Folha Letras: Franceses na ecorregião de São Tomé no século XIX
* Arthur Soffiat - Atualizado em 10/04/2024 17:09
Dora Paes
Por Aristides Soffiati
Embora a França tenha exercido grande influência cultural no Brasil, a presença física de franceses como imigrantes foi pequena quando comparada à imigração italiana, suíça, alemã, ucraniana, libanesa, chinesa e japonesa.
Na ecorregião de São Tomé, Campos parece ter sido a cidade mais procurada por franceses e belgas a partir do início do governo pessoal de D. Pedro II (1840). Artesãos, profissionais liberais, agropecuaristas, industriais e comerciantes se instalaram na cidade e na zona rural, casando-se com famílias locais, formando descendência e ganhado reputação. Em toda a ecorregião de São Tomé, alguns franceses e belgas vieram atraídos por promessas de melhores condições de vida em colônias agrícolas que substituíam o regime de escravização africana.
Porém, torna-se mais compreensível e informativo falar da presença francesa no norte-noroeste do Rio de Janeiro, sul do Espírito Santo e parte da Zona da Mata de Minas Gerais, embora alongue por demais o título de qualquer artigo ou livro.
Segundo Alberto Frederico de Morais Lamego (“A terra goytacá à luz de documentos inéditos”, tomo V. Niterói: Diário Oficial, 1942), muitos franceses instalaram-se na cidade de Campos. Como trabalhadores autônomos, ele menciona prestadores de serviço das famílias Rousseau e Mercier (caldeireiros), Buller (latoeiro), Cuter (ferrador), Rodoz (carpinteiro e marceneiro). Como fazendeiros, Dubois e François Dumas (irmão de Alexandre Dumas, pai). Na indústria, destacaram-se Roses, Preander e Feydit (curtume); Sence, Sellier, Couret e Lombard (usineiros). Em 1900, o engenho central de Tocos foi adquirido pela Sucrerie du Cupim, que, em 1907, passou a denominar-se Societé Sucreries Bresilienne, empresa francesa que possuía também a Usina do Cupim (MANHÃES, Larissa. Industriais franceses. Comunicação oral: 11/08/2022). Victor Sence, também francês, trabalhou numa das usinas da Societé e montou depois sua própria usina em Conceição de Macabu. No comércio, as casas de moda estavam sob domínio francês, com as famílias Vigné, Chatel, Arthez, proprietárias de lojas que importavam produtos diretamente da França. O mesmo acontecia com a ourivesaria, dominada pelas famílias Rouff, Marchand, Berenger, Norat, Mangnin e Berand.
Eram famosas as alfaiatarias das famílias Vigné, Constant, Jeudy e Rebel, bem como as sapatarias dos Delman, Duchein, Discours, Milliet, Espezer, Burguier. Como modistas, as madames Lacourte, Gamondes, bem como Jean Viannay, eram muito procurados. Entre os cabeleireiros, destacavam-se Hypolite Poupard e Louis Blond.
Essas elegantes casas comerciais entraram em decadência com a entrada em funcionamento da ferrovia Campos-Macaé-Rio de Janeiro, pois o tempo de viagem entre o interior e a capital do Império e, posteriormente, da República tornou-se mais curto, facilitando as compras no Rio de Janeiro diretamente pelo consumidor.
Julian Benoit foi dono da Tinturaria Francesa. Entre os profissionais liberais, mencionem-se pessoas de nome Dufournel, Léclerc e Antoine (dentistas), Renne, Montaigne, Hamberger (professores). Clovis Arrault foi famoso pintor. Por muito tempo, atuou em Campos e conceituada parteira Pauline Falaise, com formação universitária na França. Bastante conhecido também foi o Padre Destouches. Jules Lambert construiu uma ponte móvel ligando Campos a Guarus.
Entre outros nomes que se instalaram em Campos, mencionemos Bouet, Dubois, Bloc, Norat, Lemonier, Leroux, Buissièrre, Lambert, Boynard, Lamy, Lacourt, Clement, Ressegnier, Lemontay, Esberard, Eugene, Jorand, Berenger, Fabry, Leaubon e Thevenot.
Nesse recorte que envolve parte de Minas Gerais, do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, a iniciativa de criar uma colônia belga em Pedra Lisa, zona serrana baixa de Campos entre os antigos sertões do Nogueira, de Cacimbas e da Onça, partiu do governo provincial do Rio de Janeiro em consórcio com a iniciativa privada. Em 1842, o presidente da província contratou o belga José Nellis com vistas à instalação de uma colônia agrícola no entorno da Pedra Lisa, uma das mais belas formações pedregosas da Serra do Mar.
Em 1844, 119 colonos belgas se instalaram no local para o desenvolvimento de um projeto agrícola, mas poucos permaneceram na área, provavelmente pelo hiato entre as promessas de uma terra edênica e a realidade. O primeiro trabalho a ser executado num terreno fortemente ondulado foi a remoção da floresta, que gerava lenha e madeira, mas expunha o solo a intempéries. A colônia situava-se entre as bacias dos rios Guaxindiba e Itabapoana. A erosão provocava o assoreamento dos poucos cursos d’água. Uma das plantas escolhidas para o plantio foi o café.
A colônia existiu durante pouco mais de um ano. Os belgas a abandonaram, permanecendo nela apenas o contratante: Ludgero José Nellis. Atualmente, não resta qualquer vestígio da efêmera colônia.
Outra tentativa de instalar uma colônia agrícola com franceses ocorreu em Valão dos Veados, São Fidélis. Em mapa de 1854, que atualizou as alterações feitas a partir da carta de 1846, formulada por ordem de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, então presidente da Província do Rio de Janeiro, aparece, pela primeira vez, junto ao rio Dois Rios, a colônia Valão dos Veados. Não há a informação se se trata de um córrego, de uma fazenda ou de um povoado.
Maria Isabel Chrysostomo informa que cerca de 160 documentos relativos a essa colônia foram descobertos no Fundo Valão dos Veados, depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e publicado em relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro para os anos de 1835 a 1871. O empresário Eugênio Aprígio da Veiga assinou, em 1845, um contrato como o governo imperial brasileiro para importar e instalar colonos europeus na fazenda Valão dos Veados, na freguesia de São Fidélis, Termo de Campos. Estudos têm mostrado que a pressão cada vez maior contra o tráfico atlântico de africanos como escravos levou os traficantes ou para o tráfico ilegal ou para a criação de colônias com trabalhadores europeus e orientais, sempre oferecendo falsamente condições melhores que aquelas em que viviam em suas pátrias os futuros migrantes. Em relatório da Sociedade da Colônia Agrária Vallão dos Veados, de 1853, informa-se que havia nela 62 brasileiros, 178 portugueses, 33 franceses, 13 belgas, 7 alemães, 5 espanhóis e 2 italianos. A área da colônia era irrigada principalmente pelo rio Dois Rios, outrora denominado rio de Gentio e mais tarde rio Grande. Era toda recoberta de mata, de onde vinham lenha e madeira. Produziam-se cana, café, mandioca, milho, feijão, arroz, além da criação de porcos para a subsistência dos colonos.
Franceses de sobrenome Vianney, Poutis, Roussier, Panisset etc fixaram-se na colônia Valão dos Veados (CHRYSOTOMO, Maria Isabel de Jesus. Os colonos franceses da Colônia Valão dos Veados - 1845-1854. In: VIDAL, Laurent e LUCA, Tania Regina de (orgs). “Franceses no Brasil: séculos XIX e XX”. São Paulo: UNESP, 2009). O nome foi substituído por Colônia, hoje 4° distrito de São Fidélis.
Já em Pureza, não houve nenhuma iniciativa de fundar, no atual 3° distrito de São Fidélis, uma colônia agrícola com brasileiros ou estrangeiros. A localidade ergueu-se às margens da estrada Ouro Preto-Campos, aberta em 1809, no trecho do Rio de Janeiro (CAPELLA, Maria Joana Neto; CARRARA, Angelo Alves e CASTRO, José Flávio Morais. “A estrada geral de Minas a Campos dos Goytacazes”. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2021). A estrada corria na margem esquerda do rio Paraíba do Sul entre a atual Aperibé e o pontal formado pelo encontro do rio Muriaé com o rio Paraíba do Sul. Dali, chegava-se a Campos e a São João da Barra em embarcações. Em Pureza, havia um antigo engenho de açúcar suplantado por um engenho central moderno vindo da França. Como se dizia na época, a fábrica foi montada do pé, ou seja, sem aproveitar nenhuma construção anterior. A firma vendedora foi a francesa Cail, que enviou para Pureza o prédio desmontado, o maquinário, os engenheiros e os operários. Essa experiência se insere, assim, na modernização da agroindústria sucroalcooleira, que começou a partir de 1870 no mundo.
Franceses permaneceram em Pureza findos os trabalhos de montagem do engenho central. Muitos constituíram famílias casando-se com brasileiras, mas mantendo os sobrenomes, com assinala Nelzimar Lacerda. Os nomes franceses permanecem em pessoas que ainda vivem em Pureza ou saíram para outros lugares do norte-noroeste fluminense. Para mais longe até, como Pointis, Panisset, Gaudard, Crellier, Signourel, Boynard, Eccard, Grosjean, Veichard, Louvain, Falquet, Saint Jean, Lummay, Poget, Jaillerat (LACERDA, Nelzimar. “Usina Pureza e Vila de Pureza”. São Fidélis: 6 de outubro de 2018). Em várias sepulturas do cemitério de Pureza, figuram nomes franceses.
No vale do rio Carangola, afluente do rio Muriaé e subafluente do rio Paraíba do Sul, viveu o francês Alexandre-Marie Bréthel entre 1862 a 1901, quando faleceu. Farmacêutico, ele veio a convite de Félix-Antoine Dissandes Saint Edme de Monlevade, que tinha propriedades na França e no Brasil. Monlevade convidou Bréthel a administrar seus bens no Brasil. O farmacêutico tornou-se fazendeiro no vale do Carangola e nunca mais retornou à França, nem para visitar sua família. Ele foi sepultado na cidade de Porciúncula. Embora detentor de muitas posses, Monlevade morreu pobre no Brasil, em 1889, e foi sepultado na cidade de Tombos de Carangola (MASSA, Françoise. “Um francês no vale do Carangola”. Belo Horizonte: Crisálida, 2016).
Na Zona da Mata meridional, integrante da ecorregião de São Tomé, movimentou-se outro francês de grande importância para a consolidação da civilização ocidental numa parte do Brasil fortemente povoada por nações do tronco linguístico macro-jê. Trata-se de Guido Thomaz Marlière, nascido em Jarnages, em 1767 e falecido em Guidoval, Brasil, em 15 de junho de 1836. Militar, ele lutou nas guerras napoleônicas. Migrou para o Brasil. Foi capitão de cavalaria e diretor dos índios. Integrou o Regimento da Coroa durante 33 anos e atuou na pacificação de guerras entre povos nativos e destes contra colonos de origem europeia em Minas Gerais. Seu trabalho de aculturação resultou na criação de núcleos habitacionais. Para os padrões da época, foi considerado um grande humanista no tratamento dos povos nativos, pois os portugueses entendiam que esses povos não tinham direitos e deveriam ser expulsos de suas terras ou mortos (AGUIAR, José Otávio. “Memórias e histórias de Guido Thomaz Marlière (1808-1836)”, 1ª edição. Campina Grande: Editora da Universidade Federal de Campina Grande, 2008).

*Professor, ambientalista, escritor, historiador e membro da Academia Campista de Letras

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