Morte e impostos - O dia que Kissinger encontrou com Napoleão
Edmundo Siqueira 05/12/2023 23:04 - Atualizado em 06/12/2023 13:01
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Ele percebeu que havia morrido quando caminhava sozinho em uma paisagem gélida, sem se cansar. Suas pernas, antes quase inúteis por 100 anos de uso em uma vida de excessos, não demonstraram qualquer vacilo, mesmo afundadas na neve. “Só posso estar morto”, pensou. “Não deve ser sonho, é a morte, e já não estava sem tempo”.

Aproveitou a vista e a caminhada. Sentia-se bem, apesar de reconhecer a morte. Olhou para suas mãos e percebeu que ainda estava velho; o corpo não havia rejuvenescido, só não se cansava mais. Achou uma pequena colina e já em seu topo fechou seus olhos, respirando o ar gelado. Tentou fazer uma pequena retrospectiva de suas últimas horas no mundo dos vivos, mas não lhe veio nada. Pensou que aquela história de que a vida passa diante dos olhos antes da morte era uma balela. “Deve ser mentira, não vi nada” — não levou em consideração que sua vida foi incrivelmente intensa e complexa, e que mudou o mundo moderno.
Imagem criada por I.A. - Edmundo Siqueira
Embora estivesse gostando de estar sozinho; o que era raro durante sua vida. Começava a se incomodar em ver apenas neve e árvores enquanto andava. Havia algumas elevações que revelavam as pontas cinzas das pedras e havia o verde congelado de pinheiros-silvestres, alguns espruces e outras árvores coníferas. De resto, tudo branco e quieto. Apenas o barulho de vento e do afundar dos pés na neve ao andar. Tentou gritar; mas foi inútil. O único a fazer era mesmo andar.

Depois de algumas horas finalmente avistou algo de diferente. Os óculos que ele mantinha na cara por toda vida já não eram mais necessários, mas mesmo assim o limpou para confirmar que estava vendo realmente o que seria uma espécie de casa. Ao se aproximar confirmou ser uma choupana de madeira, com uma chaminé externa de pedra que começava do chão. A fumaça que saía no ar e uma luz terna vinda do interior do casebre denunciavam que havia alguém ali. À medida que ele se aproximava mais, aumentava o receio do que ou quem encontraria, mas não lhe restava muita escolha.

Sem muita demora chegou até a casa, e depois de três batidas na porta, olhou pelo vidro com as mãos em concha por cima das sobrancelhas. “Alguém aí?”, perguntou com a voz rouca. Sem qualquer resposta, decidiu entrar. Sem trancas, o rangido das dobradiças velhas deram um tom de suspense ainda maior do que a situação já trazia.

Enfim, o morador da choupana foi revelado sem dizer seu nome, mantendo-se de costas, sentado em uma mesa de madeira com bancos compridos. O velho ficou surpreso ao ver que era alguém vestido com uniforme militar francês do século 19, com um chapéu de feltro, com abas amplas e rígidas, e coroa alta. Era Napoleão. Ou alguém vestido como Napoleão.

Photo: Taryn Simon. Courtesy Gagosian
— Olá, meu senhor. Me chamo Kissinger, Henry Kissinger. Quem é o senhor, e onde estamos? — disse o velho, que se apresentou sem se aproximar.

— Já esperava por você, senhor secretário — respondeu ainda sentado à mesa, de costas.
— Secretário? Então me conhece! Diga, homem, onde estamos afinal? Estamos mortos?
— Morte…ah, velho Kissinger, conhecemos bem ela, não é mesmo? Carregamos tantas nas costas que a reconhecemos de cara.
— Quem é você? Exijo que se revele!
O homem virou-se; era mesmo Napoleão.
— Aqui não exigimos nada, senhor secretário. Mesmo eu, um Imperador da maior nação que nosso mundo já viu, não exijo nada por aqui. Aliás, estamos numa posição desvantajosa, não sei se percebeu, mas não há nada aqui além de nós, das árvores, da neve e essa casa imunda de madeira.
— Meu Deus…estamos no purgatório? — Kissinger resolveu sentar-se no banco de madeira ao lado do anfitrião.
A resposta veio após uma sonora gargalhada:
— Fique aí, meu velho. Vou pegar uma bebida — Napoleão levantou-se e buscou uma ânfora de duas alças na extremidade do cômodo, serviu dois copos do vinho que estava em seu interior e continuou: Até hoje não sei onde estou, mas acredite: não há nada de transitório aqui, é tudo definitivo.
— Espere aí, se você é mesmo Napoleão, está aqui há mais de dois séculos! Não pode ser, isso não pode ser verdade — pela primeira vez Kissinger demonstrava desespero.
— Você falando em purgatório…em verdade…achei que estaria mais consciente de si mesmo, meu nobre amigo. Eu e você não lidamos com verdades, e nenhum purgatório nos levaria para o céu.
— Olhe, eu não sei quem é você, não sei o que faço aqui. Isso tudo me parece um pesadelo, se que vou acordar na minha cama, logo. Aliás, se isso aqui não é um purgatório, também não pode ser o inferno.
— Diz isso por causa do gelo? Queria o que? Labaredas de fogo e cheiro de enxofre?
— Sim! — disse Kissinger em voz mais alta.
— Eu juro que achava você mais esperto.
— Olhe bem, eu vou embora! Isso tudo é uma loucura. Adeus.
Kissinger levantou-se abruptamente e caminhou à porta.
— Pode ir, não vai encontrar nada lá fora mesmo. Entenda, nós não cansamos, não temos fome, e sequer o vinho nos embriaga, mas por outro lado não temos nada além dessa casa e do gelo.
A afirmação sobre a ausência de cansaço fez o velho Kissinger acreditar no que ouvia.
— Ok, você ganhou, Napoleão. Vou entrar nesse seu jogo. Como sabe que eu viria?
— Eu recebo um relatório.
— Ah, então vou poder ir embora em algum momento!
— Não disse isso.
— Eu não mereço esse exílio!
— Disso eu entendo.
— De culpa?
— De exílio.

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Os dois riram. E ficaram um tempo sem conversar. Kissinger ficou de pé, ao lado da janela, olhando para o exterior branco e sufocante. Após refletir por um tempo continuou a falar, dessa vez em monólogo. Explicou como o mundo havia mudado desde que Napoleão tinha morrido, e como a França havia se comportado como nação na Segunda Guerra. 
Ao entrar na história dos EUA, uma discussão acalorada começou. Discordaram sobre economia e diplomacia. E em como seus países tratavam a cobrança de impostos.  
Havia muitos nacionalismos para uma casa tão pequena.

— Eu mudei o século 20! Me respeite seu corso pedante! — disse Kissinger com dedo em riste.
— Eu fiz o 19, seu velho alemão egoísta! — retrucou Napoleão.
— Eu não matei gente como você matou, não fui um Ditador disfarçado de Imperador.
— Sério? Depois da Indonésia, do Chile...do Camboja? Está tudo no relatório, e não tem mentiras nele, diferente nos do seu país.
— Não ouse falar da minha nação. Somos o líder do mundo livre!
— Parece até aquele pessoal do Robespierre…me dá até sono.
Kissinger dá uma pausa antes de continuar.
— Só há um motivo para eu ter vindo para cá. Temos muito em comum, apesar de eu achar isso um absurdo. Mudamos nosso século, fizemos algumas besteiras, lideramos um país importante, fomos naturalizados em outra nação e lutamos por ela...eu vim da Alemanha e você da Córsega…mas deve ter alguma outra coisa.
— Você falando assim, e de acordo com a história que me contou agora há pouco, pensei aqui com meus botões — Napoleão estava sentado em uma cadeira que havia na casa, com um dos braços apoiados no topo do encosto, e o outro em sua perna. Vestia um uniforme branco, com botas pretas de cano alto. Havia colocado um casaco surrado enquanto Kissinger contava sobre o século que ele não havia vivido — Não seria a Rússia nosso principal ponto em comum? Veja, toda essa neve e essa terra arrasada.
— Sim! Só pode ser isso, Napoleão! A Rússia.
— A Rússia! Sempre os russos. 
Outra pausa; curta dessa vez. 
— Não, não. Não pode ser isso — disse Kissinger balançando a cabeça negativamente — eu venci a Rússia, e você perdeu para ela.
— Sua guerra foi fria, meu caro.
— Mas venci.
— Você realmente acredita nisso, não é?
— Claro. Isso definiu o mundo como o conhecemos, meu caro — disse em tom irônico
— Definiu o seu mundo, Kissinger. Não confunda as coisas.
— Tá bom. Disse o homem que se autoproclamou Imperador.
— O nome Vietnã te diz alguma coisa? Está no relatório também. 
— Eu negociei a paz por lá, Napoleão. Não fale bobagem. Ganhei o Nobel da Paz por isso.
— Ganhou o que? — outra gargalhada do ex-Imperador da França — Deve algum tipo de brincadeira.
— O mundo depois do seu é complexo, muito complexo. Isso se chama realpolitik.
— Sei...nome moderno para imperialismo.

Mais um silêncio. Dessa vez, interrompido por Napoleão:

— Será que o mundo está melhor com a nossa partida, velho Kissinger?
— Acredito que não.
— O que falta, então?
— Falta combinar com os russos.

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