A brasilidade, a Constituição, o STF e os contragolpes
Edmundo Siqueira 06/01/2024 13:41 - Atualizado em 13/01/2024 10:41
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Candido Portinari, filho de imigrantes italianos, nascido no interior de São Paulo em 1903, é tido como um dos maiores pintores do mundo. Autor dos painéis “Guerra e Paz”, expostos desde 1957 na sede da ONU em Nova Iorque, e de obras emblemáticas como o “O Lavrador de Café”, que pintou quando retornou ao Brasil no início dos anos 1930, Portinari faleceu aos 58 anos, e não pôde viver no país fundado pela Constituição Cidadã, de 1988.

Já o brasileiro que recebeu seu nome em homenagem, Alberto Portinari Rodrigues, nasceu em 5 de outubro de 1988, no mesmo dia da criação do Estado do Tocantins — sendo ele o primeiro cidadão tocantinense — e da promulgação da Constituição Federal do Brasil.
O Café, de Portinari
O Café, de Portinari / Google / Reprodução ND
“Ela [a Constituição] passa a enxergar o brasileiro como um todo, a nossa diversidade, e imaginar que nós vivemos em cenários, em situações diferentes. A Constituição Federal vem para abraçar a todos”, disse Portinari, o tocantinense, na abertura do documentário “Filhos da Democracia - Os 35 Anos da Constituição”, dirigido por Marcya Reis e

produzido pela Câmara dos Deputados, em 2023.
Documentário Filhos da Democracia - Os 35 Anos da Constituição (YouTube).

Enquanto sua fala podia ser ouvida como narração do documentário, o espectador via o jovem Portinari misturar café solúvel em uma panela simples, que depois foi passado por um coador de pano, caindo em uma garrafa térmica alaranjada. Na cena seguinte, com uma parede de tijolos aparentes no fundo, a mesma garrafa é usada por sua mãe, Nelsir Ferreira, para servir-lhe uma xícara. Ele, sentado em uma cadeira de plástico que fazia conjunto de uma mesa forrada caprichosamente por uma toalha branca, sorria, assim como sua mãe.

Imagem e som se misturavam no documentário para retratar um Brasil real, diverso, de dimensões continentais e em construção. Um país que ainda aprende a conviver com a democracia recriada há 35 anos, quando a chamada “Nova República” ainda engatinhava após o fim da Ditadura Militar, e se transformava em um regime democrático com a promulgação da Constituição.

“Passamos a ter direito de falar, né (sic)? direito de pensar e direito de se manifestar. A gente viu na história o que o Brasil já passou, com a censura e com todos os movimentos que tiveram, de estudantes, artistas, de jornalistas…que tiveram muitos momentos difíceis de prisão e de exílio, por não poder falar e se manifestar. Com a Constituição de 1988 a gente viu uma luz, onde as pessoas passaram a ter direito de falar, de dizer o que pensa, de brigar por seus direitos” — complementou Alberto Portinari.

Retratos do Brasil

Os Portinaris, o gênio artístico e o tocantinense comum, fazem parte de uma mesma construção social, são retratos de um mesmo Brasil. Uma nação que em pouco mais de 80 anos viu sua população aumentar em 162 milhões de pessoas.

Alguns dados são impressionantes e demonstram a complexidade de um país que ocupa a quinta posição entre os mais extensos países do globo: em 1940, a imensa maioria da população vivia em área rural, chegando a 69%. Em 1980 esses números praticamente se invertem, até que em 2010, apenas 70 anos depois, o Brasil passou a ter 84% das pessoas vivendo em áreas urbanas.

Do penúltimo ao último censo (2010 e 2022) realizado pelo IBGE, o Sudeste foi a região do Brasil que mais ganhou população — um salto de 80.364.410 para 84.847.187 habitantes.
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Era um tempo de transição, a realidade em que a Constituição foi pensada. Não apenas em questões demográficas, mas também democráticas. O Brasil saía de 21 anos de ditadura militar, período iniciado após mais um golpe de Estado que o país sofreu, em 1964.

Era preciso construir uma Carta que possibilitasse não apenas preparar o país para os processos transitórios em curso, mas também para uma nova forma de convívio entre a população e as instituições.

Pós-ditadura e Nova República

A Constituição foi o principal instrumento transformador para o novo país que se formou com a Nova República, e não foi pouco o que ela proporcionou. Depois de 5 de outubro de 1988, entrava em vigor uma Constituição que foi apelidada por um de seus principais articuladores de “cidadã”, com toda razão de ser.
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Inaugurava-se uma nova forma de relações jurídico-institucionais no país, trazendo uma grande ampliação das liberdades civis e os direitos e garantias individuais. A nova Carta trouxe normas e cláusulas que alteraram as relações econômicas, políticas e sociais, como, por exemplo, conceder direito de voto aos analfabetos e aos jovens de 16 a 17 anos, novos direitos trabalhistas, como redução da jornada semanal de 48 para 44 horas, seguro-desemprego e férias remuneradas acrescidas de um terço do salário.


   Outras das principais medidas da Constituição de 1988:

  º Eleições majoritárias em dois turnos;
  º direito à greve e liberdade sindical;
  º aumento da licença-maternidade de três para quatro meses;
  º criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em substituição ao Tribunal Federal de Recursos;
  º criação dos mandados de injunção, de segurança coletivo e restabelecimento do habeas corpus;
  º criação do habeas data (instrumento que garante o direito de informações);
  º reforma no sistema tributário e na repartição das receitas tributárias federais;
  º fortalecimento de estados e municípios;
  º nova política agrícola e fundiária;
  º leis de proteção ao meio ambiente;
  º fim da censura em rádios, TVs, teatros, jornais e demais meios de comunicação; e
  º novas regras sobre seguridade e assistência social.
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O STF e a garantia

O Supremo Tribunal Federal (STF) não foi criado junto com a Constituição Federal de 1988. A primeira Corte Suprema que a República experimentou veio após o fim do Império.

O funcionamento da Corte teve suas primeiras regras aprovadas em 8 de agosto de 1891, até então adotando as regras do extinto Supremo Tribunal de Justiça. As sessões eram realizadas aos sábados e às quartas-feiras, e como estabelecia a primeira Constituição, eram 15 os ministros nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, sendo 10 do antigo Supremo Tribunal de Justiça nessa primeira composição.

João Evangelista de Negreiros Sayão Lobato, o Visconde de Sabará, presidiu a primeira sessão do Supremo, despachando em uma mesa que sequer tinha gavetas para guardar os documentos da posse. A Corte funcionou até 1895 na sala da Corte de Apelação do Distrito Federal, tendo um prédio exclusivo depois da virada do século, em 1902. O STF assumiu seu lugar definitivo na Praça dos Três Poderes em 21 de abril de 1960.

Desde então, o Supremo se firmou como o garantidor maior dos direitos fundamentais dos brasileiros, e o guardião das constituições — da que o criou, em 1891, e da última, de 1988. A Corte é essencial para a garantia de direitos fundamentais e fundacionais de uma democracia: as liberdades de imprensa, de religião e de expressão. Liberdades que permitem o “direito de falar”, como lembrou o Portinari de Tocantins.

Com a promulgação de uma “Constituição Cidadã”, o Supremo se firma também como garantidor da cidadania e da convivência solidária. Uma Corte que em seu início se limitava a examinar controvérsias de direito privado, passou a ser um agente jurídico e político, limitando o poder parlamentar quando avalia as leis criadas e as confrontam com a Constituição, do executivo quando impede abusos estatais aos direitos individuais e do judiciário atuando como instância máxima.

Os golpes, as tentativas e os contragolpes

Depois da Primeira República e da primeira Constituição, em 1891, o Brasil teve outras cinco Constituições: 1934, 1937, 1946, 1967 e a cidadã de 1988. Entre as várias mudanças que a Constituição que vigora no país há mais de 35 anos, está a ampliação do STF no terreno institucional.

Durante a sessão solene pelo centenário do STF, em 1991, o ex-presidente José Sarney, então senador, se referiu a um “Supremo monárquico”, onde não havia dimensão política, “que servia a um Estado unitário, sob a invocação do imperador”, e lembrou que o STF nunca faltou à nação, constituindo-se como “uma instituição republicana, federativa”.

Mas nem sempre conseguiu, em uma história marcada por golpes de Estado e autogolpes — mesmo a chegada da República e da primeira Constituição veio através de um golpe, que derrubou o Império. Em 1930, 37, 45 e no último em 1964, a Constituição e seu guardião, o Supremo, sucumbiram ao poder das armas e da violência.

O regime militar de 1964 limitou a competência do Supremo, o deixando sem condições de defender os muitos direitos individuais afrontados no período. Mas, em uma democracia estabelecida e com a Suprema Corte consolidada há mais de três décadas, a tentativa de golpe institucional em 8 de janeiro de 2023 foi frustrada.

Os atos antidemocráticos daquele dia, que nasceram nos acampamentos em frente aos quartéis e culminaram nos ataques físicos às sedes dos três poderes da República — na mesma praça que estão desde a fundação da capital — não resultaram em mais uma ruptura democrática, tendo a ação direta dos poderes constituídos pela Constituição e pelo seu guardião, o STF.
Rodrigo Bittar/Câmara dos Deputados Fonte: Agência Câmara de Notícias
Durante os ataques, manifestantes pediam mais um golpe de Estado — ou um autogolpe que fosse dado pelo governo de ocasião —, e empreenderam vários danos ao patrimônio público, como vidros quebrados, móveis danificados e até incêndios. E diversas obras de arte de valor inestimável foram danificadas, incluindo uma de Candido Portinari.

A cidadania, os direitos, os deveres e a consolidação da democracia, todos garantidos pela Constituição e por suas instituições, deram um contragolpe em 8 de janeiro de 2023, e continuaram a permitir a existência de um país livre, que valoriza a cidadania sendo possível que Portinaris existam.

Um país ainda em construção

“Meu pai e minha mãe não estudaram, não tiveram essa oportunidade. Isso que eu fico pensando. Ficaram só trabalhando na roça. E quando eu trabalhava não tinha folga não, nem dia de domingo. Era diretão (sic). Naquela época a gente trabalhava e passava o dia, dormia no trabalho, ficava lá direto”, disse Nelsir Ferreira, mãe de Alberto Portinari, no mesmo documentário produzido pela Câmara dos Deputados.

A Constituição de 1988 construiu um país mais justo. Porém, ela e a Nova República não fizeram o suficiente. Alguns desafios continuam evidentes no Brasil atual, como permitir que o acesso à justiça, à segurança pública, à educação pública de qualidade e à saúde sejam de fato universais. Ainda somos um país muito desigual, com fortes traços de misoginia e racismo, que nunca conseguiu a verdadeira justiça social para quem é preto e pobre, assim como o era no Brasil antigo.

No mesmo sentido, a Constituição permitiu um estado de coisas com ampliação considerável do acesso de negros, de mulheres, de indígenas e tantas outros grupos minorizados aos espaços da vida pública, mas ainda está longe de representar a distribuição da demografia brasileira.

Mesmo com essas falhas, e nas complexidades de um país continental, foi feito muito em 35 anos. E ainda há muito para fazer. Mas, Nelsir e Portinari vivem em um país diferente, com instituições mais fortes, democráticas e resistentes aos ataques. E com uma Constituição viva e cidadã.
Clauder Diniz/Câmara dos Deputados Fonte: Agência Câmara de Notícias
"Senhoras e senhores constituintes.

Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse como presidente da Assembléia Nacional Constituinte.
Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. (Aplausos). A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25 por cento da população, cabe advertir a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Aplausos)
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.

Foi a audácia inovadora, a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna.
O enorme esforço admissionado pelas 61 mil e 20 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões até a redação final.
A participação foi também pela presença pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Como caramujo guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.
Nós os legisladores ampliamos os nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência e a inépcia.
Soma-se a nossa atividade ordinária bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos que na ausência da lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção.
Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular e direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.
O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador habilitado a rejeitar pelo referendo os projetos aprovados pelo Parlamento.
A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador.
A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mão de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.
Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável.
Ela própria com humildade e realismo admite ser emendada dentro de cindo anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado.
O Estado era Tordesilhas. Rebelada a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo.
O Estado encarnado na metrópole resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: Desobeder a El Rei para servir El Rei.
O Estado capitulou na entrega do Acre. A sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. (Aplausos acalorados)
Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta fala.

A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.

Que a promulgação seja o nosso grito.
Mudar para vencer. Muda Brasil."

Redação: Eduardo Tramarim
Câmara é História
Rádio Câmara

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