O selvagem da música 60 anos depois (final)
13/06/2019 19:18 - Atualizado em 17/06/2019 20:12
Por Arthur Soffiati
Com o “Noneto”, Villa-Lobos ultrapassa as influências do impressionismo e de qualquer compositor para ser ele mesmo com seu estilo inconfundível. A originalidade apresentada na obra começa na formação do conjunto. Um quinteto de sopro formado por flauta, oboé, clarineta, fagote e saxofone reúne-se a um trio insólito constituído de piano, celesta e harpa, algo já precedido em escala semelhante no “Sexteto místico”, de 1917. Completa o conjunto um coro misto e vários instrumentos de percussão. Para tornar o grupo mais complexo, a flauta se reveza com o flautim e o saxofone alto se reveza com o saxofone barítono. A percussão é representada por um conjunto à parte composto por tímbale, bumbo, bumbo grande, tambor de campo, tambor lateral, prato, placa de bronze e de louça, chocalhos, triângulo, reco-reco, pandeiro, caxambu, xilofone e cuíca. Os instrumentos de percussão em si formam um conjunto maior do que a reunião de nove instrumentos. A peça foi composta em 1923-4 entre Rio de Janeiro e Paris. Villa-Lobos experimenta e transgride com seus ritmos, dissonâncias e contraponto. A obra é bem representativa da fase nacionalista áspera do autor, fase que muito me agrada pelo destemor e selvageria do compositor.
Ainda em 1924, ele compõe o “Choros nº 7”, denominado “Settimino”, para um quinteto de sopro composto de flauta, clarineta, oboé, saxofone e fagote, acompanhado por um violino, um violoncelo e um tam-tam ao fim da obra. As sonoridades são rascantes. Villa-Lobos criou um clima musical único e inimitável por outros compositores. Um conhecedor dessa atmosfera pode dizer se a composição é ou não de Villa-Lobos só de ouvir os primeiros compassos dela. Aqui, o compositor leva o violino a ser executado como um violão. Com três curtos movimentos, o “Settimino” se enquadra na fase mais selvagem e feroz do compositor.
Em 1925, Villa-Lobos compõe, em São Paulo, o notável “Choros nº 3”, obra dedicada à pintora Tarsila do Amaral e a Oswald de Andrade. Um coro masculino é acompanhado por clarineta, sax-alto, fagote, três trompas e um trombone. A composição homenageia a antropofagia de Tarsila e Oswald usando o canto “Nozaniná” dos parecis de Mato Grosso registrada por Roquette-Pinto em 1912. O coro começa com o canto indígena de forma ritmada e efetua uma queda cromática para entoar o pica-pau, subtítulo do choros. É uma composição arrojada, revelando com clareza a audácia do autor. A ordem das composições não segue a ordem numérica. O “Choros nº 3” encerra a primeira fase da obra de Villa-Lobos.
A “Ciranda das sete notas” (1933) é um divisor de águas, pelo menos na música que Villa-Lobos dedicou a instrumentos de sopro. Pode-se dizer que a peça é um verdadeiro concerto para fagote e orquestra de cordas. A combinação é perfeita para que o fagote se destaque como instrumento solista. Em três movimentos curtos, o compositor aparece em momento mais feliz que o de costume. O fagote domina a composição. Além de revelar pleno domínio sobre a arte de compor, Villa-Lobos mostra que sabe dar rumo à melodia condutora. Ele não hesita, mostrando que sempre encontra saídas geniais para becos aparentemente inexpugnáveis.
“Distribuição de flores”, para flauta e violão, de 1937, é uma composição melodiosa com 3:40 mm. Originalmente, a obra recebeu o nome de “Motivos gregos”. Daí sua atmosfera mística.
As “Bachianas brasileiras” nº 6 (1938) foi composta para flauta e fagote em dois movimentos. O primeiro é uma ária melancólica (Largo) em que a flauta, pelo som agudo, se destaca do fagote. Ela canta a melodia que, em certos momentos, o fagote executa. O segundo movimento é uma fantasia (Allegro), com um complexo diálogo entre os dois instrumentos e também demonstrações virtuosísticas.
A partir de 1945, finda a Segunda Guerra Mundial, Villa-Lobos se aproxima dos Estados Unidos, país que ganhara prestígio pelo importante papel que exerceu na vitória dos aliados. Chovem encomendas ao nosso compositor do meio artístico norte-americano. Lisa Peppercorn, em biografia do compositor (“Villa-Lobos: biografia ilustrada do mais importante compositor brasileiro”. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000), sugere que ele absorveu influências do jazz em sua música. Um leigo, como eu, percebe que Dvorak e Stravinsky valeram-se claramente de temas musicais dos Estados Unidos. Villa-Lobos parece continuar ele próprio. Claro que sua arte amadureceu nos últimos 15 anos de sua vida. Mas não noto interferências externas em sua música. Villa parecia autossuficiente. Além do mais, a biografia da norte-americana não contextualiza devidamente a carreira do compositor brasileiro.
Em 1948, ele compõe a “Fantasia para saxofone”, na verdade um pequeno concerto para saxofone nos moldes da “Ciranda das sete notas”. Em três movimentos, Villa-Lobos faz o instrumento, acompanhado por uma orquestra de cordas, cantar e praticar travessuras. Tornou-se obra fundamental para o saxofonista que atua na área erudita.
“Assobio a jato”, de 1950, foi concebido para flauta e violoncelo em dois movimentos. No primeiro (Allegro non tropo), o violoncelo acompanha uma flauta vigorosa, exuberante e virtuosística. No segundo (Adagio), a melodia melancólica permite à flauta executar malabarismos. A obra revela a genialidade do autor.
Na “Fantasia concertante”, de 1953, piano, clarineta e fagote incumbem-se de executar uma trabalhada composição em três movimentos. Villa-Lobos demonstra pleno domínio da composição. Os três instrumentos parecem caminhar isoladamente um em relação aos outros, mas estamos diante de um notável exercício de contraponto e sonoridades característicos do autor.
Nessa fase derradeira, ele compõe, em 1955, o majestoso “Concerto para harmônica e orquestra”, dedicado a John Sebastian. Quem poderia imaginar que Villa-Lobos conseguiria proezas sonoras com a popular gaita de boca? O concerto exige do solista domínio completo do o instrumento. No todo, ele é virtuosístico, embora subordinado à estrita concepção musical. Villa-Lobos parece extrapolar seu próprio estilo nos três movimentos com profundo lirismo e modulações. O compositor dá ao último movimento um tratamento clássico: a orquestra silencia para que, num solo,o solista mostre suas qualidades na execução da harmônica.
Dois anos antes de morrer, Heitor Villa-Lobos continua amadurecendo suas qualidades de compositor e mais ativo do que nunca. De 1957, é o“Duo”para oboé e fagote em que o autor extrai dos dois instrumentos toda a capacidade de cada um. Os dois instrumentos, em três movimentos, dialogam, duelam e exploram sonoridades e virtuosismo.
Sobre a “Fantasia em três movimentos em forma de choros” (1958), nada posso comentar por não a ter sequer encontrado nas plataformas digitais. Por fim o “Concerto Grosso para flauta, oboé, clarinete, fagote e orquestra de sopros”, de 1959, ano da morte do compositor. O concerto grosso tem origem italiana e barroca. Trata-se de um concerto para um conjunto de instrumentos acompanhados por orquestra. O desafio de Villa-Lobos foi bem respondido. Ele consegue manter a autonomia do quarteto de instrumentos de sopro em meio a uma orquestra formada somente por sopros.
Para mim, seria um grande presente a gravação de todas as peças mencionadas aqui. Mas o suporte físico está prestes a ser aposentado. Tudo agora está nas plataformas digitais. Elas São efêmeras. É comum desaparecerem. Mas o vinil está voltando. Ainda há esperanças de ouvirmos música em suportes físicos.
Num mundo cada vez mais globalizado, é natural que as influências venham de todos os lados. Parece que o Brasil perdeu o rumo na música, sobretudo na popular. As imposições do mercado dominam a produção musical, gerando lixos sonoros medíocres e descartáveis. Villa-Lobos faz parte de uma época em que o Brasil buscava identidade cultural, ainda que ela fosse complexa. Para avançar em busca de algo, ainda que no interior da globalização ocidental, devemos voltar a Villa-Lobos, que morreu em 1959. Sua música, porém, continua mais viva do que nunca, mas fora do Brasil que dentro dele.

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