Civil, Madeleine tem perfil conservador, alinhado ao bolsonarismo.

Se a ideia é fazer uma “Natália da direita”, vai ser preciso apostar que outros nomes tenham ao menos dois dígitos, ou que o nome da delegada alcance um percentual de ao menos 30%.

Reprodução
Rejeição em 2020, aprovação em 2024


Em 2020, o principal elemento em disputa era a rejeição. Rafael Diniz amargava altos índices de reprovação de seu governo, confirmado com o resultado nas urnas. Era preciso dar uma resposta e apresentar propostas para resolver a crise. A abstenção em torno de 25% foi influenciada pela pandemia, mas mostrou também que havia descrédito de ¼ da população, que não tinha opções que a representasse.
O resultado apertado do segundo turno veio a reforçar a ideia de que o campista não tinha favoritos.

Hoje, o principal elemento em disputa é a aprovação. Com um governo bem avaliado, e com forte presença nas redes sociais, o prefeito Wladimir tem situação oposta à de Rafael. Com a pandemia controlada, a tendência é que a abstenção diminua, o que deve ser reforçado se a imagem de independência de Wladimir do grupo político de seu pai tenha sido efetiva entre o eleitorado mais reativo ao garotismo.

A Virtú e a Fortuna, que Maquiavel conceitua em sua obra prima “O Príncipe”, tratam-se das qualidades do governante e da ocasião oportuna, respectivamente. Embora não se deve depender das vontades da deusa da Fortuna, fazer dela sua aliada, e tentar controlá-la, é fundamental para qualquer candidato, até para que a Fortuna não se transforme em derrocada.
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Não, Campos não nasce em 28 de março
27/03/2024 | 21h24
Imagem gerada por IA - por Edmundo Siqueira
“Sua Excelência, o fato.” Essa é uma expressão comumente atribuída ao folclórico político Ulysses Guimarães — ou Dr. Ulysses, ou "Senhor Diretas Já". Homem público experimentado, Ulysses conduziu o país à democracia, erguendo a Constituição Federal em suas mãos, com orgulho, depois de uma batalha parlamentar intensa.


Ulysses sabia da importância do fato, e sabia que na política, assim como no jornalismo, era preciso trabalhar com informações precisas, comprovadas, checadas e rechecadas. Mesmo em tempo de pós-verdade, ainda devemos prestar reverência à Sua Excelência, o fato. Talvez ainda mais nesses tempos.

Em história ocorre o mesmo. O que aconteceu no passado, os fatos decorridos, são imutáveis. A historiografia busca as fontes, demonstra em documentos, fotos e textos jornalísticos, para comprovar a tese trabalhada. Por exemplo: quem morou em tal casa, quem escreveu aquele livro ou mesmo quem cometeu tal crime, são fatos que precisam ser comprovados, e quando os são, constroem a história.

Porém, as interpretações da história não são imutáveis. Assim como fatos novos, quando descobertos, podem alterar a forma que entendemos o passado, ao se descobrir um documento ou fotografia que mostre algo até então inédito, entendimentos podem mudar. Aliás, as interpretações históricas são motivos de disputa constante no presente.
Como aconteceu quando a equipe do Arquivo Público tratou e trouxe a público a Ata da posse na primeira sessão, da primeira Câmara de Vereadores de Campos, em 01 de janeiro de 1653. A eleição para a Casa Legislativa foi realizada no ano anterior. Trata-se do documento mais antigo do Arquivo, e um fato histórico comprovado.
Equipe do Arquivo Público tratando documentos históricos.
Equipe do Arquivo Público tratando documentos históricos. / Foto: Antônio Filho - PMCG


Portanto, não é um fato — jurídico ou histórico — que o nascimento de Campos se deu em 28 de março de 1835. A data que celebra como seu aniversário refere-se a sua elevação à categoria de cidade, quando a Vila de São Salvador passa a ter o nome de Campos dos Goytacazes.
Esse não passa de um ato burocrático, uma mera formalidade, que muitos lugares do Brasil e do mundo cumpriram também, mas que não geram qualquer lembrança festiva. O que constituí Campos como uma cidade aconteceu há muito mais de 189 anos.
 
Quando Campos nasce
 
O que hoje se entende por Campos dos Goytacazes começou como uma capitania em meados do século XVI: a Capitania de São Tomé, após a chegada (ou invasão) dos portugueses no Brasil.

Depois de algumas tentativas de domínio, todas frustradas, o Império Português doa as terras para um grupo de fazendeiros chamados de Sete Capitães, que primeiro exploraram a criação de gado na planície (há registro do primeiro curral em Campo Limpo, na Baixada, em 1633), e dezenove anos depois o primeiro engenho de açúcar é erguido.
Centro de Campos dos Goytacazes
Centro de Campos dos Goytacazes / Reprodução - Allen Morrison


No Brasil colonial, era necessário que houvesse uma igreja (a religião dominante era a católica), uma cadeia pública, uma câmara legislativa e casas onde houvesse moradores, de fato, para ser considerado uma cidade. Mas como podemos definir o momento exato em que um aglomerado de pessoas e construções passe a se tornar uma urbe, com ruas e gentes, determinações e identidades próprias?


29 de agosto de 1652 - Essa seria uma defesa de representantes da Igreja Católica, mais especificamente da Igreja de São Francisco, localizada na avenida 13 de maio. Segundo eles, o político, industrial e intelectual campista Julio Feydit registrou que uma capela de palha foi erguida em 1652 ou 1649 onde hoje está a Igreja São Francisco. Pela data de comemoração do santo que dá nome à igreja, “só poderia ter sido, conforme prevê a tradição católica no dia de seu santo, dia 06 de Agosto”, como disse o prior da igreja.


1° de Janeiro de 1653 - É instalada a primeira Câmara, evento que vem a efetivar a existência legal de Campos, segundo os parâmetros portugueses da época. É quando nasce a Vila de São Salvador. Por questões políticas e econômicas, essa casa legislativa foi dissolvida em 1657. Mas foi uma Câmara orgânica, que nasce “de baixo para cima”, em um movimento raro de acontecer naquele período. Além disso, a data conta com uma "certidão". No Arquivo Público consta o documento gerado na ata de posse.

29 de Maio de 1677 - A Vila de São Salvador passa por outro processo político administrativo, e novamente tem uma Câmara, estabelecida pelo governador Salvador Corrêa de Sá e Benevides. É o início do domínio Asseca na região, durando mais de um século. A partir daquela data, foram desencadeados outros tantos eventos que fazem com que Campos se torne um centro comercial e produtor importante para o Império.


Ao celebrarmos o aniversário de uma pessoa, o estamos fazendo por ocasião de um novo ciclo que se cumpre, esse contado a partir do dia de seu nascimento. A data comemorada, portanto, não diz respeito aos outros atos constitutivos de sua identidade, mas sim ao dia que efetivamente “veio ao mundo” aquele indivíduo. Casar-se, formar-se em uma faculdade, ou adquirir o título de mestre não são comemorados como o nascimento, embora sejam datas importantes. Com uma cidade não é diferente.

Comemorar na data certa pode ser o primeiro passo para fortalecer a identidade do campista e serve para que sejam trazidos os reais elementos utilizados para a formação da cidade e de seu entendimento como tal.
Não são 188 anos de história, e não, não é 28 de março o marco principal para definir Campos como cidade.
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‘Foi só um golpezinho!’
18/03/2024 | 21h20
Foto: Evaristo Sá/AFP

A diarista Rosana Urbano, de 57 anos, saiu de casa por volta das 4h da manhã do dia 11 de março de 2020 para ver a mãe, que estava internada no Hospital Municipal Carmino Caricchio, no Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo. Teria andado 25 km até chegar, Diabética e hipertensa, Rosana sentiu-se mal ao ver sua mãe entubada e foi internada na mesma unidade médica.

Rosana morreu um dia depois, após uma parada cardiorrespiratória. E foi registrada oficialmente como a primeira vítima do vírus Covid-19 no Brasil. Sua mãe, Gertrudes, veio a falecer três dias depois. Rosana deixou três filhos órfãos.

No mesmo dia que a diarista chegou ao hospital, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, anunciava que a crise sanitária causada pelo vírus era de fato uma pandemia. Naquele mesmo mês, o Brasil registrava 5.812 casos do coronavírus e 202 mortes.

Doze dias depois da morte de Rosana, o então presidente Jair Messias Bolsonaro fez um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV, onde disse:

“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar, (...) e devemos, sim, voltar a normalidade (...) no meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.

No mesmo discurso, Bolsonaro culpava a imprensa por potencializar uma “histeria” descabida. Sobre as vacinas, o ex-presidente disse, em dezembro de 2021, que não havia tomado e que não iria tomar. E em março daquele ano disse:

“Tem idiota que a gente vê nas redes sociais, na imprensa, [dizendo] ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe…”.

Neste mês, em março de 2024, o Brasil soma mais de 38 milhões de casos, e 710.704 mortes

A tentativa de golpe e o ‘golpezinho’

Um dos principais alvos da investigação sobre a tentativa de golpe de Estado, o general Walter Braga Netto, em 18 de novembro de 2022, no cercadinho (estrutura montada na saída do Palácio da Alvorada que Bolsonaro usava para conversar com convertidos), disse para uma apoiadora:

“Vocês não percam a fé. É só o que posso falar agora”.
 
Reuters


Bolsonaro já tinha perdido as eleições, mas Lula não havia ainda subido a rampa. Outro principal suspeito da tentativa de golpe, general Augusto Heleno, também tentava tranquilizar os apoiadores, dizendo que o presidente eleito não tomaria posse e que era preciso "esperar mais um pouco".
Com tudo que se sabe hoje, o golpe de Estado foi planejado por meses, com participação direta de alguns integrantes do alto comando das Forças Armadas — e com a recusa de outros. Os depoimentos tornaram-se públicos, os arquivos foram divulgados pela Polícia Federal,  e neles o ex-comandante do Exército e o ex-comandante da Aeronáutica acusam Bolsonaro de ter planejado um golpe de Estado.

Portanto, houve, como tudo vem sendo mostrado — e comprovado —, uma tentativa de corromper a ordem democrática e instaurar no país um regime autoritário. Outra vez na história Brasil, e orquestrado pelos mesmos atores.
Bolsonaro, por sua vez, tenta minimizar o problema. Ele e seus apoiadores dizem que essa história de golpe é toda inventada e que não houve nenhuma ilegalidade. O que houve, já admitido, foi apenas a discussão sobre declarar estado de Defesa ou estado de Sítio, que são previstos na Constituição.

Embora sejam instrumentos constitucionais existentes, não se justificariam naquele cenário. Não havia condicionantes para essas medidas, salvo quando criadas por ímpetos golpistas. Ademais, golpe de Estado é punível em sua forma tentada, já que quando consumado não há mais legalidade vigente.

O vírus do golpismo
Embora não seja possível traçar paralelos entre uma pandemia e um golpe de Estado, a ideia de subversão da democracia, do estado de direito e dos direitos fundamentais é a mesma. Ditaduras e pandemias matam pessoas.

Não é possível diminuir a gravidade do que foi tentado. É preciso esperar o julgamento e garantir ampla defesa e o contraditório, mas uma vez vencido essas etapas, quem pensou, planejou, confabulou e executou uma tentativa de golpe de Estado, e os crimes contra o Estado de Direito, devem ser punidos. Como manda a democracia.

A democracia não é um regime onde tudo pode. As liberdades e direitos individuais não são absolutos. E ela, a democracia, não pode ser tolerante com a intolerância. É preciso que se estimule que pessoas que são física ou socialmente diferentes, com opiniões opostas, como crenças políticas ou religiosas diversas, possam conviver. Não o contrário. Sob pena de permitir os golpes e a violência; e as mortes.
Quem usa o bolsonarismo radical como lema de campanha, ainda hoje, permite que se entenda que democracia e vidas não são valores inegociáveis. Quem ainda usa o nome de um ex-presidente que conduziu a pandemia negando a ciência e as vacinas, e planejava um golpe de Estado, compactua com essas ideias. 
As eleições municipais deste ano serão um bom termômetro para separar candidatos que pregam ideias de direita e do conservadorismo, de quem aceita o golpismo messiânico e as subversões do civilizatório.  Abraçar o bolsonarismo raiz definirá. 
Bolsonaro e quem o apoia dizem ter sido algo parecido com um golpe; um quase-golpe. Uma ideia que não foi à frente, ou uma doença que não se estabeleceu na democracia do Brasil. Um golpezinho.
 
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress, PODER
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Os sinais de alerta que a economia (não) dá em Lula III
16/03/2024 | 21h50
“Há uma crise no Palácio do Planalto”. Essa é uma afirmação recorrente no Brasil, mas que muitas vezes se refere a uma crise fabricada. Mas a queda de popularidade recente do governo Lula demonstra que há um problema, e que há no Planalto a necessidade de acender um sinal de alerta, uma luz amarela.


Segundo pesquisa feita pela Quaest, divulgada no último dia 6, a avaliação positiva do governo está em 35% e a negativa em 34%. Na pesquisa anterior, de dezembro, 36% avaliavam positivamente, contra 29%. Entre os evangélicos a queda de popularidade foi ainda maior: na pesquisa recente 48% dos evangélicos desaprovam o governo, o que antes estava em 36%.

O lulismo pode tentar suavizar os números e dizer que se trata de um “retrato do momento”, mas a verdade é que uma queda de popularidade em um governo que melhorou em 66 indicadores econômicos em um total de 99 (segundo análise da Folha de S.Paulo), não é para ignorar.

O levantamento da Folha de S.Paulo mostra que 66 indicadores melhoraram, 20 pioraram e 13 ficaram estáveis. Os dados são em comparação com 2022, e foram obtidos em estudos sobre saúde, educação, emprego e outras áreas.

Então, não é apenas a economia que interfere na avaliação da população. Há mais em jogo, e as questões morais e de costume são determinantes em um país que apresenta uma “polarização afetiva” tão forte. Quando analisamos os números entre os evangélicos isso é ainda mais evidente.

Pesquisa para que te quero

Pesquisa não é dogma, mas não deve ser ignorada. O que ela apresenta é de fato uma mostra do momento em que ela foi aplicada; e não poderia ser diferente. Dinâmicas e premissas mudam sempre, e os resultados das pesquisas seguem o mesmo padrão de comportamento da sociedade — e se não fosse assim, não serviria para muita coisa.

Ademais, as pesquisas, quando avaliadas como se deve — em sua totalidade e não em recortes oportunistas — , e em suas séries históricas, conseguem apontar tendências e os movimentos das opiniões, sejam de eleitores ou de consumidores.

A pesquisa Quaest aqui trazida informa ainda que a parcela que tem opinião regular sobre o governo petista era de 32% e agora está em 28%; não responderam ou não souberam 3%. A pesquisa ouviu presencialmente nesta rodada 2.000 pessoas dos dias 25 a 27 de fevereiro. A margem de erro é de 2,2 pontos percentuais, para mais ou para menos.

Não é só a economia, estúpido!


Nesse cenário, não é difícil lembrar o lema de James Carville, estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton contra o então presidente George H. W. Bush: “It's the economy, stupid!” (É a economia, idiota!) — uma pequena variação da frase “The economy, stupid!”, cunhada em 1992.

A questão é que a economia, no momento atual do Brasil, não é a principal variante para aprovação ou reprovação do governo. Há uma expressiva parcela da sociedade que está preocupada com que tipo de ambiente os filhos vão frequentar, em escolas e lugares públicos, se as drogas serão ou não liberadas, ou se o aborto será legal ou não, e outros temas mais relacionados aos costumes.

Para essa parcela da sociedade, as percepções de melhora na economia não são determinantes, e quando afetam diretamente são justificadas como sendo pelos movimentos naturais do mercado ou ainda por governos anteriores.

Já para a parte mais sensível às determinações econômicas, a inflação de alimentos acabou por retirar os efeitos positivos sentidos. Os preços dos itens alimentícios vêm subindo acima da inflação desde outubro do ano passado. E, só este ano, a alta chega a 2,95% — mais que o dobro do 1,25% do IPCA, índice oficial de inflação.

Na última quinta-feira (14), o presidente Lula, realizou uma reunião ministerial para discutir os preços dos alimentos.

E o Mercado?

O chamado “mercado” também andou se estranhando com o governo quando Lula resolveu intervir diretamente na questão dos dividendos da Petrobras. A administração da companhia vem sofrendo muitas críticas em função da retenção de dividendos extraordinários promovida pelo Conselho de Administração.

Além dos dividendos retidos, a situação do presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, preocupa o mercado. A decisão do colegiado, segundo ele, foi orientada pelo “presidente da República e pelos seus auxiliares diretos”.

Aí reside o maior medo do mercado em relação ao governo Lula: intervenção. O PT tem a clara convicção que o estado deve ser o principal indutor da economia, e que empresas estatais precisam estar a serviço da sociedade brasileira, e não de acionistas. Embora seja um caminho possível, empresas de capital aberto possuem regras próprias.
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Do esquecimento ao centro do debate: quais projetos existem para o Solar dos Airizes? Prefeitura, Ferroport, Sabra, Família Lamego, Iphan e Lei Rouanet
14/03/2024 | 21h14
Prefeito Wladimir Garotinho visita o interior do Solar dos Airizes - prefeitura conclui licitação para iniciar o escoramento e a construção de sobrecobertura
Prefeito Wladimir Garotinho visita o interior do Solar dos Airizes - prefeitura conclui licitação para iniciar o escoramento e a construção de sobrecobertura / César Ferreira -PMCG
O Solar dos Airizes, casarão às margens da BR 356 (Campos x São João da Barra), passou da condição de patrimônio esquecido para ser objeto de, pelo menos, três grandes projetos. São propostas distintas que envolvem o Solar, em fases diferentes de execução, e desenvolvidas por instituições independentes entre si.

A construção é repleta de simbolismos. Em Campos, o solar foi o primeiro imóvel a receber tombamento federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1940, a pedido do próprio Alberto Lamego, então proprietário do Solar. É tido por muitos como sendo o local de inspiração para o romance “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães.
Arquivo Nacional


Desde que foi tombado, o Solar já era sondado para abrigar um museu, para tratar de sua direta ligação com o período histórico das grandes fazendas de produção de cana-de-açúcar. Sem nenhuma dessas iniciativas acontecer, o solar foi abandonado. Em meados dos anos 1960, relatórios técnicos do Iphan já apontavam a necessidade de fazer intervenções na construção.
Com intervenções pontuais na década de 1970, foi só em 2003 que uma grande reforma no telhado foi feita por decisão do Iphan, o que garantiu sua sobrevida até aqui.

A quem pertence o Solar dos Airizes? A família Lamego segue como proprietária do solar e da fazenda dos Airizes. O bem que recebeu proteção do Estado Brasileiro é o próprio casarão e seu entorno, não abrange as terras.

Apesar de ser a proprietária, a família tem limitações de uso e venda do solar, uma vez que o tombamento não permite dispor da construção sem autorização do Iphan. Pelo abandono do prédio, os proprietários responderam ao órgão em diversos processos internos, onde pesadas multas foram impostas.

A família recorreu das penalidades, e conseguiu provar que não tinha condições financeiras para manter um patrimônio histórico como o Solar dos Airizes. Além do Iphan, o Ministério Público Federal (MPF) moveu ação para determinar o destino do casarão, processo que teve trânsito em julgado — quando não cabem mais recursos — em 2020 (trazido em primeira mão por esta coluna, aqui).

Com a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF-2), a prefeitura de Campos passou a ser a responsável pela manutenção e restauro do Solar, e poder decidir sobre seu uso. A família Lamego já demonstrou interesse em fazer a doação para a prefeitura, o que ainda não aconteceu.
César Ferreira -PMCG


Prefeitura de Campos - A prefeitura de Campos protocolou junto ao Iphan um pedido de autorização para realizar o escoramento das partes mais críticas do prédio, e a construção de uma cobertura temporária em toda construção, como forma de tentar conter a ação do tempo e das chuvas, enquanto as obras de restauro não se iniciam.

Segundo fonte do Iphan, o projeto apresenta algumas pendências, mas com chances de aprovação. Com o projeto protocolado, a prefeitura iniciou o processo licitatório para as obras propostas no Solar, e nesta quarta-feira (13), o prefeito Wladimir Garotinho anunciou que a licitação já foi finalizada, e que dentro de 15 dias será iniciado o escoramento e a sobrecobertura do prédio histórico.

— A Prefeitura finalizou a licitação para início da restauração do Solar dos Airizes. Uma reivindicação muito antiga da comunidade de historiadores e de amantes da história da nossa cidade. Tem uma determinação judicial, inclusive, bem antiga, determinando que isso seja feito, mas nunca havia sido tomada nenhuma providência, e a Prefeitura agora conseguiu finalizar a licitação e, no máximo em 15 dias, será feito o escoramento e a cobertura de todo aquele prédio, para evitar que ainda se deteriore mais e para poder fazer a restauração — disse o prefeito em suas redes sociais.
Ferroport - Em maio de 2023, foi assinado um protocolo de intenções entre o município de Campos e a empresa Ferroport, que opera o terminal de exportação de minério de ferro no Porto do Açu. O objetivo da parceria era achar soluções conjuntas para o Solar dos Airizes.

Além do protocolo de intenções, a prefeitura editou a Portaria nº 952, de 16 de maio de 2023, que criou um Grupo de Trabalho específico para a realização de estudos relativos à restauração do patrimônio.
Equipe da empresa Ferroport e prefeitura de Campos - protocolo de intenções
Equipe da empresa Ferroport e prefeitura de Campos - protocolo de intenções / César Ferreira -PMCG


A Ferroport acompanha o andamento desse grupo de trabalho, liderado pela prefeitura, que tem a missão de elaborar um projeto de restauração para o Solar e seu entorno, onde também seriam definidos os usos para o patrimônio.
A promessa é que tão logo esse projeto seja aprovado pelo Iphan e pelo Ministério da Cultura, poderá receber os recursos vindos da Lei Rouanet, e dentro dos parâmetros do programa, serem aplicados pela Ferroport nos próximos anos.

Sabra - Em paralelo ao projeto da prefeitura de escoramento e sobrecobertura, e do grupo de trabalho criado a partir do protocolo de intenções, a associação mineira “Sociedade Artística Brasileira – Sabra”, conseguiu aprovar junto ao Iphan um outro projeto para restauro para o Solar dos Airizes.

O projeto da Sabra também foi aprovado para ser utilizado via Lei Rouanet, onde está apto a captar 100% do valor que foi proposto: exatamente R$ 28.410.937,55. Para que os recursos sejam aplicados, empresas interessadas podem atuar como financiadoras, tendo o valor correspondente compensado nos impostos devidos.

Folha da Manhã
Iphan - A autarquia federal é a responsável pelo tombamento e proteção do Solar dos Airizes. O processo iniciado nos anos 1940, que teve participação direta do modernista Mário de Andrade, dentre outras figuras importantes do Brasil, confere ao Iphan a tutela do bem, por seu valor histórico e cultural de relevância nacional.

Todos os projetos que envolvem o Solar devem possuir o aval do Iphan, mesmo que intervenham minimamente na construção e no seu entorno. O órgão sofreu duras baixas nos últimos anos, mas começa a recuperar sua força de trabalho, e realiza visitas e vistorias em Campos, cada vez mais frequentes.

Por que restaurar? Construído no início do século XIX, sob encomenda do Comendador Claudio do Couto e Souza, à margem direita do rio Paraíba, o sobrado, de grandes proporções e inspiração neoclássica, típico das fazendas de Campos do período Imperial, possui dois pavimentos, sendo o primeiro um porão alto.

O Airizes tem sua planta em formato de “U”, com a fachada distribuída simetricamente. Com extensão de 45 metros, possui na face principal “cinco grandes janelas em arco pleno, com raios em madeira, e três estreitas sacadas com grades de ferro”, como descreve o arquiteto Humberto Chagas.

No interior do Solar, funcionava a Biblioteca e o Arquivo Alberto Lamego, onde diversas obras raras eram guardadas, assim como mapas, documentos históricos e fotografias. Esse rico acervo foi adquirido por um museu em São Paulo. No interior do Airizes também existia uma significativa quantidade de telas dos mais variados artistas, como Both, Poussin, Taunay, Sanzio, Teniers, Savery, Jan Steen, entre outros. Essa pinacoteca pertence hoje ao Museu Ary Parreiras, em Niterói.

Restaurar o Solar dos Airizes não representa apenas uma obrigação histórica, cultural, moral e jurídica. Salvar as paredes alvenaria autoportante de adobe, tijolos cerâmicos maciços e madeira de lei, construída com mão de obra escravizada, significa fazer com que Campos e região se depare com sua própria história — e aprenda com ela.
César Ferreira -PMCG





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Edmundo Siqueira

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