Escritor angolano revisita mito Zumbi dos Palmares
08/12/2017 14:52 - Atualizado em 11/12/2017 14:09
O segundo capítulo da graphic novel “Angola Janga”, de Marcelo D’Salete, mostra como um grupo de mercenários, provavelmente portugueses, parte para a Serra da Barriga, em 1655, “capturar calhambola de Palmares”. Eles encontram um grupo de escravos fugidos e, depois de uma das diversas cenas eletrizantes de batalhas que permeiam o livro, um bebê é encontrado e levado ao padre de Porto Calvo, cidade da Capitania de Pernambuco, nas cercanias. 15 anos depois, a criança foge para Palmares e ali se torna Zumbi.
A história do nascimento de Zumbi dos Palmares é ficção — mas o que D’Salete, quadrinista e mestre em história da arte pela USP, propõe é Uma História de Palmares, conforme o subtítulo do seu romance gráfico, que chega agora às livrarias pela Editora Veneta. Antecipado por fãs das HQs no Brasil, o livro está há 11 anos sendo trabalhado pelo artista, que nesse meio tempo lançou outras obras, e demandou uma pesquisa enorme que vai do Museu Afro Brasil, em São Paulo, ao Memorial de Palmares, em Alagoas.
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Marcelo DENTITY_apos_ENTITYSalete lança ENTITY_quot_ENTITYAngola JangaENTITY_quot_ENTITY / Divulgação
Com 432 páginas, o livro é um impressionante romance histórico calcado em fatos sobre o mais conhecido foco de resistência negra do Brasil colonial. “Esta não é ‘a’ história. Mas ‘uma’ história de Palmares”, esclarece o autor no posfácio. “Há documentos principalmente das últimas décadas da batalha. Essas fontes são de soldados, oficiais, senhores de engenho, governadores, padres etc. Enfim, pessoas comprometidas com a destruição de Palmares. Esta obra, por sua vez, pretende conduzir a narrativa a partir do olhar dos palmaristas. Para isso a ficção tem um papel significativo. É a partir dela que podemos transpor muros e acessar, pela poesia e arte, aqueles homens e mulheres.”
A primeira notícia sobre Palmares surgiu no final do século 16, e a ocupação holandesa em Pernambuco, entre 1630 e 1654, propiciou condições para mais pessoas se deslocarem para “Angola Janga” (“pequena Angola”, na língua banto quimbundo, nome usado para se referir aos quilombos da região). A capital, o mocambo de Macaco, chegou a ter 6 mil habitantes (contra 8 mil de Recife, na mesma época), mas mais de 20 mil escravos fugidos moravam lá. O livro conta a história das últimas décadas da ocupação, até a morte de Zumbi e os conflitos finais.
“O Brasil de hoje tem muitas referências e vive a partir de uma sombra, um fantasma, que é a escravidão”, diz o autor. “A escravidão existiu por mais de três séculos. Por exemplo, é incrível que o modo como tratamos o trabalho manual, muito desvalorizado, é relacionado com esse passado escravocrata. Isso é um exemplo de como um pensamento geral até hoje não consegue ver os grupos negros e indígenas como seres com plenos direitos e cidadania. Até hoje, o que temos é uma subcidadania, que se dá a partir da ideia estratificada de organização da sociedade. É racismo, que faz com que certos grupos não consigam acessar bens básicos, serviços públicos e muito menos espaços de poder.”
O livro não é o primeiro quadrinho a tratar do tema no Brasil, mas é sim um acontecimento no mercado de HQs. “Palmares acontece durante 100 anos, e os últimos 50 têm mais documentos”, diz D’Salete. “O que tentei fazer foi uma leitura muito pessoal, tentando trazer alguns conflitos que acrescentam complexidade à história, como o Acordo de Cucaú (a principal tentativa de acordo de paz entre os aquilombados e a Coroa), e a presença do Terço dos Henriques, grupo de soldados negros e mestiços que lutaram contra os holandeses e contra os palmaristas.”
O autor — que também é professor de artes plásticas no ensino básico em SP — explica que por muito tempo no Brasil as histórias contadas sobre as populações negras e indígenas partiram da perspectiva da casa grande, de autores brancos. “Hoje existe uma exigência para que esses grupos falem sobre sua história. Mas não é só falar… é também ter visibilidade. A nossa sociedade ignora sistematicamente essa produção. As pessoas estão tentando fazer parte do espaço político e da discussão sobre as obras. Lógico que elas se sentirão incomodadas se a obra desconsiderar a discussão de identidade.” Ele conclui: “é possível um autor não negro falar de história negra. O que não se pode fazer é substituir o discurso. A gente tem que valorizar e tentar compreender a fala desses grupos”. (A.N.)

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