A polarização afetiva e as armadilhas coletivas
Edmundo Siqueira - Atualizado em 28/01/2024 12:58
Imagem gerada por IA - Edmundo Siqueira

Não seria impossível — talvez tenha existido de fato — ver um vendedor de rua em qualquer capital brasileira expondo suas camisas de time de futebol em um varal, e entre elas estivessem camisas da Palestina e de Israel. O Brasil atravessa um tempo de polarização extremada e de pensamento binário, que mesmo sobre qual lado você está em conflitos no Oriente Médio são determinantes para formar identidades.

Vivemos, por vários motivos, o que está sendo chamado de “polarização afetiva”, que é quando as discussões e ideologias deixam de ser políticas e passam a ser formadoras de identidade e de pertencimento de grupos sociais. Em outras palavras: a depender da opinião sobre um tema, alguém pode ser aceito ou expulso de uma tribo, de um grupo de pessoas que radicalizaram suas posições.

Relacionar identidade e pertencimento com posições políticas, transformam o jogo democrático em algo tribalizado, essencialmente emotivo e afetivo, portanto. Podemos culpar as redes sociais, mas determinar qual raça ou tribo alguém pertence sempre foi um instrumento poderoso para o ódio, esse significativamente mais antigo que as redes.

A grande contribuição que o mundo virtual trouxe para esse jogo antipolítico foi a gamificação. Uma armadilha que traz ao manipulado uma sensação de prazer e satisfação quando oferece recompensas imediatas por cumprir determinada tarefa ou agir de determinado jeito. Os “likes” e “cliques” se multiplicam por posições radicais, ou por conteúdos que geram discórdia.

Os algoritmos não estão interessados em posições moderadas, principalmente políticas. Mas, de novo, não podemos culpar os instrumentos. O algoritmo responde aos estímulos dados pelas pessoas, que mesmo manipuladas, refletem suas próprias posições extremadas.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina. / Folhapress - Folha de S. Paulo
Essas armadilhas modernas são eficazes e massificadas. Instrumentos virtuais que utilizam-se de sensações e instintos humanos, esses universais. Portanto, mesmo que tenhamos consciência desses fatores, não é humanamente possível nos colocarmos alheios a esses estímulos, e possivelmente nos reconhecemos caindo em algumas dessas armadilhas.


Voltemos ao caso das camisas de time misturadas às predileções na guerra do Oriente Médio: embora seja um conflito importante, de contornos milenares e envolto em questões religiosas, assumir uma posição neutra ou mediadora não é aceitável nesse jogo antipolítico. Defender a solução de dois estados — Israel e Palestina — não é uma posição que gera “engajamento”. É preciso que você defina de que lado está, mesmo em uma situação de alta complexidade.

Além de permitir que mais e mais pessoas se engajem, estimular posições binárias permite que as soluções sejam de fácil entendimento. Ora, basta eliminar Israel para que o povo palestino deixe de sofrer com o genocídio. Ou, fortaleça o domínio de Israel na região e terá a paz.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. / Folhapress - Folha de S. Paulo

O maniqueísmo proposital estimulado pelas redes simplifica decisões complexas, a ponto de pessoas determinarem que um semelhante está do lado do bem ou do mal por suas posições políticas. Se alguém é a favor de dois estados no conflito Israel e Palestina, está do lado do mais forte, portanto configura-se como mal na visão de alguém pró-palestina. E vice-versa.

Política e conflito - Radicalizar os temas se tornou crucial para os políticos que buscam visibilidade e engajamento virtual, e é preciso que um conjunto de posições seja pré-estabelecido para que esse representante seja aceito. Temas como aborto, armas e vacinas se tornaram dogmas definidores nos últimos tempos, no Brasil. Não há meio termo, é preciso que um combo decisório seja apresentado pelo político. Ou se é contra, ou se é a favor.

Há pouco mais de 80 anos, o mundo assistia tropas alemãs marcharem pela Europa em nome de dominação ideológica, maniqueísmo, radicalismo e tribalismo. Há pouco mais de 135 anos o Brasil açoitava e comercializava pessoas por questões raciais. Fatos que, historicamente, foram "ontem".

Discursos de ódio podem ser ouvidos hoje em mesmo tom, assim como camisas e bandeiras tremulam em varais e varandas ideológicas, esperando que o próximo manipulado as comprem e as exponham como sua identidade. São armadilhas perigosas. E repetidas. 

Senhora alemã lendo propaganda nazista exposta em locais públicos.
Senhora alemã lendo propaganda nazista exposta em locais públicos. / Holocaust Encyclopedia



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