Um presidencialismo manco e tricameral
Edmundo Siqueira 04/06/2023 23:44 - Atualizado em 04/06/2023 23:51
Algum estrangeiro, não conhecendo previamente nosso sistema político, que tivesse desembarcado no Brasil há duas semanas poderia facilmente inferir: o país vive um regime parlamentarista. Explico. 

O resultado apertado das eleições de 2022 foram determinantes para estabelecer uma relação tensa entre executivo e legislativo, este último eleito com maioria conservadora. Precisando de pacificação na Câmara, o presidente Lula se viu obrigado a apoiar a reeleição de Arthur Lira para presidente da Casa. Lira, por sua vez, quis manter seu status de primeiro-ministro —  cargo que foi "atribuído" a ele no governo anterior quando passou a controlar boa parte do orçamento federal. 

Mas o sistema político do Brasil não possui primeiro-ministro. Qualquer brasileiro — ou mesmo aquele estrangeiro que desembarcou há duas semanas — que resolva buscar a Constituição Federal de 1988 e fazer a leitura dos artigos 48 e 62, teria certeza: trata-se de um regime presidencialista. Mas a confusão inicial não é exatamente uma novidade no Brasil. 

As democracias liberais modernas entendem — por conceitos que vieram antes delas — que o poder deve ser limitado e compartilhado. Foi justamente o combate ao absolutismo que provocou os principais movimentos revolucionários e de emancipação no mundo — como a Revolução Francesa e a independência dos EUA.

Esses movimentos (e antes deles a obra do filósofo francês Montesquieu) prepararam os marcos do liberalismo e do ordenamento constitucional do Estado Liberal. A Constituição Brasileira foi construída com as mesmas bases, portanto separa obrigatoriamente os poderes em três, atribui funções específicas para cada um deles, e determina um legislativo bicameral.

Mas há no Brasil o que convencionou-se chamar de ‘presidencialismo de coalizão’, termo cunhado pelo sociólogo Sérgio Abranches que é um imbróglio político típico do Brasil, onde exige do presidente da ocasião negociar cargos, compartilhar poder e principalmente distribuir uma enormidade de dinheiro público para os parlamentares, via emendas.

Lira e as emendas de relator

Compartilhar poder e distribuir emendas não é, em essência, um problema. Democracias exigem que haja oposição ativa, e que o governo seja o mais plural possível, onde várias frentes atuem em conjunto. Mas para ser republicano como se deve, não se pode abrir mão da transparência.

Em 2020, com a criação do Orçamento Impositivo, as chamadas ‘emendas do relator’ eliminaram toda forma de transparência na alocação dos recursos. Naquele ano foi dado ao parlamentar relator da Lei Orçamentária Anual o direito de distribuir as emendas priorizadas pelo Executivo.
Esse instrumento foi batizado de “orçamento secreto” pois, diferentemente de outras emendas parlamentares, não havia qualquer critério definido para a distribuição ou destino do dinheiro, o que dificultava a fiscalização sobre a execução da verba. E eliminava a transparência. 

O deputado Arthur Lira passou a comandar o orçamento da União que passava pela Câmara. Na prática, Lira atuava como primeiro-ministro em um regime parlamentarista, onde o chefe de Estado e de Governo não ficam representados pela mesma pessoa.

Mas, em dezembro de 2022, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consideraram inconstitucional a distribuição de recursos das emendas de relator. A maioria dos ministros do STF considerou que não havia transparência nem igualdade nos repasses. Com a decisão, passou a ser obrigatório a identificação do deputado ou do senador, e os repasses deveriam obedecer parâmetros de acordo com o tamanho das bancadas partidárias.

Marco temporal, MP dos Ministérios e o ‘pato manco’

Nas últimas semanas de maio todos esses elementos foram colocados à prova. Dois temas prioritários do governo Lula foram usados como demonstração de força da Câmara, com movimentações políticas que estremeceram os laços republicanos e a separação de poderes.
O primeiro foi a tramitação do projeto de lei que propõe que a demarcação de terras indígenas se restrinja àquelas ocupadas à época da promulgação da Constituição Federal, e que impossibilitava a ampliação de áreas já demarcadas. O texto foi aprovado pela Câmara no último dia 30/05.

O segundo tema foi a chamada ‘MP dos Ministérios’ (MP 1.154). Seguindo o artigo 48 da CF, Arthur Lira ameaçou a tombar a MP e fazer com que o governo Lula perdesse pastas essenciais. Ao todo 17 ministros perderiam seus cargos caso a MP fosse rejeitada pelos deputados. Após intensas negociações, com a participação direta do presidente Lula, e a liberação de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares, a MP foi aprovada na Câmara, com votos favoráveis de 337 deputados e 125 contrários.

Lira tentou impor a Lula a imagem de ‘pato manco’ (a expressão lame duck é importada da política americana para se referir ao presidente em final de mandato que ainda está no cargo, mas com seu poder e prestígio esvaziados). Com apenas 6 meses de governo, onde ainda tudo por acontecer — inclusive nada —, o presidente da Câmara percebeu que Lula conta com bastante capacidade de mobilização e negociação, e se recusa a entregar o controle total do orçamento federal como fez o governo anterior.

Lula tem hoje uma situação muito mais confortável no Senado, que permite que haja contenção de danos nas derrotas. A questão do marco temporal, por exemplo, esbarra no aval do Senado para passar a valer, onde o governo pretende segurá-la.

Além do Senado, o STF é visto como último recurso em algumas matérias que o governo entende como prioritárias. Caso o Senado siga a Câmara e o marco temporal entre em vigor, há a possibilidade de ser considerado inconstitucional pela Corte. E o governo conta com isso para outros temas espinhosos no futuro.

A República sem conceitos

A ditadura militar (1964-1985) implodiu todas as bases democráticas que o país vinha construindo à duras penas. O atraso institucional e social imposto pelo regime cobrou seu preço, e os desajustes encarados hoje já poderiam ter sido resolvidos há bastante tempo.

O período chamado de Nova República ou Sexta República, que vivemos na contemporaneidade, construiu uma Constituição de forte amparo social com diretrizes que buscam tratar todo brasileiro de forma igualitária. Aspectos sociais, trabalhistas e político-institucionais foram modernizados e uma série de "Direitos e Garantias Fundamentais" foram instituídos, saudados como um dos mais modernos e democráticos do mundo.

Porém, uma série de desvios e interpretações foram corroendo as relações políticas e o equilíbrio entre os poderes. Há um problema conceitual na República Brasileira, fruto desses desequilíbrios.

Quando o governo usa o STF como esteio das decisões do Congresso, ele passa a contar com três câmaras legislativas. O sistema se corrompe, passando a um inexistente sistema 'tricameral'. Quando o Congresso controla boa parte do orçamento federal, ele passa a ocupar um papel que foi determinado para que outro poder o exercesse. Determinado pelo voto e pela Constituição.

Se o Brasil insistir na corrupção de conceitos, estará fadado a permanecer com suas mazelas, e transformar o jogo democrático em algo incompreensível para estrangeiros e brasileiros. Mesmo sendo essa incompreensão proposital para impedir a participação e cidadania, ela tratará de corroer as instituições até que elas se tornem inoperantes — ou mancas. E o resultado de instituições e poderes mancos é o absolutismo.
 

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